Aprovação do Projeto de Lei Nº 757/2015 no Senado
O Substitutivo ao Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 757, de 2015, aprovado definitivamente na Comissão de Constituição e Justiça – CCJ no último dia 20, dispõe sobre o direito à capacidade civil das pessoas com deficiência em igualdade de condições com as demais pessoas e sobre o apoio de que necessitarem para o exercício de sua capacidade.
O objetivo inicial desse Projeto, apresentado pelos Senadores Antônio Carlos Valadares e Paulo Paim, foi o de restabelecer dispositivos do Código Civil revogados ou alterados pela Lei nº 13.146/2015, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – LBI (Estatuto da Pessoa com Deficiência), corrigindo, no dizer dos Autores, “inconsistências legislativas” que retiraram a proteção jurídica de pessoas “que não possuem discernimento intelectual adequado”. O PLS visou, ainda, solucionar “desencontros legislativos”, “antinomias e […] lacunas”.
O referido Projeto recebeu parecer favorável na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa – CDH, nos termos de Emenda apresentada pelo Senador Telmário Mota, em que reincluídos como absolutamente incapazes “os que não tenham qualquer discernimento” para a prática dos atos da vida civil e, como relativamente incapazes “os que tenham o discernimento reduzido de forma relevante”, bem como prevista, entre outros aspectos, a possibilidade de extensão da curatela para atos de caráter não patrimonial, “inclusive para efeito de casamento”.
Na Comissão de Constituição e Justiça, a Relatora do Projeto, Senadora Lídice da Mata, acolheu proposta de texto[1] elaborada pela Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down – FBASD com o apoio de várias entidades representativas de pessoas com deficiência e instituições congêneres – como a Associação Nacional de Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos – AMPID – e contribuições de juristas e de especialistas envolvidos com a causa da deficiência. A Relatora apresentou, então, Substitutivo que acabou sendo aprovado por essa Comissão em 06.06.2018, em caráter terminativo e por unanimidade (19 votos), e adotado definitivamente em turno suplementar [2] em 20.06.2018.
A aprovação de tal Substitutivo representa um passo importante na consolidação, em nosso país, do princípio da dignidade das pessoas com deficiência, especialmente daquelas com deficiência intelectual, mental ou grave, uma vez que, em homenagem à mudança de paradigma imposta pelo artigo 12 da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – CDPD[3], concorre, por ora, para a ratificação de direitos e conquistas garantidos pela LBI, que acabou sendo viabilizada, a ratificação em tese, pela superação do Substitutivo anterior (da CDH), o qual, embora contivesse proposições louváveis, restaurava restrições, existentes antes da vigência do Estatuto, ao exercício da capacidade civil por essas pessoas.
O direito das pessoas com deficiência ao reconhecimento da plena capacidade jurídica, ainda que com apoio, não poderia mesmo sofrer mitigação maior que aquela já admitida pela LBI, consistente na possibilidade de curatela “quando necessário” (LBI, art. 84, § 1o), porque já considerado pelo Comitê da ONU[4], que acompanha o cumprimento da Convenção pelos Estados Partes, que tal possibilidade enseja tomada substitutiva de decisões, incompatível com o artigo 12 da CDPD.
A vitória nessa etapa da tramitação do Projeto é muito simbólica para as pessoas com deficiência, denotando reverência do legislador ao direito internacional dos direitos humanos[5], o qual impõe reformulações amplas das estruturas teóricas elaboradas ao longo de séculos em torno da capacidade jurídica de tais pessoas. E reformulações nessa seara são factíveis, porque a capacidade é uma construção social, que reflete as eleições que as sociedades fazem em determinado momento histórico (Palácios, 2008, p. 431). No caso do Brasil, suas escolhas a respeito do tema coincidem com aquelas gravadas na CDPD, uma vez que o país a aprovou e a ratificou, incorporando-a ao ordenamento jurídico pátrio com valor de emenda constitucional e obrigando-se moralmente perante o cenário internacional.
Na esteira dessa compreensão, a proposta apresentada na CCJ mantém as alterações ditadas pela LBI à teoria das incapacidades, traduzidas, entre outros, pelo reconhecimento de que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, que tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas (LBI, artigos 6º e 84). Consoante afirmado pelo Professor Gerard Quinn, “um novo contrato social com consequentes mudanças legais é necessário para criar espaço para implementação do novo paradigma”[6].
O teor do PLS, em outras palavras, fortalece a mudança de paradigma empreendida pela LBI, respaldando o direito das pessoas com deficiência intelectual, mental ou grave ao casamento, à privacidade, ao acesso à justiça, à participação na vida pública e política, à moradia e à vida independente e à celebração de negócios, por exemplo, com apoio adequado – livre de conflitos de interesses e influência indevida – nas circunstâncias em que necessário. Com isso, privilegia-se o protagonismo dessas pessoas em relação às suas próprias vidas, assegurado sempre, importa insistir, o apoio de que eventualmente precisarem para a tomada de decisões por si mesmas, em consonância com sua vontade, preferências e interesses, depreendidos por qualquer meio.
Além de prestigiar os princípios da dignidade da pessoa humana, da autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e da independência das pessoas[7], o acolhimento do Substitutivo privilegia também os princípios da não discriminação, da acessibilidade, da igualdade de oportunidades e da plena e efetiva participação e inclusão das pessoas com deficiência na sociedade.
Em termos práticos, o Substitutivo em debate confirma os avanços assegurados pela LBI na esfera da capacidade, especialmente aqueles relativos i) ao reconhecimento da plena capacidade jurídica das pessoas com deficiência como regra; ii) ao caráter limitado e excepcional da curatela: viável, pelo menor tempo possível, apenas nos casos de impossibilidade de expressão da vontade e tão somente em relação às questões de natureza patrimonial e negocial e iii) à tomada de decisão apoiada, introduzida pela LBI para viabilizar o exercício da capacidade civil por aqueles que necessitarem de apoio, propiciando a adoção de modelo diverso do único anteriormente existente, de decisão substitutiva, em que um terceiro toma decisões pela pessoa com deficiência.
A par da reafirmação dessas conquistas, a proposta disciplina de forma mais detalhada o instituto da tomada de decisão apoiada, objetivando sanar lacunas apontadas pela doutrina em relação ao artigo 1.783-A do Código Civil, incluído pelo artigo 116 da LBI.
O Substitutivo promove, ainda, a revisão de dispositivos do Código Civil e do Código de Processo Civil, no que tange à capacidade civil e aos apoios e salvaguardas eventualmente necessários por parte das pessoas com deficiência para o exercício da capacidade. O objetivo de tal revisão é o de compatibilizar as legislações material e processual pertinentes, alinhando-as ao disposto na CDPD, a qual, vale lembrar, foi incorporada ao ordenamento jurídico com valor de norma constitucional.
A matéria versada no Substitutivo encerra relevante controvérsia nos mais diversos âmbitos em que debatida. Evidenciam a aludida polêmica divergências até mesmo entre organizações representativas do mesmo segmento de deficiência: algumas entidades, de um lado, compreendem que o Projeto acatado na CCJ extrapolou em relação ao reconhecimento da capacidade civil e da autonomia das pessoas com deficiência, contribuindo para a fragilização de direitos perpetrada pela LBI relativamente, por exemplo, a pessoas com “deficiência severa”, e enquanto outras organizações, do lado diametralmente oposto, entendem que o Projeto aprovado não avançou suficientemente quanto ao reconhecimento da capacidade civil das pessoas com deficiência, mantendo, ainda, muitas restrições à tomada de decisão apoiada. Essa última posição é encampada também pela organização internacional de direitos humanos, não-governamental, Human Rights Watch.
Um outro ponto importante no debate é o alusivo às alegações de que o reconhecimento de igual capacidade pela LBI, mantido no PLS aprovado, implica desamparo para as pessoas com deficiência. Embora esse reconhecimento haja concretizado os princípios basilares da Convenção, notadamente o princípio da dignidade humana, como já dito, acabou de fato deixando à margem da proteção jurídica, no que tange a alguns aspectos da vida, pessoas com deficiência anteriormente resguardadas juridicamente por serem consideradas como absoluta ou relativamente incapazes, como aquelas com deficiência intelectual, mental ou grave.
O indigitado desamparo poderia ser verificado na hipótese, por exemplo, do não reconhecimento pela Administração (órgãos, autarquias e fundações públicas federais) ou pelo Judiciário – com base em leitura exclusiva da Lei 8.112/91 (artigos 217, IV, “d”, e 222, III) [8] – da condição de alguma dessas pessoas como beneficiária da pensão por morte do pai ou mãe, por se encontrar o/a filho/a do/a servidor/a submetido/a à tomada de decisão apoiada e não à curatela.
A fim de corrigir desproteção dessa ordem, decorrente do reconhecimento de capacidade pela LBI, o Substitutivo assegura a essas pessoas[9], quando submetidas à tomada de decisão apoiada, a mesma proteção legal garantida às pessoas relativamente incapazes[10], ante igual presunção de vulnerabilidade, esvaziando, assim, um dos principais motivos pelos quais defendida originalmente a ampliação das hipóteses de curatela das pessoas com deficiência.
Ressalte-se, ainda, quanto a este ponto, que a redação dos §§ 4º e 5º do artigo 1.783-A do Código Civil[11], proposta no Substitutivo, tanto assegura o protagonismo da pessoa com deficiência submetida à tomada de decisão apoiada – ao reputar válidos os negócios e atos jurídicos praticados sem a participação dos apoiadores, quando não abrangidos no termo em que definidos os limites do apoio –, quanto assegura o resguardo do seu patrimônio – ao condicionar a validade dos negócios e dos atos jurídicos abrangidos no termo de tomada de decisão apoiada à contra-assinatura dos seus apoiadores.
Por fim, caso não haja interposição de recurso para apreciação da matéria pelo Plenário do Senado até 03.07.2018[12], o Projeto seguirá para a Câmara Federal[13], onde também deverão ser ouvidas, em homenagem ao lema “nada sobre nós sem nós”, pessoas com deficiência e suas organizações representativas, juristas, especialistas e outras pessoas, entidades e instituições interessadas no aprimoramento ou simples aprovação do texto.
Como visto, ainda remanescem muitos pontos de conflito no Projeto. Somente a partir de um debate amplo, plural e democrático conseguiremos lançar bases sólidas para a elaboração de uma legislação plenamente harmônica com o artigo 12 da CDPD e alicerce firme para o difícil caminho de consolidação do reconhecimento da capacidade civil das pessoas com deficiência intelectual, mental e grave, o qual, pela profunda mudança filosófica que impõe e pelas repercussões que implica, especialmente em relação a pessoas que nunca tiveram sua autonomia respeitada como sujeitos morais (Palacios, 2008, p. 219), constitui um enorme desafio para toda a sociedade, apenas suscetível de ser suplantado pelo enfrentamento do tema sob o enfoque do direito internacional dos direitos humanos.
Notas
[1] A proposta de texto apresentado à Senadora Lídice da Mata foi referendada pelo VIII Congresso Brasileiro sobre Síndrome de Down da FBASD – que aconteceu em Maceió, em outubro de 2017, e contou com cerca de 2.500 pessoas –, após submetida à apreciação na V Oficina Jurídica de que participaram 78 pessoas das mais diferentes formações.
[2] Nos termos dos artigos 282 e 284 do Regimento Interno do Senado, não apresentadas emendas perante as Comissões no turno suplementar, subsequente à aprovação do substitutivo integral, esse será dado como definitivamente adotado sem votação.
[3] A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) e seu Protocolo Facultativo foram assinados em Nova Iorque em 2007 e aprovados pelo Congresso Nacional mediante o Decreto Legislativo nº 186, de 2008, conforme o procedimento previsto no § 3º do artigo 5º da Constituição Federal – o que torna os seus dispositivos equivalentes a emenda constitucional. Esses documentos internacionais foram, por fim, promulgados por meio do Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009.
[4] Nos Comentários sobre o Relatório apresentado pelo Brasil, o Comitê afirmou preocupação de que, “mesmo com a Lei Brasileira de Inclusão, houve poucos avanços no reconhecimento pleno da capacidade das pessoas com deficiência”, concluindo por recomendar que o Estado Parte “adote medidas concretas para substituir o sistema de tomada de decisão substitutiva por um modelo de tomada de decisão apoiada, que defenda a autonomia, vontade e preferências das pessoas com deficiência em plena conformidade com o artigo 12 da Convenção”. A preocupação do Comitê quanto à manutenção da curatela em algumas circunstâncias é vista por alguns operadores do direito como transcendente ao disposto na Convenção.
[5] Conquanto a reverência ao direito internacional não se tenha dado nos exatos termos recomendados pelo Comitê da ONU (referidos na nota anterior), é digna de nota se considerada a percepção ainda prevalecente na sociedade sobre a (in)capacidade civil das pessoas com deficiência intelectual e mental e a resistência que essa percepção gera no processo legislativo.
[6] Gerard Quinn, “Rethinking Personhood: New Directions in Legal Capacity Law & Policy” [palestra]. University of British Columbia, Vancouver, Canadá, 29 de abril, 2011, p. 19-20. Tradução livre.
[7] Prestigiados esses princípios até os limites da margem de consenso necessária à aprovação do PLS na CCJ.
[8] Em exegese alheia aos princípios e preceitos da CDPD e da LBI, que estabelecem a desvinculação entre a capacidade e a deficiência.
[9] Naquilo que, por certo, não esvazie o instituto da tomada de decisão apoiada.
[10] Concretiza a indigitada proteção o art. 4º do Substitutivo, que inclui, no art. 4º da Lei nº 10.406/2002, o § 2º, inciso III : “o acolhimento judicial do pedido de tomada de decisão apoiada pressupõe a vulnerabilidade da pessoa com deficiência mental ou intelectual ou deficiência grave, garantindo à pessoa apoiada a mesma proteção legal prevista nesta e em outras leis às pessoas relativamente incapazes”.
[11] Artigo 1.783-A do Código Civil – (….) § 4º Os negócios e os atos jurídicos que não estejam abrangidos pelo termo de tomada de decisão apoiada terão validade e efeitos sobre terceiros, ainda que praticados pela pessoa apoiada sem a participação dos apoiadores e § 5º Nos atos abrangidos no termo de tomada de decisão apoiada é obrigatória a contra-assinatura dos apoiadores, hábil a demonstrar o fornecimento de elementos e informações necessários ao exercício da capacidade pela pessoa com deficiência.
[12] Consoante o artigo 91, §§ 2º e 3º, do Regimento Interno do Senado, encerrada a apreciação terminativa do Projeto, a decisão da Comissão de Constituição e Justiça sobre o PLS 757/2015 é comunicada ao Presidente do Senado Federal para ciência do Plenário e publicação no Diário do Senado, momento a partir do qual é aberto prazo de cinco dias úteis para interposição de recurso, por um décimo dos membros da Casa, para apreciação da matéria pelo Plenário do Senado.
[13] Artigo 91, § 5º, do Regimento Interno do Senado.
Referências
BRASIL. Decreto Presidencial nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Diário Oficial da União 2009, 26 ago.
_________. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União 2015, 7 jul.
_________. Projeto de Lei do Senado n° 757, de 2015 – Substitutivo apresentado pela Senadora Lídice da Mata. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7741937&ts=1528372834326&disposition=inline&ts=1528372834326. Acesso em 21.6.2018.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Observações finais sobre o relatório inicial do Brasil adotado pelo Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – CRPD/C/BRA/CO/1. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cpd/documentos/relatorio-do-comite-da-onu-sobre-os-direitos-das-pessoas-com-deficiencia-traduzido-em-portugues>. Acesso em 9.6.2018.
PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad: Orígenes, caracterización y plasmación em la Convención Internacional sobre los Derechos de las Personas com Discapacidad. Colección CERMI, 2008, n. 36.
QUINN, Gerard. Rethinking Personhood: New Directions in Legal Capacity Law & Policy. Disponível em: <https://www.inclusionireland.ie/sites/default/files/attach/basic-page/846/rethinkingpersonhood-newdirectionsinlegalcapacitylawandpolicy-gerardquinn-april2011.docx >. Acesso em 25.06.2018.
* Ana Cláudia M. de Figueiredo – Advogada e ex-assessora de Ministro no Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior do Trabalho. Graduada em Letras e Direito pelo UniCEUB e pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes-RJ. Vice-Presidente da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down e Conselheira no CONADE.
Fonte: Jota