Artigo - (In)validade da cláusula mandato-recíproco em contrato de compra e venda de imóvel - Por Rafael Rocha Filho

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Quando há a aquisição de um imóvel, geralmente, ela é feita por mais de uma pessoa.

Na maior parte dos casos, os cônjuges e/ou companheiros fazem essa compra em conjunto, tendo em vista tanto o fato da imposição legal do regime de casamento bem como, quando não é esse o caso, a relação de pagamento em conjunto para a compra de um bem de valor elevado.

Havendo essa aquisição em conjunto, via de regra, qualquer intimação e/ou notificação aos adquirentes deveria ser feita em nome de cada um deles, especialmente quando estamos falando da notificação para pagamentos das parcelas em atraso que motivam a rescisão do contrato ou a consolidação da propriedade do imóvel.

Ocorre que, as empresas que vendem os imóveis, em boa parte dos casos, sabem que nem sempre é tarefa fácil realizar esse envio de correspondência para os dois ou mais adquirentes que realizaram a aquisição do imóvel.

E, sabendo desse motivo, é instituído, no contrato de compra e venda ou de financiamento do bem, uma cláusula específica para resolver essa problemática: a cláusula mandato-recíproco.

O que é a cláusula mandato-recíproco?

De forma para fácil compreensão, essa cláusula permite que qualquer dos adquirentes sejam procurador do outro.

Assim, havendo a entrega da notificação para um deles, o outro, por meio dessa previsão contratual, também estaria notificado, tornando a missão do envio da correspondência para cada um dos adquirentes, de forma individual, desnecessária.

Essa cláusula é válida ou não?

Quando estamos falando de um imóvel que possui a garantia da alienação fiduciária, regida pela Lei de nº 9.514/97, a notificação acerca do prazo para pagamento das parcelas em atraso (purgação da mora), a fim de evitar-se a consolidação da propriedade e futuros leilões do imóvel, a lei prevê, em seu art. 26, § 3º, a possibilidade de a notificação ser realizada pessoalmente bem como “ao seu representante legal ou ao procurador regularmente constituído”.

O art. 51, § 1º, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor ( CDC), estabelece que é nula a cláusula contratual que preveja vantagem que restrinja direitos e obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual.

Com base nesse dispositivo legal, previsto no CDC, começou-se o questionamento, perante o Judiciário, desse tipo de cláusula contratual, que previa o mandato recíproco, quando estávamos diante de uma relação de consumo.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, considerou esse tipo de cláusula como inválida, veja:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CAUTELAR INOMINADA EM QUE FOI DEFERIDA LIMINAR DE SUSTAÇÃO DOS LEILÕES DE IMÓVEL ALIENADO FIDUCIARIAMENTE E AUTORIZADO DEPÓSITO DO DÉBITO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO PRINCIPAL E DE EXTINÇÃO DA CAUTELAR. RECURSO DA REQUERENTE. ALEGADA INCONSTITUCIONALIDADE DOS DISPOSITIVOS LEGAIS PREVISTOS NA LEI Nº 9.514/97. TESE RECHAÇADA POR ESTE TRIBUNAL. CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE RESOLÚVEL QUE NÃO SERVE DE OBSTÁCULO À DISCUSSÃO JUDICIAL DAS QUESTÕES CONTRATUAIS. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA INAFASTABILIDADE DA APRECIAÇÃO JURISDICIONAL. APONTADO VÍCIO NO PROCEDIMENTO DE CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE EM FAVOR DO CREDOR FIDUCIÁRIO. AUSÊNCIA DE REGULAR NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL AOS DEVEDORES FIDUCIANTES PARA CONSTITUIÇÃO EM MORA E CIENTIFICAÇÃO DA DATA DOS LEILÕES. INVALIDADE DA CLÁUSULA CONTRATUAL DE MANDATO RECÍPROCO. FLAGRANTE CARACTERÍSTICA DE ADESIVIDADE. INCIDÊNCIA DAS REGRAS PREVISTAS NOS ARTS. 51, IV E § 1º, E 54, § 4º, AMBOS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. POSSIBILIDADE DE PURGAÇÃO DA MORA ATÉ A DATA DA ASSINATURA DO AUTO DE ARREMATAÇÃO. DEPÓSITO JUDICIAL DO VALOR INTEGRAL DO DÉBITO APONTADO PELA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. QUITAÇÃO DO DÉBITO E POSSIBILIDADE DE EXTINÇÃO DO GRAVAME APÓS O LEVANTAMENTO DOS VALORES PELO CREDOR FIDUCIÁRIO. SUSTAÇÃO DEFINITIVA DOS LEILÕES DO IMÓVEL, QUE SE FAZ IMPERATIVA. INVERSÃO DO ENCARGO SUCUMBENCIAL. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

1. Não é inconstitucional o procedimento extrajudicial de consolidação da propriedade imobiliária, conforme o que é regrado pela Lei n. 9.514, de 20.11.1997. (TJSC, Apelação Cível n. 2009.000109-2, da Capital, rel. Des. Jânio Machado, j. 08-11-2012).

2. A notificação em questão, para além das consequências naturais da constituição do devedor fiduciário em mora, permite, em não havendo a purgação e independente de processo judicial (opera-se formalmente pela via registrária cartorial), o surgimento do direito de averbar na matrícula do imóvel a consolidação da propriedade em nome do credor notificante, isto é, do fiduciário. Portanto, a repercussão da notificação é tamanha que qualquer vício em seu conteúdo é hábil a tornar nulos seus efeitos, principalmente quando se trata de erro crasso, como na troca da pessoa notificante. (STJ. REsp 1172025/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 07/10/2014, DJe 29/10/2014)

3. "Mesmo que já consolidada a propriedade do imóvel dado em garantia em nome do credor fiduciário, é possível, até a assinatura do auto de arrematação, a purgação da mora em contrato de alienação fiduciária de bem imóvel (Lei 9.514/1997)". (STJ. REsp 1462210/RS, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/11/2014, DJe 25/11/2014) (TJSC, Apelação Cível n. 0055843-18.2012.8.24.0023, da Capital, rel. Luiz Zanelato, Primeira Câmara de Direito Comercial, j. 14-09-2017).

O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, em caso envolvendo compra e venda de imóvel, em decisao do ano de 2010, considerou, de igual maneira, abusiva esse tipo de cláusula:

APELACAO CIVEL. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE SENTENCA ARBITRAL. CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMOVEL. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. APLICABILIDADE. CLAUSULA-MANDATO. ILEGALIDADE. NULIDADE DO TITULO EXECUTIVO JUDICIAL. INTELIGENCIA DO ART. 618, INCISO, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.

1. INDISCUTIVELMENTE, O CONTRATO DE COMPROVA E VENDA DE TERRENO CELEBRADO ENTRE AS PARTES REGE-SE PELAS NORMAS INSERTAS NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR (LEI Nº 8.078/90), DEVENDO SER ANALISADO A LUZ DE TAIS DISPOSITIVOS.

2. A CLAUSULA DECIMA SETIMA CONSTANTE DO CITADO CONTRATO, QUE PREVE O MANDATO RECIPROCO ENTRE OS CONSUMIDORES, REVESTE-SE DE FLAGRANTE ABUSIVIDADE, PORQUANTO OS DEIXA A MERCE DO CREDOR/RECORRENTE, RESTANDO CLARA A POSSIBILIDADE DE CONFLITO DE INTERESSES ENTRE OS PROPRIOS DEVEDORES, O QUE NAO SE PODE ADMITIR.

3. O TITULO EXECUTIVO JUDICIAL (SENTENCA ARBITRAL HOMOLOGATORIA DE ACORDO) NAO SE REVESTE DO REQUISITO EXIGIBILIDADE, POIS DELE NAO CONSTA A ASSINATURA DA SEGUNDA DEVEDORA, O QUE RESULTA NA NULIDADE DO DOCUMENTO E, POR CONSEGUINTE, NA INADMISSIBILIDADE DA EXECUÇÃO, CONSOANTE PRECEITUA O ART. 618, INCISO I DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL VIGENTE. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.

(TJGO, APELACAO CIVEL 155127-0/188, Rel. DR (A). AVELIRDES ALMEIDA PINHEIRO DE LEMOS, 6A CÂMARA CIVEL, julgado em 27/04/2010, DJe 579 de 17/05/2010)

Entretanto, em sua jurisprudência mais atualizada, ao menos em casos envolvendo contrato de locação de imóvel que, via de regra, não há relação de consumo, o entendimento é pela validade desse tipo de cláusula, veja:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE SENTENÇA ARBITRAL. IMPUGNAÇÃO AO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. NULIDADE CITAÇÃO E ILEGITIMIDADE PASSIVA. APRECIAÇÃO CABÍVEL. MATÉRIAS DE DEFESA DO ART. 525, § 1º, CPC. IRREGULARIDADES NÃO COMPROVADAS. CONTRATO DE LOCAÇÃO. CLÁUSULA DE MANDATO RECÍPROCO. CITAÇÃO/INTIMAÇÃO NA PESSOA DE OUTRO FIADOR. VALIDADE. RESPONSABILIDADE FIADORES ATÉ ENTREGA DAS CHAVES. EXONERAÇÃO DE FIANÇA NÃO COMPROVADA.

I - A falta ou nulidade da citação, a ilegitimidade passiva e a inexigibilidade do título encontram previsão no § 1º do art. 525 do CPC, e portanto são passíveis de arguição em sede de impugnação ao cumprimento de sentença arbitral ou em exceção de pré-executividade, ainda que ultrapassado o prazo decadencial de 90 (noventa) dias (art. 31, § 1º Lei de Arbitragem).

II - Se no contrato de locação firmado entre as partes existe cláusula de mandato recíproca prevendo que locatários e fiadores outorgam entre si poderes para receber citação, intimação e notificações em demandas que versem sobre direitos oriundos do pacto celebrado, torna-se válida a realização da citação e de todas as demais intimações de um fiador em nome do outro, sendo despicienda a notificação pessoal da agravante acerca da instituição do procedimento arbitral e da respectiva sentença, não havendo falar-se de cerceamento de defesa, em nulidade da citação ou inexigibilidade do título.

III - O STJ entende que havendo no contrato locatício cláusula expressa de responsabilidade do garante até a entrega das chaves, responde o fiador pela prorrogação do contrato, a menos que tenha se exonerado na forma do art. 835 do Código Civil. IV - No caso, prevista cláusula expressa neste sentido e inexistente comprovação documental de que a notificação da exoneração da fiança tenha sido entregue à locadora/credora, subsiste a fiança da agravante pelo período em que referido contrato foi prorrogado legalmente, até a entrega das chaves, sendo inaplicável a Súmula 214 do STJ. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E DESPROVIDO.

(TJGO, PROCESSO CÍVEL E DO TRABALHO -> Recursos -> Agravos -> Agravo de Instrumento 5226178-56.2021.8.09.0000, Rel. Des (a). DESEMBARGADOR LUIZ EDUARDO DE SOUSA, Assessoria para Assunto de Recursos Constitucionais, julgado em 12/07/2021, DJe de 12/07/2021)

O Tribunal de Justiça de São Paulo possui jurisprudência firme no sentido de validade dessa cláusula:

APELAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL. INVALIDAÇÃO DAS HASTAS E ARREMATAÇÃO. Alegada ausência de intimação pessoal da devedora acerca das datas designadas para realização dos leilões extrajudiciais. Alienação por preço vil. Não reconhecimento. Pretensão improcedente. Inconformismo. Não acolhimento. OMISSÃO. Inocorrência. Análise satisfatórias das questões deduzidas na inicial. INTERESSE RECURSAL. Reconhecimento. Imissão na posse, pelos arrematantes, que não atinge o interesse da recorrente. Tutela pretendida que pode ser convertida em perdas e danos. INTIMAÇÃO DA DEVEDORA. Necessidade de cientificação da devedora acerca das datas designadas para os leilões, independente do regramento aplicável, dada a possibilidade de purgação da mora ou aquisição do bem. Jurisprudência pacífica do C. STJ e desta Corte de Justiça. Devedora notificada por meio do codevedor, seu cônjuge e procurador, regularmente constituído no instrumento contratual. Validade da cientificação. Aplicação extensiva da norma estampada no artigo 26, § 3º, da Lei nº 9514/97. ARREMATAÇÃO POR PREÇO VIL. Inocorrência. Validade da alienação por preço inferior ao de mercado ou ao de avaliação, na segunda hasta. Exegese do artigo 27, § 2º. Validade da execução extrajudicial. Sentença mantida. Honorários majorados. RECURSO NÃO PROVIDO.

(TJSP; Apelação Cível 1004668-27.2019.8.26.0100; Relator (a): Rosangela Telles; Órgão Julgador: 27ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 21ª Vara Cível; Data do Julgamento: 14/07/2020; Data de Registro: 14/07/2020).

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. BEM IMÓVEL. AÇÃO ANULATÓRIA DE EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL. INADIMPLEMENTO INCONTROVERSO. DEVEDORES REGULARMENTE CONSTITUIDOS EM MORA. INTIMAÇÃO PARA PURGA DA MORA. CLÁUSULA CONTRATUAL DE MANDATO RECÍPROCO ENTRE DEVEDORES. ABUSIVIDADE NÃO VERIFICADA. PURGAÇÃO DA MORA. INOCORRÊNCIA. PROPRIEDADE CONSOLIDADA EM NOME DO CREDOR FIDUCIÁRIO. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DE LEILÃO EXTRAJUDICIAL. AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO PESSOAL DOS DEVEDORES PARA COMUNICAÇÃO DO ATO. NECESSIDADE. INTELIGÊNCIA DO DECRETO-LEI 70/66. IRREGULARIDADE CONFIGURADA. IMPOSSIBILIDADE, TODAVIA, DE RESTITUIÇÃO DO BEM IMÓVEL AOS AUTORES, CONSIDERADA A ALIENAÇÃO A TERCEIRO DE BOA-FÉ. DANOS MORAIS CONFIGURADOS. INDENIZAÇÃO DEVIDA. PLEITO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS. INOVAÇÃO DO PEDIDO INICIAL EM SEDE RECURSAL. APELO NÃO CONHECIDO. PREÇO IRRISÓRIO DO BEM NÃO VERIFICADO. SENTENÇA REFORMADA. ÔNUS SUCUMBENCIAL ATRIBÚIDO AO RÉU. Apelação não conhecida em parte, e na parte conhecida, parcialmente provida.

(TJSP; Apelação Cível 1011982-63.2015.8.26.0003; Relator (a): Cristina Zucchi; Órgão Julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional III - Jabaquara - 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 16/09/2019; Data de Registro: 19/09/2019)

No mesmo sentido, é o entendimento do TJ-RJ.

Não há, até o momento, uma decisão de mérito, acerca desse tema, pelo Superior Tribunal de Justiça, Corte que tem a função de uniformizar o entendimento dos Tribunais brasileiros sobre a legislação infraconstitucional, que possa ser utilizada como baliza para solucionar esse questionamento.

Prepondera, todavia, o entendimento pela validade da cláusula mandato-recíproco

Atenção às cláusulas do contrato

No caso de eventual inadimplência, onde as notificações e/ou intimações têm especial importância, é fundamental estar atento ao procedimento que está sendo realizado judicialmente e, também, de forma extrajudicial.

Observar as previsões contratuais e a forma como está ocorrendo a execução da alienação fiduciária, em contratos que possuam esse tipo de garantia, pode ser o divisor de águas na defesa de quem adquiriu um imóvel como esse e está passando por momento de dificuldade financeira.

Fonte: Jusbrasil