Clipping - Geogracia - Governança fundiária digital: como o Meu Imóvel Rural enfrenta um problema secular

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A regularização fundiária no Brasil é marcada por polêmicas e impasses: cadastros fragmentados, informações desatualizadas, sobreposições de registros e até mesmo fraudes têm alimentado um cenário de insegurança jurídica que afeta tanto pequenos agricultores quanto grandes empreendimentos. No centro desse debate, surge o Meu Imóvel Rural, iniciativa do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) que promete enfrentar um dos nós históricos da governança territorial brasileira: a integração e a harmonização dos dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR), do Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) e do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef).

Para compreender melhor a concepção, os objetivos e os próximos passos da plataforma — e até que ponto ela pode realmente oferecer mais transparência e confiabilidade a um tema tão sensível — conversamos com Henrique Dolabella, diretor do Cadastro Ambiental Rural no MGI, Soledad Castro, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental da Secretaria de Governo Digital/MGI, e Daniela Marques, coordenadora-geral de Soluções Estratégicas da Secretaria de Governo Digital/MGI.

Como o Meu Imóvel Rural foi pensado para garantir que agricultores com pouca familiaridade digital compreendam as informações exibidas, especialmente em mapas e relatórios técnicos, sem risco de interpretação equivocada?

A concepção da aplicação Meu Imóvel Rural teve como ponto de partida o diálogo com usuários da ponta. Nessas conversas, foram identificadas dúvidas recorrentes que orientaram o desenho e o desenvolvimento da aplicação. As principais dificuldades mapeadas foram o acesso às informações cadastrais: muitos detentores de imóveis não sabem onde ou como acessar seus cadastros, já que, frequentemente, foram feitos por terceiros. A falta de familiaridade com os cadastros e sistemas implica uma dificuldade para acessar os dados, documentos e certidões dos imóveis. Também se identificou a baixa familiaridade com tecnologias digitais: agricultores com baixo letramento digital relatam dificuldades para logar, acessar documentos e usar sistemas governamentais.

O Meu Imóvel Rural foi estruturado em três pilares que buscaram solucionar essas dificuldades: arquitetura da informação, layout e usabilidade, e linguagem simples. A navegação foi planejada para ser intuitiva, marcando de forma clara os diferentes níveis da aplicação: o primeiro, onde são listados os imóveis, e o segundo, no qual é possível visualizar dados, mapas e baixar documentos. Desse modo, no primeiro nível, ou seja, na primeira tela, os imóveis são agrupados pelas bases em que foram encontrados (CAR, SNCR ou Sigef), e basta um clique para acessar as informações detalhadas de cada imóvel.

Os dados são exibidos em uma lógica semelhante aos formulários originais das bases governamentais, mas com uma interface mais amigável e responsiva, desenhada com foco nos dispositivos móveis – principal meio de acesso à internet no ambiente rural. Nos casos em que a aplicação reconhece automaticamente que registros de diferentes bases se referem ao mesmo imóvel, os dados são apresentados juntos, na mesma tela. A organização em abas e seções tipo “sanfona” permite que o detentor do imóvel reconheça e compare dados semelhantes. Por exemplo, ele pode visualizar apenas os dados de localização, ou apenas os dados de documentação, do imóvel no CAR e no SNCR. Isso permite uma visualização comparativa, fundamental para apoiar as diretrizes da IND (Infraestrutura Nacional de Dados).

Na visualização de mapas, as informações do CAR e do Sigef são exibidas sobre um mesmo mapa, mas com cores distintas e acompanhadas de legenda. Isso ajuda a identificar divergências geoespaciais e necessidades de ajuste. A linguagem utilizada na aplicação Meu Imóvel Rural levou em conta as expressões usadas pelos próprios detentores de imóveis e agricultores. Por exemplo, embora os dados venham do SNCR, os usuários se referem a eles como “dados do CCIR”. A aplicação, portanto, passou a adotar o termo mais familiar ao público. Esse cuidado se repete em outras áreas da plataforma, garantindo que a informação seja compreensível para quem realmente utiliza o serviço.

Considerando que os cadastros rurais historicamente apresentam falhas e dados desatualizados, quais mecanismos asseguram que as informações exibidas sejam confiáveis e reflitam a realidade atual do imóvel?

O Meu Imóvel Rural foi concebido como um hub de serviços, que reúne e apresenta, de forma integrada, os dados e informações disponíveis nas bases oficiais de governo. Após o login com CPF do usuário, Meu Imóvel Rural consulta as bases de origem por APIs, e exibe o conteúdo original de cada base. No entanto, a proposta do Meu Imóvel Rural é contribuir para aprimorar a consistência entre os cadastros. Para isso, o desenvolvimento da aplicação envolveu testes não apenas com usuários finais, mas também com apoiadores técnicos e gestores públicos, buscando mapear, do ponto de vista da Administração Pública, as demandas de gestão e uso das bases de dados governamentais.

Entre as demandas mais recorrentes, foram identificadas a dificuldade de reconhecer um mesmo imóvel em diferentes bases, a presença de dados desatualizados em algumas fontes, inconsistências entre cadastros de sistemas distintos e a dificuldade de contactar o detentor de fato do imóvel, já que muitos cadastros são realizados por terceiros. A aplicação Meu Imóvel Rural busca enfrentar essas questões por meio de diferentes estratégias. Primeiramente, oferece transparência ao titular do imóvel, permitindo que ele visualize os dados cadastrados para seus imóveis, identifique eventuais divergências entre os sistemas e perceba a necessidade de atualização junto ao órgão de origem.

A plataforma está em constante evolução e incorporará recursos que não apenas tornam possível a identificação de inconsistências, mas também emitem alertas personalizados ao detentor do imóvel, indicando pendências ou oportunidades de regularização. Adicionalmente, por intermédio de uma funcionalidade de notificações, a aplicação também pretende atuar como um canal de comunicação direto entre o Estado e os proprietários ou possuidores, disseminando informações sobre obrigações legais, bem como sobre direitos e serviços disponíveis.

Como a integração entre bases distintas — CAR, SNCR e Sigef — foi estruturada para evitar duplicidades e contradições, e de que forma o agricultor pode perceber se os dados mostrados já estão devidamente harmonizados?

Resposta – No contexto da integração entre as bases do CAR, SNCR e Sigef, duplicidade e divergência de dados são desafios que precisam ser enfrentados com uma abordagem de governança de dados. Isso envolve três etapas principais: identificação de um ou mais códigos-chave que permitam reconhecer o mesmo imóvel em diferentes sistemas; definição, entre os órgãos gestores, das regras de precedência de dados; e execução do processo de harmonização, com base nesses critérios. Trata-se de uma ação coordenada que envolve diferentes órgãos e demanda articulação contínua entre os gestores, curadores e demais responsáveis pelas bases.

Meu Imóvel Rural foi desenvolvido como uma ferramenta de apoio à operacionalização do processo de integração e governança de dados. Embora a aplicação ainda não altere os dados nas bases originais, ela torna as inconsistências visíveis e ajuda o agricultor a entender quando há divergências e onde estão localizadas, para que ele mesmo efetue as retificações necessárias nos sistemas originais. Hoje, nos casos em que é possível identificar o mesmo imóvel em diferentes sistemas (como CAR e SNCR), a plataforma compara atributos-chave — como área, município e estado. Se houver divergências, o usuário é alertado por meio de um aviso visual (em amarelo), que indica a necessidade de ajustes nas bases de origem.

Além disso, o Meu Imóvel Rural sobrepõe os dados geográficos do CAR e do Sigef, permitindo ao usuário identificar visualmente se há conflitos de localização ou sobreposição de áreas no mapa. Essas informações são apresentadas de forma intuitiva, com sinalizações claras de possíveis inconsistências. É importante destacar que a versão atual da plataforma é apenas a primeira de uma série de atualizações planejadas. Novas funcionalidades vêm sendo desenvolvidas com base em testes de usabilidade. Está prevista, inclusive, uma seção específica dentro da aplicação, na qual será possível comparar os dados de um mesmo imóvel entre diferentes sistemas. Nessa funcionalidade, o detentor do imóvel poderá visualizar as divergências atributo por atributo e será notificado sobre as necessidades de ajustes e atualizações.

Se o agricultor identificar inconsistências ou erros nos dados apresentados, qual é o caminho prático para reportar e corrigir essas falhas, e em quanto tempo a plataforma se compromete a atualizar as informações?

Atualmente, o Meu Imóvel Rural atua como uma plataforma de visualização, consumindo dados diretamente das bases oficiais (como CAR, SNCR e Sigef), sem permitir alterações nesses sistemas. Por isso, quando a aplicação identifica erros ou inconsistências nos dados, o usuário é orientado a acessar as bases de origem para realizar as correções necessárias. No entanto, estão previstas evoluções importantes na plataforma. Em versões futuras, Meu Imóvel Rural passará a funcionar como um intermediador (broker), permitindo que o próprio usuário solicite atualizações diretamente pela aplicação. Essas solicitações serão então encaminhadas aos sistemas responsáveis, respeitando as regras e fluxos de cada órgão gestor.

A evolução será implementada de forma gradual, com o devido cuidado para garantir a integridade, a confiabilidade e a segurança dos dados, além de preservar a privacidade dos usuários. A plataforma também deve incluir mecanismos de rastreamento das solicitações, promovendo maior transparência no processo de correção e atualização cadastral.

Fonte: Geogracia
Arte: Governo Federal