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Artigo: A MP 1.085/21 e os prazos no Registro de Imóveis – Por Sérgio Jacomino

A redação da MP 1.085/21 é bastante confusa e mesmo defectiva em vários pontos. Por dever de ofício, os registradores devem buscar haurir da reforma um sentido de sistema que o exegeta lamentavelmente não encontra. Entretanto, isso não nos escusa de buscar o melhor sentido que a Medida pode revelar. Afinal, “cumpre atribuir ao texto um sentido tal que resulte haver a lei regulado a espécie a favor e não em prejuízo de quem ela evidentemente visa a proteger”1.

Nesta primeira nótula de estudos, buscamos compreender o que nos revela a lei na combinação dos artigos 9º, 188, 205 e 206-A da Lei de Registros Públicos, todos alterados pela recente Medida Provisória 1.085/21.

Vamos nos achegar a eles com alguma reflexão vestibular.

LRP ou CPC?

A primeira questão que assalta o exegeta é a contradição que logo se nota entre o art. 9º e seus parágrafos e o art. 188, para ficarmos no âmbito da LRP. O primeiro estabelece que os prazos serão contados em dias e horas úteis para o ciclo de vigência da prenotação (§1º), devendo-se observar ainda “os critérios estabelecidos na legislação processual civil” (§3º). Já o segundo prevê que o prazo para exame e consumação do registro será de dez dias, “contado da data do protocolo”, sem precisar se este prazo será contado em dias úteis ou corridos.

A prenotação e seus efeitos representam um aspecto nuclear do sistema. Dependendo da interpretação que se dê ao conjunto normativo, os direitos materiais do interessado serão diretamente afetados.

Tradicionalmente, a data do protocolo sempre demarcou o dies a quo, significando que o prazo decadencial da prenotação se inauguraria com a protocolização – e não como cravado como regra geral no §1º do art. 9º da LRP, por analogado da legislação processual civil (§3º).

A prioridade registral, que nasce da prenotação, é direito material2. O art. 1.246 do Código Civil estabelece uma regra muito clara, não modificada pela MP 1.085/21:

“O registro é eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro, e este o prenotar no protocolo”.

Além disso, o art. 186 da LRP dispõe que o número de ordem determina a prioridade do título, “e esta a preferência dos direitos reais”. O direito de preferência, típico atributo dos direitos reais, se define, efetivamente, com a prioridade que decorre do lançamento no protocolo.

O teor art. 188 da LRP é revérbero da lei civil, pois os prazos se contam da data do protocolo, não assimilando, expressamente, as regras de direito processual civil.

Como ficamos?

Dias e horas úteis

O que se terá buscado com a modificação? Pode-se cogitar que a referência se apoiou nos artigos 219 e 224 do CPC. Pelo primeiro, verifica-se que, para a contagem de prazos, devem ser computados somente os dias úteis. Pelo segundo, exclui-se o dia do começo (dies a quo) e inclui-se o dia do vencimento (dies ad quem).

Além disso, inovou-se com o estabelecimento de uma referência até então desconhecida na legislação registral (e processual civil, salvo o §3º do art. 107 do CPC) – as horas úteis para contagem de prazo de prenotação (§1º do art. 9º da LRP).

A contagem dos prazos estabelecidos em horas se faz minuto a minuto (§4º do art. 132 do CC), desta maneira, adotado o critério da MP, temos 3 alternativas: (a) o termo inicial passaria a correr no 1º minuto do dia útil seguinte à prenotação, com termo final para o minuto inaugural do dies ad quem, o que soa absurdo, ou (b) os prazos se iniciariam no horário da protocolização e se esgotariam no minuto seguinte do mesmo horário do termo final ou (c) a “hora útil” indicaria apenas o tempo que calha no interregno do expediente, sem qualquer repercussão na definição do prazo de cessação dos efeitos da prenotação, sendo, nesse caso, perfeitamente dispensável a sua adoção.

A alusão a “horas” na prestação do serviço aparece igualmente como referência ao tempo de expedição de certidões – inc. I, §10º do art. 19 -, além da clássica exceção à regra de prioridade consagrada no art. 192 da LRP.

A inovação legislativa parece conotar eficiência e modernidade pela mera adjetivação de “eletrônicos” pespegada aos Registros de Imóveis e com contagem do tempo em “horas”!3

O fato é que seguimos sem uma perfeita compreensão das razões que levaram os autores a se socorrer do conceito de “horas úteis”, nem os benefícios que a inovação possa ter trazido ao sistema. A inovação soa muito mais como mero slogan do que conquista efetiva de eficiência. Enfim, parafraseando McLuhan, buscou-se resolver os problemas de hoje, com as ferramentas de ontem, baseado em conceitos da véspera4.

Entretanto, para não deixar escapar a oportunidade, o pressuposto da disposição parece ter sido o funcionamento ininterrupto das plataformas eletrônicas.

O sistema da CNIB – Central Nacional de Indisponibilidade de Bens, por exemplo, funciona “24 horas por dia, em todos os dias da semana” (art. 18 do Provimento CNJ 39 de 25/07/2014). O seu artigo 8º reza:

“A partir da data de funcionamento da Central Nacional de Indisponibilidade de Bens – CNIB os oficiais de registro de imóveis verificarão, obrigatoriamente, pelo menos na abertura e uma hora antes do encerramento do expediente, se existe comunicação de indisponibilidade de bens para impressão ou importação (XML) para seu arquivo, visando o respectivo procedimento registral”

Logo, a ideia de extrapolação do horário de expediente, com o oferecimento de serviços como protocolo eletrônico, por exemplo, poderá ter levado os autores a pensar em mecanismos de acolhimento de títulos em horários além do expediente ordinário.

O impacto das novas tecnologias nos processos registrais é matéria que carece de regulamentação. A superação de problemas que podem se revelar com a concorrência de serviços híbridos (balcão X WebService X API’s) precisam ser resolvidos com uma regulação uniforme e coerente em todo o território nacional, o que não se deu com as disposições consagradas na reforma. Pense-se, por exemplo, em títulos contraditórios protocolados no e-Protocolo e no balcão do Cartório.

Em São Paulo, cravou-se nas Normas de Serviço da Corregedoria Geral a regra de se verificar na abertura e encerramento do expediente, “bem como a cada intervalo máximo de duas horas”, se existe comunicações no SREI (indisponibilidades, penhoras online, títulos eletrônicos etc.), adotando-se prontamente as providências necessárias5.

Por outro lado, a expressão – “horas regulamentares de expediente” (inc. II, §2º, art. 9º) – atrai a ideia de que o tempo deva ser fixado por regulamento local, sopesadas as circunstâncias peculiares, como feriados municipais, suspensão do expediente por fatos extraordinários, interrupção de comunicações eletrônicas etc. A hipótese de interrupção por “motivo de força maior declarado” acha-se previsto na própria LRP (art. 208).

Os dias e horários de expediente devem fixados pelo “juízo competente”, assim definido na organização judiciária dos estados, “atendidas as peculiaridades locais” (art. 4º da Lei 8.935/1994). A locução indica, ainda, certa discricionariedade na fixação do horário de expediente. O cenário se torna complexo quando são contados dias úteis.

Uma vez mais, não devemos nos esquecer que as operações de envio de títulos ao registro tendem a migrar para os meios eletrônicos. Advinham-se os problemas de intercorrência de títulos contraditórios postados em plataformas híbridas. A regulação local não dá conta de transações que ocorrem em plataformas eletrônicas compartilhadas.

No âmbito dos registros eletrônicos, toda a configuração espaço-temporal, que se acha consagrada na base de várias disposições legais, deve ser inteiramente repensada. Nestes casos, competente será a Corregedoria Nacional de Justiça para fixar os critérios e definir parâmetros para dar regularidade aos processos formais da protocolização.

Recidiva de um problema superado

A verdade é que a questão aqui discutida não é nova e sua recidiva no cenário das propostas de reforma da LRP causa perplexidade. O tema já havia sido agitado após a entrada em vigor do CPC (2016). Em forma de consulta, dirigida à Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo, formulavam-se dúvidas em forma de quesitos:

a)    “À míngua de regramento específico, o art. 219 do CPC passou a regular atos relativos a Registros Públicos?”.

b)    Se positivo, “a norma processual incide sobre todos os prazos previstos na Lei 6015/73 e nas NSCGJ, incluindo prenotações, ou apenas quando se tratar de prazo para a prática de ato em típico procedimento administrativo, como dúvidas e retificações de área?”6.

As respostas foram adequadas e as conclusões são ainda hoje válidas e podem ser aproveitadas para iluminar as questões que exsurgirão com esta mudança legislativa.

De início, os pareceristas destacam que a regra estampada no art. 15 do CPC é de caráter processual, não incidindo sobre atos de direito material. De fato, o art. 219 do CPC, ao cuidar especificamente do método para contagem de prazos, dispõe que a regra se aplicaria somente aos prazos processuais. Vamos ao dito artigo e a seu parágrafo único:

Art. 219. Na contagem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os dias úteis.

Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se somente aos prazos processuais.

Os magistrados ainda consignariam que o debate instaurado pela entidade de classe “apenas se justificaria quanto a típicos procedimentos administrativos, mormente à vista da explícita menção à ‘ausência de normas que regulem processos (…) administrativos’”, como se acha inscrito no art. 15 do mesmo CPC. Concluiriam que os “prazos para a prática de atos de direito material não experimentam influência dos artigos aludidos”.

A distinção que agora calha, entre prazos decadenciais e preclusivos, a Corregedoria Bandeirante, já à época do parecer citado, indicaria que o tratamento deveria ser homogêneo, mesmo para os processos administrativos típicos do Registro – como retificações, execuções extrajudiciais, usucapião, bem de família, Torrens etc. Fundado neste entendimento, seria editado o Provimento CG 19/2017, e com isso “sepultando maiores controvérsias”7. Eis a modificação consolidada nas NSCGJSP:

“Contam-se em dias corridos todos os prazos relativos à prática de atos registrários e notariais, quer de direito material, quer de direito processual, aí incluídas, exemplificativamente, as retificações em geral, a intimação de devedores fiduciantes, o registro de bem de família, a usucapião extrajudicial, as dúvidas e os procedimentos verificatórios”8.

Os problemas que poderão advir da mudança do método de contagem de tempo já deveriam ser conhecidos de sobejo. Por exemplo, como conciliar as regras da LRP com o CPC nos casos de postergação – quando o dia do início e do vencimento coincidirem com dias em que o expediente tenha sido encerrado antes ou iniciado depois da hora regulamentar – ou houver indisponibilidade da comunicação eletrônica (§1º do art. 224 do CPC)?

Estas intercorrências devem ser sopesadas – especialmente no que respeita à comunicação eletrônica entre as serventias e o ONR – Operador Nacional do Registro de Imóveis, como já assinalado.

A propósito, ressaltando “a importância da previsibilidade, trazendo segurança jurídica a reboque, e da uniformidade de condutas”, consta de o r. parecer:

“É bem de ver que a opção legislativa pela contagem de prazos processuais em dias úteis trouxe dificuldades inéditas aos manejadores do Direito. A existência de feriados estaduais e municipais já basta para desnudar a complexidade do sistema encampado pelo novo CPC. Nem se olvide o problema que a presença de feriados móveis do calendário nacional, como Carnaval e Páscoa, pode propiciar, mormente quando da necessidade de reexame do tema tempos depois de escoado o prazo, como nos recursos, a demandar memória e pesquisa de parte dos profissionais da área jurídica. Ademais, a distinção entre prazos de direito material, a serem contados em dias corridos, e de direito processual, a serem contados em dias úteis, segue sendo palco de intermináveis debates doutrinários e jurisprudenciais, dada a dificuldade de fixar conceitos que nitidamente segreguem uns de outros”9.

Por fim, seria o caso de se perquirir: por qual razão a regra do art. 9º terá sido inserida na reforma já que, tradicionalmente, os prazos para as várias especialidades (e modalidades de processos registrais) sempre foram indicados no quadrante respectivo da lei? O art. 188 é o mais impressivo dos exemplos, mas não só, como se pode ver facilmente no texto da Lei de Registros Públicos.

Melhor seria, à evidência, que se mantivessem as regras já consagradas há muito tempo e isto por uma única razão: como se verá, a reforma não representou ganho de eficiência, nem preservou, como seria esperável, o direito dos interessados no registro. Ou seja: não ganham nem o mercado, nem o crédito imobiliário, tampouco a administração, nem os interessados, usuários comuns do serviço registral.

Seja como for, se divisa um sistema dual, complexo, de contagem de prazos, caso a MP 1.085/2021 não seja alterada e reformada no transcurso do processo legislativo.

Conclusões

É deveras confuso todo o articulado. Não é possível dar respostas seguras a um debate apenas iniciado, com a apresentação de centenas de emendas no Congresso Nacional, na dependência de regulamentação pela Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ.

O que parece seguro afirmar é que a reforma não honrou as tradições do direito registral brasileiro, malbaratando suas regras estáveis e seguras, provadas pela experiência, nem facilitou a operação e compreensão do sistema pelos usuários e operadores, pouco acrescentando em termos de eficiência, agilidade e segurança jurídica.

A propósito do tema de agilidade e rapidez, como supedâneos de eficiência e racionalidade sistêmica, voltarei ao assunto nos comentários sobre o SERP – Sistema Eletrônico dos Registros Públicos, outro problema criado no embalo do fenômeno de “solucionismo tecnológico”10 que seduz e encanta e nos desvia do rumo do aperfeiçoamento e modernização das instituições registrais.

Fonte: Migalhas