Artigo – Cláusulas resolutivas: cumprimento das condições após derrubada do veto à Lei 14.757 – Por Marcos Alberto Pereira Santos

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O Direito brasileiro está pronto para viver um novo patamar de debates sobre a regularização fundiária. Assunto que merecidamente veio à ribalta nesta última década, ganhou simpatia da comunidade jurídica e entrou completamente na agenda legislativa.

Houve então, a contento, uma produção legislativa em massa, com muitos diplomas jurídicos tratando sobre o assunto, principalmente as Leis 11.952/2009 (regularização rural e urbana sobre áreas da Amazônia Legal) e 11.977/2009 (regularização de imóveis urbanos) e, de arremate, a Lei nº 13.465/2017 que, além de tratar de institutos jurídicos novos, como direito de laje, alterou diversos diplomas legais, com o intuito de ultimar a questão fundiária no Brasil.

O tema é tão importante, sobretudo pelo prisma de que a regularização é, em si, sob muitos aspectos, instrumento de aplicabilidade plena de muitos direitos fundamentais, tanto numa ótica individual como social, principalmente em tempos em que a universalização dos direitos de propriedade não pode ser dissociada do olhar ambiental.

Desta forma, além da maturidade jurídica, se tem uma consciência política de que a regularização está umbilicada com a emergência climática, à medida que da sua implementação ela traz respostas claras sobre o assunto, principalmente quando pretende potencializar o princípio da função social da propriedade.

Não obstante a importância da temática (com boas produções legislativas), os resultados já colhidos (muitos imóveis urbanos e rurais já regularizados), o Direito brasileiro talvez já satisfeito com debate do tema em si, deixou passar ao largo muitas questões acessórias que, apesar de periféricas, não poderiam jamais ser olvidadas, sob pena de se trazer pouca efetividade para a própria regularização.

A mais emergente, certamente, é o entendimento das cláusulas que impõem condições resolutivas nos títulos rurais.

Das condições resolutivas
Na esteira do que já dito alhures, do binômio regularização/função social da propriedade, as titulações dos imóveis, sobretudo os rurais, não são perfectibilizadas sem que o beneficiário, sobre certo período de tempo, cumpra determinadas condições. É justamente nessa relação contratual, que no nosso sentir, há a beleza do sistema, uma vez que existe um favor estatal que contrapõe uma obrigação de um particular e o resultado dessa equação é um sinalagama justo.

Tomando emprestado o conceito do Direito Civil, na regularização fundiária, a condição resolutiva é elemento acidental (não essencial) do negócio jurídico, que atua no plano da eficácia (e não da validade) do acontecimento. Tem previsão no artigo 127 do Código Civil: Artigo 127: “Se for resolutiva a condição, enquanto esta se não realizar, vigorará o negócio jurídico, podendo exercer-se desde a conclusão deste o direito por ele estabelecido”.

Pela definição infere-se que, enquanto a condição resolutiva não se implementar, o ato vigorará perfeitamente, podendo se exercer os direitos imanentes do negócio.

Visualizando na prática a condição resolutiva na regularização fundiária, temos que os títulos ou termos outorgados pertenceram ao beneficiário, que poderá exercer os direitos de propriedade dele decorrentes. Entretanto, caso descumpra alguma das condições impostas (condições resolutivas), o negócio se resolverá, restará desfeito, tornando sem efeito o título ou termo anteriormente cedido.

O beneficiário, portanto, receberá a área regularizada (não importando se gratuita ou onerosamente) e ficará obrigado a não praticar nenhuma das condições resolutivas, que se implementadas, resolverá o negócio, cessando os efeitos da alienação ou cessão.

As condições resolutivas previstas na Lei de Regularização dada a sua importância, além de já estarem expressas em lei (em que há presunção de que todos têm conhecimento em face às disposições da Lei de Introdução ao Código Civil), também devem constar no título que será levado ao registro público, que também tem efeito erga omnins.

Por isso, o artigo 15º da Lei nº 11.952/09, nos casos de regularização rural, exige que o título de domínio ou termo de concessão de direito real de uso deverão conter, entre outras, cláusulas sob condição resolutiva pelo prazo de dez anos, além da inalienabilidade do imóvel, as seguintes condições: (1) a manutenção da destinação agrária, por meio de prática de cultura efetiva; (2) o respeito à legislação ambiental, em especial, quanto ao cumprimento do disposto no capítulo VI da Lei no 12.651, de 25 de maio de 2012; (3) a não exploração de mão de obra em condição análoga a de escravo; (iv) as condições e a forma de pagamento.

Comprovação do cumprimento das condições
Então, as condições resolutivas nunca foram em si o problema da regularização, mas como o particular comprovar o seu efetivo cumprimento.

Com efeito, há previsão expressa da necessidade averbação da certidão de liberação de condições resolutivas dos títulos de domínio resolúvel emitidos pelos órgãos fundiários federais na Amazônia Legal (item 31, do artigo 167, II, da Lei nº 6.015/73); como também há previsão em vários outros textos, como no Decreto 10.592/2020, em seu artigo 44: “a certidão de liberação das condições resolutivas, de caráter declaratório, será averbada à margem da matrícula do imóvel previamente à alienação do bem pelo beneficiário do título de domínio ou do título de concessão de direito real de uso”.

Embora a comprovação e a liberação, que deveriam ser um procedimento administrativo simples (até porque é mero ato declaratório), na prática percebeu-se que os órgãos fundiários empregaram uma carga discricionária tão aguda, em que houve uma desagradável sensação de que era mais simples regularizar um imóvel rural (obter um novo título) do que se obter a certidão liberatória, mesmo a parte tendo cumprido todas as condições, após longo decurso de tempo.

Cabe pontuar que a Lei 11.952/2009 não foi a primeira legislação a tratar a regularização fundiária na Amazônia Legal portanto, mesmo antes, ainda que incipiente, sempre houve titulação de terras na região, pois havia um regime jurídico diferente do que o regramento atual; sendo os mais explícitos o Grupo de Terras do Araguaia Tocantins (Getat); Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e, outros órgãos fundiários. Mesmo antes desta lei já outorgavam títulos com ou sem condições resolutivas; porém, no geral, as condições, quando presentes, eram, relativas a um período mínimo de ocupação (geralmente dez anos) e a obrigatoriedade de pagamento pelo preço.

Ocorre que, vencido o lapso temporal do título e mesmo quitado, o Instituto Fundiário sempre teve dificuldades de fornecer a certidão de extinção de cláusula ex ofício ou de forma mais célere (até porque internamente sempre se concebeu esse ato administrativo como algo solene, exigindo-se na maioria dos casos até mesmo vistoria in locu); então, na prática, o máximo que o usuário conseguia obter era uma certidão de quitação do título, já o prazo mínimo de ocupação poderia ser provado pelo tempo de emissão do título.

O grande problema que surgiu de tudo isso é que muitos proprietários, não obstante, mesmo cumprido integralmente suas obrigações ainda não possuem uma liberação formal (certidão extinção de cláusula), seja porque a legislação da época não era clara ao exigir, ou porque o próprio procedimento de emissão desta certidão era (e ainda é) mais moroso que o da titulação, ou porque muitos títulos sequer vinham com essa condição impressa.

Na prática, muitos proprietários, atualmente, estão irregulares (sem certidão de cumprimento da extinção de cláusula), embora tenham adimplido com todas as suas obrigações; e o problema é maior quando nessas situações ocorre a transferência do imóvel para um terceiro, sem anuência do órgão fundiário, que entende que houve violação da condição resolutiva. Constantemente há ações judiciais exigindo a resolução do título e retomada do imóvel, enfim, um caos, uma insegurança jurídica pior que a ausência de titulação.

Nova forma de comprovar as condições resolutivas
Felizmente, na esteira de trazer uma solução ao problema, a Lei nº 14.757/2023 incluiu dois artigos na Lei nº 11.952/2009, no sentido de se permitir regularizar e se comprovar as condições pendentes:

“Art. 15-A. Caso o contrato emitido antes de 25 de junho de 2009 esteja pendente de pagamento, os beneficiários originários, herdeiros ou terceiros adquirentes de boa-fé que ocupem e explorem o imóvel poderão adimplir integralmente o saldo devedor e receber a quitação do contrato, hipótese em que será aplicável a extinção das cláusulas resolutivas, observado o disposto no art. 16-A desta Lei.

§1º. O terceiro de boa-fé proprietário de outros imóveis rurais poderá ter seu requerimento atendido, desde que o somatório das áreas de sua propriedade com o imóvel em estado de inadimplência não exceda a 15 (quinze) módulos fiscais.

§2º. Ato do Poder Executivo disporá sobre as condições financeiras e os prazos para a renegociação, observados os limites estabelecidos nesta Lei.’

‘Art. 16-A. Ficam extintas as cláusulas resolutivas constantes dos títulos emitidos até 25 de junho de 2009 que atendam às seguintes condições:

I – comprovação, pelo proprietário ou possuidor, do adimplemento das condições financeiras, observado o previsto no art. 15-A desta Lei;

II – área total por proprietário ou possuidor não superior a 15 (quinze) módulos fiscais;

III – comprovação de inscrição do imóvel rural no CAR -Cadastro Ambiental Rural.

§1º É vedada a concessão dos benefícios previstos nesta Lei quando houver a ocorrência de exploração de mão de obra em condição análoga à de escravo na área a ser regularizada.

§2º A extinção das cláusulas resolutivas não afasta a responsabilidade por infrações ambientais, trabalhistas e tributárias.

§3º A liberação dos títulos de domínio sem a observância do disposto nesta Lei implica responsabilidade civil, administrativa e penal dos responsáveis.”

Ocorre que, embora houvesse um apelo e um clamor endossando a nova redação por vários atores públicos, entidades de classe produtiva e até mesmo movimento sociais, inclusive, o relator na Câmara dos Deputado do projeto de lei que culminou na inclusão desses dispositivos foi parlamentar de partido de esquerda [1], o Executivo vetou a inclusão destes dispositivos, sob a premissa equivocada de que:

“Em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público ao transferir para o patrimônio de particulares imóveis rurais que, por força das cláusulas resolutivas dos títulos do INCRA -Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária haviam retornado ao patrimônio público. Tendo em vista que poderia haver interesse público quanto à destinação desses imóveis, a transferência a particulares poderia criar grande insegurança jurídica.

Ademais, a proposição legislativa incorre em vício de inconstitucionalidade ao violar o ato jurídico perfeito (art. 5º, caput, inciso XXXVI, da Constituição), na medida em que se propõe a extinguir cláusulas resolutivas de contratos que se encontram resolvidos em razão do descumprimento das condições impostas por essas cláusulas que se pretende agora extirpar.

A proposta legislativa também contraria o comando constitucional da segurança jurídica, ao anistiar o inadimplemento contumaz de contratos firmados por particulares com o Poder Público e incentivar o descumprimento de contratos administrativos em curso e futuros” [2].

Não é difícil trazer argumentos jurídicos e políticos para discordar das razões do veto, principalmente porque ele parte da premissa equivocada de que essa “facilitação” de se comprovar o cumprimento das cláusulas resolutivas iria transferir para o patrimônio de particulares imóveis que são do poder público. Na verdade, os imóveis já foram alienados e estão com os particulares, que já cumpriram suas obrigações e, agora, querem que o Estado, de forma mais célere, saia da mora e ateste essa condição.

Da forma como consta no veto, parece que as condições resolutivas deixariam de existir e qualquer imóvel poderia pertencer a um particular de forma indiscriminada. Quando, na verdade, as cláusulas e condições continuarão a existir de acordo com os regramentos atuais, porém, apenas as suas comprovações é que terão um rito de comprovação simplificado.

Na verdade, parece que o Executivo se perdeu no debate. Não estava se criticando as cláusulas em si, que sempre existiram e continuarão a existir, até porque se houver o descumprimento, a própria lei no artigo 18, assegura o processo de reversão da área em favor do erário. Assim, o foco não é que as liberações deixariam de existir, mas como o particular poderia obter sua liberação dentro de um prazo razoável, sem a subjetividade estatal para sua obtenção.

Felizmente, o Congresso derrubou o veto em 22/5/2024, e foi promulgada a inclusão dos artigos 15-A e 16-A, na Lei 11.952/2009, agora com a possibilidade de comprovar o cumprimento das obrigações de forma objetiva.

Insta pontuar, no entanto, que a novel inserção só abarca o contrato emitido antes de 25 de junho de 2009, ou seja, apenas os títulos emitidos antes da edição da Lei 11.952/2009.

Comprovação objetiva
Em termos práticos, a comprovação será ex vi legis, decorrendo da própria lei, sem qualquer carga discricionária. Exigir-se-á apenas a comprovação de pagamento do título, observação do limite do imóvel (não superior a 15 módulos fiscais), comprovação de inscrição do imóvel no Cadastro Ambiental Rural e comprovação de não haver a ocorrência de exploração de mão de obra em condição análoga à de escravo na área a ser regularizada.

Dado que agora o parâmetro é completamente objetivo (em que todos os documentos exigidos podem ser obtidos por canais oficiais e diretamente por qualquer interessado), sem necessidade de vistoria pelo órgão fundiário, não há dúvida, que essa comprovação pode ocorrer diretamente perante o registro de imóveis competente, em que o oficial, qualificará os documentos apresentados e se for o caso, o requerimento do interessado poderá promover a averbação do cumprimento das condições, devendo apenas observar que a liberação dos títulos de domínio sem a observância do disposto na lei implica responsabilidade civil, administrativa e penal dos responsáveis.

Considerações finais
Festejada a presente alteração legislativa, à medida que é um divisor de águas no trato de questões acessórias da regularização. Entende-se que, para falar em regularização (não basta apenas falar em regularização) é preciso um pouco mais de efetividade e assuntos secundários, como as cláusulas e as condições que devem gravitar em torno do debate.

No campo prático, os novos dispositivos mudam a sistemática discricionária de avaliação do cumprimento ou não das condições, em seguida migram para uma análise vinculante, inclusive, com a participação de outros agentes públicos, como os oficiais de imóveis.

[1] O PL 2.757, relatado pelo deputado Federal Airton Faleiro.

[2] Mensagem de veto nº. 693, 19 de dezembro de 2023, podendo ser acessada em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/Msg/Vep/VEP-693-23.htm

Fonte: Consultor Jurídico (ConJur)