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Artigo - Criptomoedas lastreadas: ofertas sem registro e opção para fundos – Por João C. de Andrade Accioly

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) já determinou que criptomoedas não são “ativos financeiros”, sob a Instrução 555/14 (ICVM 555), que regula os fundos de investimento (que não podem, portanto, investir nas moedas virtuais). Por outro lado, não sendo valores mobiliários sob a Lei 6.385/76, sua oferta pública independe de registro na autarquia. Mas e se em vez de uma criptomoeda, cujo único lastro é ela mesma, supusermos tokens conversíveis num ativo?

Se esse ativo for um valor mobiliário, o token também o será: ou ele será tratado como um “certificado de depósito de valor mobiliário” (artigo 2º, III, Lei 6385/76), ou como um contrato “cujos rendimentos advêm do esforço de terceiros” (artigo 2º, IX, ibidem). Sendo valor mobiliário, a oferta pública é sujeita a registro, e o ativo é passível de investimento por fundos (ICVM 555, artigo 2º, V, “c” ou “d”).

O enquadramento muda se o lastro for uma commodity. Supondo um token livremente conversível por seu lastro, ele pode sugerir, à primeira vista, a incidência da Lei 6385/76, artigo 2º, VIII, que fala de derivativos: há um contrato entre o titular do ativo e seu emissor (faculdade de trocar o token pela mercadoria, como numa opção de swap de commodities); há, num sentido informal ao menos, um “ativo subjacente” de cujo preço “deriva” o valor do token; e sua negociação se dá em ambientes semelhantes a balcões organizados.

Além desses, parece haver outros fatores, bem menos técnicos, que aproximam as duas coisas: a novidade (apesar de não tão novos quanto a blockchain, os derivativos desenvolveram-se bastante nas últimas décadas), algo de desconfiança e receio contra a “especulação” (culpar derivativos pela bolha de 2008 é tão comum quanto comparar o bitcoin às tulipas do século XVII), e, por fim, a complexidade.

Seja pelas estruturas contratuais engenhosas, pelos modelos de precificação com letras gregas e derivadas parciais, ou pelo risco do investimento, os derivativos são, não sem alguma razão, tachados de “complexos”. A complexidade é análoga à da blockchain, dos smart contracts e das criptomoedas, substituindo-se a sofisticação contratual pela tecnológica e o cálculo diferencial pelo coding de software.

Essas semelhanças, porém, não são suficientes para fazer da criptomoeda lastreada em commodity um derivativo.

Um derivativo é um contrato pelo qual uma parte se obriga perante outra a transacionar em condições determinadas em, ou até, algum momento no futuro, também determinado. Isso é verdade para os quatro tipos básicos de derivativos: opções, swaps, futuros e forwards (qualquer outro é variação ou combinação destes). A possibilidade de usá-los para proteção contra riscos também é essencial (como se sabe, é daí que surgem).

Uma criptomoeda conversível numa commodity não tem no tempo um elemento essencial como nos derivativos, e não permite proteção. A conversibilidade não predetermina o preço; o momento em que ela pode acontecer não tem limite ou data definida; e não é possível proteger um investimento numa commodity com, no fim das contas, a própria commodity.

A matemática do preço teórico de ativos talvez também corrobore a distinção. O valor total do token lastreado virá de sua aceitação como meio de troca, mas um modelo para apreçar seu valor mínimo talvez não inclua muito mais que o preço da commodity, custos de conversão e o risco do emissor. Não haveria variável relacionada ao tempo. Por contraste, qualquer derivativo tem seu valor calculado em função, entre outras variáveis, da proximidade de seu vencimento.

Modernidades a parte, não é nova a ideia de moeda com lastro em commodity. Aliás, o lastro é mais antigo que o próprio dinheiro, que surge da crescente aceitação por certas mercadorias no escambo. Como meio de troca, elas passam a valer não só por sua função original, mas também por reduzir os altíssimos custos de transação do escambo. A moeda surge para padronizar quantidades das mercadorias mais aceitas (por exemplo, ouro ou prata), e o papel-moeda, como um recibo de depósito, ao portador, da quantidade ali escrita de mercadoria (em moedas). O token lastreado em commodities seria esse recibo em formato digital, algo como uma tentativa de replicar o surgimento do dinheiro, mas com as vantagens da blockchain.

Sob essa ótica, uma oferta pública de tokens lastreados em commodities não dependeria de registro na CVM mais que um leilão de mercadorias num armazém geral, em que, em vez do produto, o comprador leve o conhecimento de depósito e o warrant correspondentes — títulos de crédito regulados pelo Decreto 1.102/1903, que, juntos, substituem o recibo de depósito. Nessa condição, esses tokens configurariam ativos financeiros sob a ICVM 555, artigo 2º, V, “h”, que inclui warrants (ou VI, se emitidos no exterior).

Parece inevitável a conclusão, assim, de que, sob as regras atuais, um ativo como o aqui cogitado escaparia ao registro na CVM e, ao contrário das moedas virtuais sobre as quais a autarquia já se manifestou, poderia ser adquirido por fundos de investimento.


* João C. de Andrade Accioly é sócio do Sobrosa & Accioly Advocacia.


Fonte: Consultor Jurídico (ConJur)