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Artigo – Original e cópia - o inebriante efeito especular da digitalização. Velhas questões, novos desafios – Por Sérgio Jacomino

Introdução

Neste pequeno ensaio, vamos nos deter no tema das distinções entre original e cópia e seus consectários - autoria, autenticidade, integridade. Com o perdão do trocadilho, qual o papel que o título digitalizado "com padrões técnicos" desempenha no processo registral? São equivalentes - o título original e o digitalizado - em ordem a sustentar a inscrição e promover a mutação jurídico-real?

Os espelhos nos assombram, assim como as cópias digitais. Desde o Mito de Narciso, cujo trágico desenlace todos conhecemos, cumprindo a profecia de Tirésias - si non se uiderit - a realidade e as suas representações sempre intrigaram o homem.1 Borges cravou uma passagem perturbadora em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius: "os espelhos têm algo de monstruoso" porque "multiplicam o número dos homens".2 Em Tlön, as idealizações e as representações qualificam, de certo modo, os fatos e a materialidade substancial das coisas. O mundo não é um concurso de objetos no espaço, nem há substantivos na Ursprache de Tlön... Magritte, em seu La reproduction interdite (1937), nos convida à reflexão acerca da realidade e de suas representações. O que é real? O que é surreal?3

Com o advento das novas tecnologias, muitos de nós não conseguem distinguir de modo seguro um original de sua cópia reprográfica; um objeto real de um simulacro; um fato substancial de sua representação digital. A questão torna-se ainda mais perturbadora quando pensamos que, no âmbito dos documentos natodigitais, já não se verifica a summa divisio que vinca os originais e suas cópias; todas as cópias são originais e vice-versa...

As recentes reformas legais são surpreendentes. Causam-nos perplexidade. Pensemos nos contratos digitalizados "com padrões técnicos". O que são propriamente? Assombram-nos os extratos - emanação especular que se desprende dos negócios jurídicos pela via da novilíngua digital, errando por hubs, centrais eletrônicas e cartórios; assalta-nos a ideia de infalibilidade e fidedignidade das redes de blockchain, tokens, artefatos criptográficos e de seus protocolos divinos. O que é real? O que é surreal? O que é meta-real?

A realidade ultrapassa as mais ousadas distopias. Vivemos o tempo de avanços na digitalização da administração pública e judiciária, mas também testemunhamos o surgimento de simulacros que buscam suplantar a realidade e a materialidade das coisas, cedendo passo a representações complexas que se projetam no grande écran da hiper-realidade.

Voltando-nos ao microcosmo dos Registros Públicos, as reformas recentes da Lei nº 6.015/1973, consumadas pelo advento da Lei nº 14.382/2022, colocam-nos diante de velhas questões no confronto com as tendências que se verificam na sociedade da informação. A discussão acerca das mudanças - e o impacto que terão na atividade registral - é tarefa imperiosa e que ganha especial relevo quando consideramos que a Lei nº 14.382/2022 pende de regulamentação pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Sabemos que o impulso essencial das mudanças foi a "modernização" do sistema registral pátrio, embalado por slogans e narrativas de jaez tecnocrático, o que, na opinião de uma pequena, mas qualificada, comunidade de juristas não se deu de modo satisfatório e adequado.4 Houve açodamento e uma certa dose de improviso e precipitação, fatos que podem inocular o germe da insegurança jurídica no sistema, além de instaurar uma barafunda sistemática, interditando os esforços despendidos em décadas de trabalho dedicado à modernização e ao aperfeiçoamento do modelar sistema registral pátrio.5

Divido essas meditações em dois pequenos artigos dedicados ao enfrentamento de três questões que se precipitaram na arena doutrinária pelas novas disposições legais: (a) O que são títulos digitalizados "com padrões técnicos" que agora podem acessar o Registro de Imóveis? Quais são seus pressupostos e requisitos técnicos e de validade jurídica? (b) Qual é o alcance do § 4º do art. 221 da Lei de Registros Públicos (LRP) na dispensa da reapresentação do título em algumas hipóteses, bastando mera referência ou certidão de atos já praticados? e finalmente (c) As certidões de documentos registrados no Ofício de Títulos e Documentos podem ser admitidas no Registro Imobiliário?

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Fonte: Migalhas