Clipping - GZH - RS tem 2,8 mil ações sobre imóveis populares defeituosos ou abandonados

Imagine que você aplique milhares de reais para adquirir a casa própria. Comprometa nesse sonho todo o seu Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Faça sacrifícios nas compras cotidianas e nas despesas com ensino, para pagar prestações do imóvel. E, quando chega a hora, o prédio apresenta tantas rachaduras que não pode ser habitado. Ou, pior ainda, nem sequer é construído, apesar da mensalidade regiamente paga pelos mutuários.
Pois não é imaginação. Essa é a triste realidade vivenciada por centenas de famílias gaúchas. Milhares, se levados em conta problemas construtivos graves, mas que permitem habitar o edifício.
Só na Justiça Federal tramitam 2.891 processos relativos a problemas construtivos ou abandono de prédios populares no Rio Grande do Sul, conforme apurou o Grupo de Investigação da RBS (GDI).
Na maior parte dos casos, as pessoas conseguem habitar o imóvel, ainda que de forma precária: em alguns chove dentro, em outros há rachaduras onde cabe uma mão. Já algumas ações judiciais envolvem residências que jamais foram entregues. O mutuário pagou e não levou a casa prometida.
Os 2,8 mil processos no Rio Grande do Sul representam o maior volume dentre os três Estados do Sul. Outros 1.621 tramitam no Paraná e 1.012 em Santa Catarina, o que totaliza 5,5 mil ações judiciais por defeitos construtivos em habitações populares na área abrangida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4). São 4,7 mil processos na primeira instância e 803 na segunda instância, em grau de recurso.
A região que mais recebeu processos desse tipo é a de Ijuí, com 91 ações, seguida da Grande Porto Alegre, com 83. Juntas, respondem por um terço dos 464 recursos que tramitam no TRF4 a respeito desse assunto.
Quase todos os processos envolvem as três faixas de financiamento do programa Minha Casa Minha Vida, por ser o mais abrangente e popular feito pelo governo federal. Mas há também outras iniciativas, como o PAR.
A origem dos problemas pode ser dividida em dois grupos:
  1. Descumprimento e negligência nos contratos construtivos. Em muitos casos, por divergências ou atraso nos repasses de verbas governamentais, a construtora abandona o projeto. É substituída por outra, que também abandona ou conclui de forma precária a obra. É o caso de vários residenciais que jamais foram finalizados e, por isso, estão inabitáveis.
  2. O contrato é cumprido, mas a construtora falha na fiscalização da equipe que faz o trabalho de campo. A qualidade da execução da obra fica comprometida, embora não seja um problema de contrato ou financiamento. É o caso de residenciais que são habitados e que padecem de problemas crônicos de infiltrações, movimentação irregular do terreno, rachaduras e risco de desabamento.
Prova técnica costuma demorar
As ações são demoradas e difíceis, porque envolvem necessidade de prova técnica (perícia de engenharia), o que leva tempo. Em muitos casos, a discordância entre a construtora e a Caixa Econômica Federal resulta em insolvência da empresa, que abandona o empreendimento. A CEF então retoma a obra com nova construtora, o que causa demora e, seguidamente, um ciclo vicioso.
— Em outros casos, a obra retomada é construída com materiais de menor qualidade e se deterioram muito rapidamente e não atende ao que o mutuário havia comprado: a casa própria que garanta solidez e segurança — explica o desembargador federal Cândido Alfredo Silva Leal Júnior, relator de parte dos recursos relacionados ao assunto.
O desembargador ressalta que, no passado, eram mais comuns disputas judiciais envolvendo juros ou correção monetária. Hoje, o trivial são problemas de construção e atraso nos prazos de entrega do imóvel.
Ante a quantidade avassaladora de situações semelhantes, os juízes têm tentado julgar mais rapidamente o dano moral decorrente de abalos. Na maioria das vezes, a perícia usada para prova em um condomínio também pode beneficiar outros prejudicados, sem necessidade de nova prova pericial.
O GDI foi atrás de alguns dos casos mais graves  de problemas construtivos com imóveis do Minha Casa Minha Vida. Um exemplo notório está em Esteio, na Região Metropolitana, onde os proprietários de apartamentos no Residencial Alicante, situado na Avenida Presidente Vargas, 3080, no Centro, nunca puderam habitar o imóvel pelo qual pagaram.
Eram previstas nove torres com 464 apartamentos, com garagens individuais. Foram vendidas 330, com financiamento da Caixa. As obras se iniciaram em junho de 2015 e deveriam durar dois anos. Ocorreram atrasos, e o prazo passou.
A construtora Diede e a CEF se desentenderam. Foram verificados problemas relacionados ao projeto e à execução, os quais exigiram serviços não previstos no orçamento. Até que, em fevereiro de 2019, a obra parou de vez, com 94,5% da estrutura concluída da primeira fase (192 dos 464 apartamentos).
O juiz federal Marcos Reolon deu prazo, no início de 2019, para que a obra seja concluída, e outra empreiteira assumiu os trabalhos. A nova promessa, agora, é de que quatro torres serão entregues no primeiro semestre de 2021. Já para outros cinco edifícios, não há previsão.
Uma das que aplicou todas as economias nesse investimento paralisado é a enfermeira Patrícia Dias. Ela investiu no Alicante todo o FGTS (de R$ 37 mil) e ainda comprou geladeira, ar-condicionado, TV e outros eletrodomésticos para equipar o apartamento de dois quartos. Um dos e-mails recebidos prometia entrega do imóvel em dois meses após a entrada. Foi com surpresa que ela viu a obra ser embargada por desacertos contratuais e entre as empreendedoras.
— Cheguei a visitar o apartamento, era bom, embora tivesse falhas de acabamento. Aí continuei sem casa própria. Estou na Justiça tentando recuperar o investimento e moro de aluguel — lamenta Patrícia.
No bairro Sarandi, em Porto Alegre, há um caso crônico de falhas construtivas não corrigidas. No residencial Vida Alegre, Módulo V, há dois anos moradores convivem com infiltrações e a construtora não conserta. O empreendimento é da Tenda e os recursos, do Minha Casa Minha Vida.
Alguns dos problemas acontecem na Torre 7 do residencial, situado na Avenida Francisco Silveira Bittencourt. O imóvel foi parcialmente financiado pelo Minha Casa Minha Vida e entregue em dezembro de 2016 aos moradores. Desde então eles padecem com infiltrações a cada chuvarada, na sala e quartos. Foram feitos consertos, que resultaram insatisfatórios.
As infiltrações se repetiram em agosto e novembro de 2018. Uma das proprietárias de apartamentos, a técnica de enfermagem Aline Tauchert, diz que a construtora se negou a fazer novos consertos, alegando que ela tinha instalado nas janelas telas e redes de proteção contra quedas de animais e crianças. A discussão parou na Justiça. Aline argumenta que os problemas não estão relacionados às telas e sim, à construção arquitetônica do edifício, mas a empreiteira se negou a fazer novos reparos.
— Temos também infiltração no ponto em que as paredes se encontram, algo que teria sido provocado por vedação malfeita nas barras que fixam o concreto. Não vou desistir— diz Aline.
Em nome de Aline, o advogado Luciano Dolejal de Freitas ingressou com ação de indenização por danos morais. Usou, como base, o Código de Defesa do Consumidor, na parte que responsabiliza o construtor por defeitos decorrentes do projeto ou da fabricação do produto vendido (o apartamento, no caso). Aline ganhou o processo em primeira instância, com direito a indenização de R$ 6 mil e conserto. A empresa recorre contra a decisão, no Judiciário.
Contrapontos
O que diz a Caixa Econômica Federal:
"A CAIXA esclarece que o Residencial Alicante - Módulo I, localizado em Esteio, engloba 4 torres, totalizando 192 unidades habitacionais, cuja construção foi paralisada pela construtora original, e o seguro foi acionado para contratação de nova empresa pela seguradora. Atualmente as obras destas unidades estão concluídas, e a empresa está providenciando sua legalização, para viabilizar a entrega, estimada para o primeiro trimestre de 2021.
Em relação ao Residencial Florença, localizado em Gravataí, esclarecemos que as obras foram paralisadas pela construtora original e o seguro foi acionado, com contratação de nova empresa, que abandonou o empreendimento antes de sua conclusão. Diante disso, a CAIXA acionou a seguradora J Malucelli, responsável pela retomada da obra, para que providencie a substituição da construtora e continuidade da obra, com expectativa de que isso ocorra dentro de 90 dias.
A CAIXA ressalta que as construtoras que não concluíram as obras, bem como seus sócios, estão impedidos de contratar novas operações com a CAIXA."
O que diz a Diede, responsável pelo Residencial Alicante, em Esteio:
O advogado da empresa neste caso, Leandro Pereira, diz que a obra era financiada pela CEF e atrasou, "como atrasam quase todas as obras da construção civil". Os construtores pediram prorrogação por seis meses. Uma advogada foi ao Ministério Público, em nome dos compradores.
— A CEF soube e simplesmente tirou a empresa do canteiro de obras. Estava 93% concluso e os construtores tinham R$ 7 milhões para receber da CEF. Os empreiteiros estavam de boa fé. De outubro de 2019 até março de 2020 ficaram renegociando. Mas aí entrou outra empresa indicada pela CEF e praticamente concluiu o Alicante. Só falta luz e água, mas a parte material tá pronta — assegura Pereira.
O que diz a Tenda, responsável pelo Residencial Vida Alegre, em Porto Alegre:
“A empresa informa que os reparos no imóvel em questão foram realizados em março de 2020. No entanto, uma equipe entrará em contato com a cliente para agendar uma vistoria para verificar a situação atual e a necessidade de possíveis novos reparos. A companhia reitera seu compromisso com a qualidade de seus serviços e permanece à disposição para quaisquer esclarecimentos”.
Fonte: GZH