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Artigo - O limite eficacial de escritura pública com o falecimento do vendedor - Por Lourival da Silva Ramos Júnior

O objetivo deste trabalho é discutir se é possível registrar a escritura de venda/compra com decesso do vendedor, antes de registrá-la em nome do comprador. Discute-se também os critérios de pagamento e dos seus efeitos no cartório de imóveis, à luz das normas materiais e adjetivas, para saber o limite eficacial daquela escritura, que dispensa o inventário/partilha.

A prática notarial e registral é um verdadeiro estudo dinâmico do direito, quebrando as paredes estáticas do estudo acadêmico, inspirado na música Another Brick in the Wall, da banda Pink Floyd, vez que as normas, em si, não ajudam a resolver um nó górdio factual apresentado no balcão do cartório, a exemplo da temática deste trabalho. Após uma pesquisa, descobriu-se que, conquanto não seja um assunto recente, não há pacificação a seu respeito. Contudo, a compreensão dos lindes dessa pergunta, ajuda a resolver a sua própria problemática.

Pois bem, é possível registrar escritura pública de venda/compra com vendedor falecido sem inventário/partilha? Em tese, sim, mas tudo depende da forma de pagamento, se pro soluto ou pro solvendo, além de outros requisitos desvelados na prática notarial/registral. Por isso, esse artigo será apenas uma diretriz hermenêutica aos colegas tabeliães, oficiais de registro, advogados, servidores e, inclusive, às pessoas que não trabalham com o direito notarial e registral.

Inicialmente, é importante esclarecer a diferença entre os pagamentos pro soluto e pro solvendo. Se constar o pro soluto no ato notarial (escritura pública), implica uma quitação automática débito, ainda que o credor não receba um centavo. Por outro lado, se constar o pagamento pro solvendo, haverá quitação na data combinada entre as partes (alienante e adquirente).

O enunciado 655 do IX Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF), que diz o seguinte: "nos casos do art. 684 do Código Civil, ocorrendo a morte do mandante, o mandatário poderá assinar escrituras de transmissão ou aquisição de bens para a conclusão de negócios jurídicos que tiveram a quitação enquanto vivo o mandante" (grifos nosso).

Embora extinto o mandato pela morte do mandante (art. 682, inciso II, do Código Civil), continua eficaz as procurações públicas para finalizar "os negócios pendentes" (arts. 690 e 691, ambos do Código Civil de 2002), desde que o pagamento seja pro soluto, ou seja, negócios jurídicos quitados pelo mandante ainda vivo. Ressalte-se, portanto, que as referidas normas atribuem ultratividade à representação de mandato extinto1.

A finalização de negócios pendentes dar-se-á porque a dívida foi paga integralmente, ensejando o direito à quitação regular por escrito2, ou por meio equivalente, se de seus termos ou das circunstâncias resultar haver sido paga a dívida3, com assinatura manual ou eletrônica qualificada4.

A quitação é um ato jurídico unilateral e receptício porque é escrito apenas pelo credor, mas precisa ser recebido pelo devedor. A finalidade é comprovar um fato, representativo da extinção de relação obrigacional de crédito/débito, e não um meio de declaração de vontade5, a qual deverá, de fato, constar em uma escritura pública, ou uma procuração pública, ou uma promessa de compra e venda etc.

Então, quando o vendedor não cumpre em vida sua obrigação de assinar escritura de venda/compra, no qual consta a extinção da relação jurídica obrigacional, deverá ser cumprido pelos herdeiros, sob pena de configurar violação ao direito subjetivo à quitação regular (art. 319 do Código Civil) e aos deveres colaterais do contrato (art. 422 do Código Civil).

Aliás, a obrigação pré-constituída de transmissão imobiliária, consubstanciada em um ato notarial, será vista como um encargo da herança, e não como obrigação transmitida aos herdeiros na abertura da sucessão, nos moldes do entendimento pacificado sobre "a obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor", nos termos do art. 1.700, do Código Civil de 2002 (cf. também no art. 1.796 do Código Civil de 1916 e o art. 23 da lei 6.515/77)6. Em termos processuais, esse encargo da herança corresponde ao pagamento de meação disponível (art. 651, inciso III, do CPC/2015), embora seja mais lembrado o testamento.

O "encargo da herança" fará parte dos deveres do inventariante, o qual o representa ativa e passivamente o espólio7, e não os herdeiros. Por isso, não será preciso uma cláusula específica na escritura pública ou termo judicial de nomeação de inventariante, autorizando-o transferir o imóvel vendido pelo de cujus ainda vivo (e não registrado no cartório de imóveis), uma vez que o dito imóvel faz parte da meação disponível (art. 651, inciso III, do CPC/2015), e não do quinhão hereditário (art. 651, inciso IV, do CPC/2015), objeto de partilha judicial/extrajudicial.

Pois bem, essa mesma lógica do enunciado 655 da IX Jornada de Direito Civil da CJF também cabe às escrituras públicas de venda/compra, com pagamento pro solvendo, quando falece o vendedor, antes de o comprador registrá-la no cartório de imóvel. Neste caso, também há transferência do encargo da herança (responsabilidade) aos herdeiros, permitindo o adquirente registrar aquele ato notarial (escritura pública), pois faz parte da meação disponível (art. 651, inciso III, do CPC/2015).

Em termos práticos, se na escritura constar a quitação expressa do vendedor, será possível o registro no cartório de imóveis. D'outro lado, se constar pagamento parcelado, com ou sem cláusula resolutiva (art. 477 do CC/02), também parece possível o registro, mas com averbação dessa pendência de pagamento parcelado.

Embora com outras argumentações, há precedentes antigos do STF que permitem o registro de escritura pública de venda/compra com o alienante falecido (RE 18394, 2ª turma, relator para o acórdão Min. Afrânio Costa - convocado, publicado em 20/09/1951; e RE 31217, 1ª turma, rel. Min. Barros Barreto, publicado em 26/07/1956).

Contudo, o problema ocorre exatamente na ausência da quitação, afastando a lógica do enunciado 655 da IX Jornada de Direito Civil da CJF, razão pela qual será necessário analisar cum grano salis. No tocante ao pagamento pro solvendo, sem quitação do vendedor e nem cláusula resolutiva (art. 477 do Código Civil) na escritura pública, caberá uma das seguintes situações:

i) apresentar ao cartório de imóvel uma quitação emitida pelo inventariante nomeado (art. 617 do CPC/2015), desde que pagas todas as parcelas ao credor ainda vivo, transmite-se o encargo aos herdeiros, no momento da abertura da sucessão, em razão de o direito subjetivo à quitação regular da dívida; ou

ii) se não houve pagamento de todas as parcelas ao credor ainda vivo, não cabe ao inventariante emitir quitação, salvante autorização judicial (art. 642 do CPC/2015), porque o bem vendido (e não registrado) transfere-se ao espólio; e por fim,

iii) embora recebidos os pagamentos ainda vivo o credor, e caso o administrador nomeado não forneça quitação ao devedor, aplicar-se-á o rito da adjudicação compulsória8.

Assim, caberá uma notificação extrajudicial ao inventariante nomeado9 para constituição de mora10. Transcorrendo o prazo de 15 dias úteis, sem qualquer tipo de ilicitude, fraude à lei ou simulação11, o comprador poderia utilizar o procedimento de adjudicação compulsória, sem necessidade de inventário/partilha.

No tocante ao procedimento de adjudicação compulsória, tudo indica possível a sua utilização na escritura pública de venda/compra, com o decesso do vendedor antes de registro em nome do comprador, e desde que não tenha direito de arrependimento, em razão do art. 440-B do Provimento 149/2023, do CNN/CN/CNJ-Extra, o qual permite "dar fundamento à adjudicação compulsória quaisquer atos ou negócios jurídicos que impliquem promessa de compra e venda ou promessa de permuta".

Em suma, essa norma do CNJ permite a qualquer ato ou negócio jurídico, a exemplo da escritura pública de venda, que também implica transferência imobiliária, nos moldes da promessa de compra e venda, seja feito o cumprimento do encargo da herança, por meio de adjudicação compulsória.

Portanto, na esteira do enunciado 655 da IX Jornada de Direito Civil da CJF, é viável o ingresso de escritura pública de venda/compra com pagamento pro soluto, após o falecimento do vendedor, no fólio real do cartório de imóveis, porque se trata de um encargo da herança, referente à meação disponível, excluída do espólio para formação do quinhão hereditário, sendo este objeto de partilha entre os herdeiros.

Do contrário, se o pagamento da referida escritura for pro solvendo, sem cláusula resolutiva expressa e nem quitação do credor ainda vivo, não será aplicado literalmente a lógica daquele enunciado, devendo, ao revés, verificar as três situações mencionadas neste trabalho: a primeira será um encargo da herança a ser cumprido pelo inventariante, quando tiver todos os pagamentos sem quitação; a segunda não caberá quitação pelo inventariante, exceto com autorização judicial, quando não tiver todos pagamento; e por fim, a terceira será cabível a adjudicação compulsória extrajudicial, quando recalcitrante o inventariante a emitir quitação, embora todos os pagamentos recebidos pelo credor ainda vivo.

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1 Por outro lado, não olvide que, em caso de morte de uma das partes (art. 682, inciso II, do Código Civil), continua eficaz a representação e o próprio mandato na procuração em causa própria (art. 685 do Código Civil). Para estudo dessa matéria, ver RAMOS JÚNIOR, Lourival da Silva. Procuração em causa própria e seus efeitos imobiliário e fiscal. Revista de direito imobiliário, julho-dezembro/2012, p. 151-176. Para uma leitura resumida, ver o artigo publicado no site Migalhas, de autoria do Prof. Carlos Eduardo Elias de Oliveira, intitulado A procuração "em causa própria" como forma indireta de alienação de bens: ITBI e registro de imóveis, datado de 7 de julho de 2021, disponível aqui. Por fim, também há jurisprudência do STJ, a exemplo do Resp n.º 1.962.366-DF, 3ª turma, relatora Ministra Nancy Andrighi, DJe 02/03/2023.

2 Cf. o arts. 319 e 320, ambos do Código Civil.

3 Cf. o parágrafo único do art. 320 do Código Civil.

4 Cf. o art. 5º, § 2º, inciso IV, da Lei Federal n.º 14.063/2020, c/c o art. 219 do Código Civil.

5 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Adimplemento e extinção das obrigações. São Paulo: RT, 2007, p. 193.

6 Oliveira, Euclides de. Alimentos: transmissão da obrigação aos herdeiros. Disponível aqui, datado em 30 de novembro de 2023; e GALLOTI, Isabel. O novo código civil e a transmissão da obrigação alimentar aos herdeiros do devedor. Disponível aqui, datado em 30 de novembro de 2023.

7 ASSIS, Araken de. Inventário e partilha. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 67 ("O inventariante não representa individualmente os herdeiros e os legatários.") e p. 77 ("O inventariante representará o espólio em juízo, ativa e passivamente" (art. 75, VII, c/c art. 618, I), (...). Quer dizer, a lei confere capacidade processual para o inventariante representar a universalidade da herança, assumindo uma posição neutra, ou seja, atua em favor do patrimônio do qual se encontra encarregado, e não em nome do próprio ou alheio. A figura da representação não calha propriamente ao inventariante: atua como parte de ofício.".

8 Cf. o art. 216-B da Lei n.º 6.015/73 c/c o Provimento n.º 149/2023, do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra).

9 Cf. o art. 617 do CPC/2015 c/c o art. 216, § 1º, inciso II, da Lei n.º 6.015/73, alterada pela Lei n.º 14.383/2022

10 Cf. o art. 440-G, § 6º, inciso VII, do Prov. 149/2023, do CNN/CN/CNJ-Extra.

11 art. 440-I, do Prov. 149/2023, do CNN/CN/CNJ-Extra.

Fonte: Migalhas