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Artigo – Tema 1.031 do STF: função social do usufruto de terras indígenas – Por Robson Martins e Erika Silvana Saquetti Martins

A posse e a propriedade de bens imóveis sempre foram um grande dilema no país, dado o seu alto valor econômico agregado, especialmente em metrópoles e áreas rurais férteis para atividades agrárias e pastoris. Conforme dicção do Código Civil, em seu artigo 1.196, considera-se possuidor: “todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”.

Já na propriedade, conforme o artigo 1.228 do Código Civil: “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. As terras indígenas, como cediço, não são dos indígenas, mas sim de titularidade da União — o que gera, por consectário, a impossibilidade de usucapião, pelo fato de serem terras públicas. O usufruto, conforme o Código Civil, em seu artigo 1.394, atribui ao usufrutuário a “posse, uso, administração e percepção dos frutos”, portanto, o usufruto ultrapassa a mera posse de um bem imóvel, indo além.

Portanto, embora o artigo 5º, XXIII, refira-se apenas que “a propriedade atenderá a sua função social”, é certo que a posse e o usufruto também atendem à função social, na medida em que a própria CF/88 erige tal posição, quando em seus artigos 183 e 191 concedem ao “possuidor” a usucapião constitucional urbana e rural, respectivamente.

Embora com certa dessemelhança, as terras indígenas demarcadas também atendem à sua função social, já que tais terras tradicionais dos povos indígenas são de propriedade da União, com usufruto exclusivo de seus integrantes, atendendo, principalmente, à proteção do meio ambiente prevista no artigo 225: “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

É certo que os indígenas, com seus usos, costumes e tradições, protegem o meio ambiente da forma que lhes é peculiar, extraindo da terra seus frutos e alimentos, gerando muitas vezes a única barreira natural na expansão agrícola do país que é importante, obviamente, mas que necessita de biomas para a própria existência do ser humano, num equilíbrio constante com o escopo de manutenção das futuras gerações.

Destarte, há grande importância na delimitação das terras indígenas, pois a Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), determina em artigo 246, §§ 2º e 3º: “§ 2o Tratando-se de terra indígena com demarcação homologada, a União promoverá o registro da área em seu nome. § 3o Constatada, durante o processo demarcatório, a existência de domínio privado nos limites da terra indígena, a União requererá ao Oficial de Registro a averbação, na respectiva matrícula, dessa circunstância”.

Neste viés, o constituinte originário de 1988 preocupou-se em proteger, em abstrato, os indígenas, suas terras, tradições, hábitos, de maneira a preservar a cultura dos nativos do país, em detrimento do processo de colonização. Referida proteção se encontra em acordo com o contexto de redemocratização e garantia de direitos.

O artigo 231 da Constituição de 1988 afirma que “[…] são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Para o §1º, são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios aquelas por eles habitadas permanentemente, “[…] as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

Seus §§ 2º e 4º determinam que “[…] as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes” e que “[…] as terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”.

A proteção constitucional concedida aos indígenas foi ampla, relacionada à sua organização social, cultural e linguística, todavia, baseada em seu direito de posse sobre a terra que, tradicionalmente, ocupam, a eles deferindo, inclusive, a exploração de seus frutos e riquezas.

O caput do artigo 231 da Constituição, assim, impõe à União “[…] o dever de preservar as populações indígenas, preservando, sem ordem de preferência, mas na realidade existencial do conjunto: sua cultura; sua terra; sua vida”. Quanto à sua cultura, reconhece sua “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” (Fontelles, 1993, p. 205).

Tais garantias não se estendem apenas às comunidades originais e não integradas, alcançando, também os descendentes das respectivas etnias, abrangendo tanto as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas como o direito à preservação das memórias e hábitos dos povos nativos.

Acerca do tratamento dado aos indígenas, antes da própria Constituição de 1988, verifica-se que desde 1934 há proteção às terras indígenas, conforme descrito no julgamento das Ações Civis Originárias nº 362 e nº 366 no STF.

A teoria do indigenato, em que pese ser historicamente recente, tem raízes ainda no século 17, no Brasil, relacionando-se diretamente ao massacre ao qual os nativos brasileiros foram submetidos durante o processo de colonização portuguesa e, posteriormente, com a expansão urbana e agrícola.

Esta foi criada por João Mendes Júnior, no início do Século 20, considerando o período de exploração, exclusão e genocídio contra os povos indígenas durante a colonização. É um direito congênito. O direito dos povos indígenas às terras tradicionais antecede à criação do Estado brasileiro (Mendes Júnior, 1912, p. 21).

O Estado deve somente demarcar e declarar os limites espaciais do território indígena (Mendes Júnior, 1912, p. 21), sem, entretanto, imiscuir-se em suas bases, em suas manifestações culturais, assim como em suas tradições, nem mesmo impor às populações nativas o seu ordenamento jurídico.

O instituto do indigenato tem influência direta e inevitável em relação aos direitos dos indígenas sobre as suas terras, em decorrência da ocupação “tradicional”, atualmente resguardadas pela Constituição de 1988, fazendo com que sua natureza jurídica seja outra que não à de mera propriedade privada.

O indigenato não é mera posse, mas, sim, “[…] fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido”, legitimando-se por si, de forma que não é fato dependente de legitimação. Já a ocupação, “[…] como fato posterior, depende de requisitos que a legitimem” (Silva, 2020, p. 783).

A posse por ocupação se sujeita à legitimação, pois, como título de aquisição, “[…] só pode ter por objeto as coisas que nunca tiveram dono, ou que foram abandonadas por seu antigo dono”. A ocupação é, dessa maneira, uma apprehensio rei nullius ou, eventualmente, rei derelictae (Silva, 2020, p. 783-784).

Referida teoria, entretanto, é apenas um dos aspectos da proteção conferida aos indígenas pela CF/88, em detrimento dos regimes jurídicos anteriores, que tratavam as etnias nativas como semi-humanos a serem tutelados pelo Estado, como se não pudessem se autodeterminar.

Além do instituto do indigenato, a consagrar direitos originários dos povos indígenas, a posse e o usufruto de suas riquezas nela existentes, o fato de a Constituição dar a propriedade das terras indígenas à União foi medida voltada a efetivamente protegê-los, não se relacionando à tutela orfanológica que antes caracterizada as políticas indigenistas (Marés, 2006, p. 48).

Atento a tais desideratos, precipuamente em face da tese do marco temporal, o Supremo Tribunal Federal, através do tema 1.031 rechaçou tal tese, acolhendo a tese do indigenato, ficando assim descritas as diretrizes da temática:

I – A demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena; II – A posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos indígenas, nas utilizadas para suas atividades produtivas, nas imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e nas necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do § 1º do artigo 231 do texto constitucional; III – A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição; IV – Existindo ocupação tradicional indígena ou renitente esbulho contemporâneo à promulgação da Constituição Federal, aplica-se o regime indenizatório relativo às benfeitorias úteis e necessárias, previsto no § 6º do art. 231 da CF/88; V – Ausente ocupação tradicional indígena ao tempo da promulgação da Constituição Federal ou renitente esbulho na data da promulgação da Constituição, são válidos e eficazes, produzindo todos os seus efeitos, os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada relativos a justo título ou posse de boa-fé das terras de ocupação tradicional indígena, assistindo ao particular direito à justa e prévia indenização das benfeitorias necessárias e úteis, pela União; e, quando inviável o reassentamento dos particulares, caberá a eles indenização pela União (com direito de regresso em face do ente federativo que titulou a área) correspondente ao valor da terra nua, paga em dinheiro ou em títulos da dívida agrária, se for do interesse do beneficiário, e processada em autos apartados do procedimento de demarcação, com pagamento imediato da parte incontroversa, garantido o direito de retenção até o pagamento do valor incontroverso, permitidos a autocomposição e o regime do § 6º do art. 37 da CF; VI – Descabe indenização em casos já pacificados, decorrentes de terras indígenas já reconhecidas e declaradas em procedimento demarcatório, ressalvados os casos judicializados e em andamento; VII – É dever da União efetivar o procedimento demarcatório das terras indígenas, sendo admitida a formação de áreas reservadas somente diante da absoluta impossibilidade de concretização da ordem constitucional de demarcação, devendo ser ouvida, em todo caso, a comunidade indígena, buscando-se, se necessário, a autocomposição entre os respectivos entes federativos para a identificação das terras necessárias à formação das áreas reservadas, tendo sempre em vista a busca do interesse público e a paz social, bem como a proporcional compensação às comunidades indígenas (art. 16.4 da Convenção 169 OIT); VIII – A instauração de procedimento de redimensionamento de terra indígena não é vedada em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de pedido de revisão do procedimento demarcatório apresentado até o prazo de cinco anos da demarcação anterior, sendo necessário comprovar grave e insanável erro na condução do procedimento administrativo ou na definição dos limites da terra indígena, ressalvadas as ações judiciais em curso e os pedidos de revisão já instaurados até a data de conclusão deste julgamento; IX – O laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.775/1996 é um dos elementos fundamentais para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições, na forma do instrumento normativo citado; X – As terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos indígenas o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes; XI – As terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis; XII – A ocupação tradicional das terras indígenas é compatível com a tutela constitucional do meio ambiente, sendo assegurado o exercício das atividades tradicionais dos povos indígenas; XIII – Os povos indígenas possuem capacidade civil e postulatória, sendo partes legítimas nos processos em que discutidos seus interesses, sem prejuízo, nos termos da lei, da legitimidade concorrente da FUNAI e da intervenção do Ministério Público como fiscal da lei.

Portanto, o STF albergou a proteção jurídico-constitucional dos povos indígenas pela Constituição, que inclui o instituto do indigenato, a função social da propriedade e a proteção ao meio ambiente, consagrando aos indígenas efetivas prerrogativas jurídicas que, por sua vez, não representam favores ou caridade, mas, sim, efetivos direitos públicos subjetivos.

Neste viés, a União deve definir os limites das terras indígenas ainda não demarcadas pela Funai, necessitando o registrador de imóveis estar atento aos regramentos constitucionais e legais acerca da titulação das áreas e consagração do Tema 1.031 do Supremo Tribunal Federal, além das disposições do artigo 246 da Lei 6.015/73.

Referências:
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Bosi, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

Fonteles, Cláudio Lemos. Os julgamentos de crimes cometidos contra comunidades indígenas pela justiça estadual. In: SANTILLI, Juliana. (coord.). Os direitos indígenas e a Constituição. Porto Alegre: Fabris, 1993. p. 201-206.

Marés, Carlos Frederico. O renascer dos povos indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá, 2006.

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Mendes Júnior, João. Os indígenas do Brasil seus direitos individuais e políticos. São Paulo: Hennies, 1912.

Roth, Isabel. Genocídios invisíveis do Brasil: reflexão sobre o extermínio dos povos indígenas. Liberdades, n. 22, p. 56-76, maio-ago., 2016.