O saudoso mestre José Manoel de Arruda Alvim, que, entre seus muitos predicados, ornava-se de uma admirável honestidade intelectual, disse certa vez, retificando alguns pequenos lapsos acerca de suas lições sobre o Código Buzaid, que escrever no dia seguinte da publicação de um texto de lei é sempre uma aventura perigosa. Há alguns riscos, entretanto, que convém arrostar, sobretudo quando se aviste ainda a possibilidade ? por mais que cada vez menor ? de regredir da marcha em caminhos que estão avessados da tradição. O Diário Oficial da União de 28 de dezembro de 2021 publicou a Medida provisória 1.085, datada do dia anterior, instituindo o Sistema eletrônico dos registros públicos (Serp), com mais uma intervenção de caráter administrativo voltada a modificar as atividades e os predicados dos registros públicos. Ainda uma vez, o itinerário adotado nessa medida provisória contemplou tendências já indicadas em normas anteriores, entre elas, destacadamente, (i) a do centripetismo registral; (ii) a da adoção de rotinas uniformistas, com a atribuição paulatina das funções dos registradores públicos a pessoas jurídicas, sob a fiscalização estatal; (ii) a de incremento das funções arquivística e documentária avantajadas às propriamente jurídicas. O centripetismo ? ou concentracionismo registral ? adotado pela Medida provisória 1.085 avulta em que, relativamente às inclinações anteriores, não se trata só de centralizações afeiçoadas às especialidades (ou seja, cada concentração referível a uma parte ou classe registral), senão que a nova concentração abarca, pelo gênero, a totalidade dos registros. Dessa mesma proclividade a abranger todos as categorias do registro público resulta uma tendência à homogeneização ? ou uniformismo ? das rotinas nas atividades registrais. É preciso distinguir: uma coisa é alcançar a uniformidade experiencial, vale dizer, como fruto das experiências, e outra, muito diversa, é a adoção de um uniformismo apriorístico, tanto mais de prognose reservada, quanto mais compreensivo de diferentes classes de registros públicos, cada qual com sua história vital específica. Ambas essas apontadas características que se recolhem da Medida provisória 1.085 são ressonâncias dos avanços tecnológicos. Persistem, contudo, quanto ao progresso da técnica, muitas dúvidas não depostas no domínio da moral e até no de sua real vantagem comunitária. Com efeito, a ideologia da técnica tem privilegiado seu progresso autorreferencial: a técnica progride, enfim, visando ao mesmo desenvolvimento tecnológico. Nem sempre, todavia, o progresso da técnica resulta em efetivo proveito social. A esse propósito, advertiu Lewis Mumford sobre a degeneração do poder urbano: “Vivemos numa era em que se verifica uma multidão de avanços técnicos sem sentido social, divorciados de quaisquer outras finalidades que não o progresso da ciência e da tecnologia. Na realidade, vivemos num explosivo universo de invenções mecânicas e eletrônicas, cujas partes se movem num ritmo rápido, distanciando-se cada vez mais do seu centro humano e de quaisquer finalidades humanas racionais e autônomas” (A cidade na história, 1998, p. 42). Ainda que não se ponham em discussão algumas vantagens econômicas prognosticáveis com o sistema previsto na Medida provisória 1.085, ter-se-ia de pensar se essas vantagens não poderiam obter-se doutro modo, sem que se desconstruísse gradualmente a latinidade ? ou talvez melhor, no caso brasileiro, a romanicidade ? expandida do notariado aos nossos registros públicos. Não se pode passar já ao largo do fato de que se têm atribuído atividades registrais a grupos privados, parece que sem observância da tradição do direito pátrio e até das disposições da Constituição federal de 1988: assim, por exemplo, a CRC (Central de Informações do Registro Civil) e o ONR (Operador nacional do registro). Mais uma vez em contorno da observância da normativa constitucional (cf. o caput do art. 236 do Código político de 1988) e dos preceitos relativos à licitação e aos contratos administrativos (tanto o do inc. XXI do art. 37 da Constituição federal, quanto os da Lei 8.666, de 21-6-1993, e da Lei 14.133, de 1º-4-2021), tem-se que, abstraído o tema da conveniência de centrais informativas, a fisionomia das instituições dos registros públicos brasileiros ? de há muito vincada pela ideia de mera função (e, para mais, estatal, e não de comunidade) ? vai sendo encaminhada ao modelo de um hipercartório que parece desconstrutivo da tradição de nosso sistema atomístico e capilarizado: de fato, um sistema eletrônico concentracionário põe à mostra a pouca utilidade ou nenhuma de cartórios com competência territorial limitada. Alguns dirão: barbari ad portas, mas não há grande novidade: o roteiro da tragédia já estava proclamado. Não houve agora maior surpresa com sua paulatina caminhada. Ricardo Dip Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, de cuja Seção de Direito Público foi Presidente no biênio 2016/2017. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, em Jornalismo, pela Faculdade de Comunicação Social “Cásper Líbero”. Mestre em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito. É membro fundador do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (Portugal). É acadêmico de honra da Real de Jurisprudencia y Legislación de Madri (Espanha). É diretor da Seção de Estudos de Direito Natural do Consejo de Estudios Hispánicos “Felipe II”, de Madri, e membro do Conselho de Redação de sua revista Fuego y Raya, revista hispanoamericana de história e política. É membro do comitê científico do Instituto de Estudios Filosóficos “Santo Tomás de Aquino”, de Buenos Aires. Integra o Conselho Acadêmico da Seção de Filosofia do Direito de El Derecho: Diário de Doctrina y Jurisprudencia, sob a rubrica da Universidade Católica Argentina. É membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Notarial, editada pelo Colégio Notarial do Brasil. É membro de honra do CENoR, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. É membro da Academia Peruana de História. É titular da cadeira n. 12 da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário e da cadeira n. 23 da Academia Notarial Brasileira. Autor de vários livros e artigos publicados no Brasil e no exterior (currículo atualizado até 24 de janeiro de 2018). Fonte: Publicações INR – Informativo Notarial e Registral