Clipping - Jota - Justiça autoriza mudança de gênero sem que decisão judicial conste em certidão

A Justiça de São Paulo autorizou que uma pessoa alterasse o registro civil sem que houvesse menção de que as mudanças decorreram de determinação judicial. A autora da ação, registrada como sendo do gênero masculino, alegou que era submetida a inúmeras situações constrangedoras, inclusive em seu ambiente de trabalho, pois seu registro civil não condizia com sua identidade de gênero, que é o feminino. A 3ª Vara da Família e Sucessões do Foro Regional do Tatuapé julgou procedente o pedido de uma mulher para que seu registro de nascimento fosse mudado — sem que essa informação constasse no documento. Ela conta nos autos do processo que desde cerca de 11 anos se identifica como uma pessoa do gênero feminino e relatou violências sofridas pela manutenção do nome que não reconhece como dela. Para a juíza Tarcisa de Melo Silva Fernandes, a observação de alteração no nome criaria uma “terceira” categoria, resultando, ainda que de forma não intencional, em uma discriminação velada que fomenta a intolerância, potencializa o estigma social e desiguala as pessoas em razão da identidade de gênero. “É evidente que a identificação civil e o tratamento social de uma pessoa como se pertencesse a gênero diverso daquele com o qual ela se reconhece e se apresenta publicamente a sujeita a constrangimentos e situações vexatórias na vida civil. Dessa forma, conclui-se que inadmitir ou condicionar a alteração do prenome e do designativo de gênero das pessoas transexuais no registro civil à realização de cirurgia de adequação de sexo mostra-se incabível, sob pena de violação da dignidade da pessoa humana e dos direitos da personalidade”, define a decisão. Na sentença, a juíza Tarcisa de Melo Silva Fernandes discorreu sobre as diferenças entre os conceitos de sexo e gênero, pessoa cissexual e transexual, identidade de gênero e orientação sexual. Ela destacou, também, que deve ser descartada a abordagem patologizante da questão, ou seja, a transexualidade não é mais entendida como doença, desvio ou distúrbio mental. A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2018, excluiu a transexualidade do rol de transtornos mentais na 11ª versão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde (CID-11). A partir de então, a transexualidade deixou de integrar a categoria de “transtornos de personalidade e comportamento” e passou a figurar em capítulo dedicado a “condições relacionadas à saúde sexual”, sendo agora classificada como “incongruência de gênero”. Para além disso, a juíza pontuou que a inclusão do termo “transexual” nos documentos oficiais contraria o direito constitucional à privacidade, “que abrange o direito da pessoa de escolher revelar ou não informações relativas à própria identidade de gênero”. Ela ressaltou, ainda, que fazer constar do registro civil que a alteração se deu por determinação judicial é discriminatória. “Em verdade, referida anotação acaba por criar uma ‘terceira’ categoria, resultando, ainda que de forma não intencional, em uma discriminação velada que fomenta a intolerância, potencializa o estigma social e desiguala as pessoas em razão da identidade de gênero.” Desta forma, ela defende que o Judiciário acompanhe a evolução da sociedade. “A questão relativa à alteração de prenome e gênero no registro civil de pessoa transexual deve ser analisada sob uma ótica humanizada, pautada no exercício da alteridade, com observância aos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, igualdade, nãodiscriminação, liberdade, integridade física e psíquica, privacidade, busca da felicidade e ao direito personalíssimo à identidade de gênero”, disse. Tarcisa de Melo Silva Fernandes também ressalta a violência sofrida pelas pessoas transsexuais. “As pessoas transexuais têm sofrido violações sistemáticas de seus direitos fundamentais, dentre as quais se incluem tratamento discriminatório em todas as esferas sociais, limitações de oportunidades de emprego e de acesso à saúde e à educação, impedimento de usar banheiros em espaços públicos e privados, além de agressões verbais, físicas e sexuais e homicídios.” A ONG Transgender Europe (TGEU) compilou dados segundo os quais, no período de 2008 a 2019, o Brasil foi o país onde ocorreram mais assassinatos de pessoas transexuais em todo o mundo. A juíza afirmou, na sentença, que o direito à identidade de gênero autopercebida é respaldado pelo princípio da dignidade da pessoa humana, previsto na Constituição Federal e que, portanto, exigir a realização de cirurgia de adequação ao sexo para conceder o pedido de alteração no registro civil é medida discriminatória. “A intervenção médica-hormonal e/ou cirúrgica a fim de adequar a aparência física à realidade psicossocial deve resultar da decisão livre e autônoma de cada pessoa, não podendo ser utilizada para impedir o exercício do legítimo direito à identidade”, destacou. “Ressalte-se que ninguém pode ser constrangido a se submeter, principalmente se houver risco para sua vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica, nos termos do artigo 15 do Código Civil.” De acordo com a magistrada, a cirurgia exerce apenas a função de adequar a genitália ao gênero com o qual a pessoa já se reconhece, mas a identidade de gênero não está relacionada às características biológicas. Fonte: Jota