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Artigo - A ilegalidade da anotação de inquéritos civis ambientais no registro de imóveis – Por João Emmanuel Cordeiro Lima e Pedro Henrique Cordeiro Lima

Uma prática que vem se tornando cada vez mais comum é a anotação de inquéritos civis que investigam possíveis degradações ambientais no registro de imóveis. A pedido do Ministério Público, alguns oficiais têm consignado a existência dessas investigações no registro público e informado sobre esse fato quando instados a fornecer certidão de matrícula de determinado imóvel. Esse tipo de anotação por vezes é tratada como averbação e em outras como um simples arquivamento[1] de informação, mas, independentemente dessa classificação, é sempre levada ao conhecimento de todo aquele que solicite informações sobre o bem, seja pessoalmente ou por meio de certidões, até o encerramento do inquérito.

Dois principais argumentos vêm sendo utilizados para justificar esse procedimento. O primeiro é que a realização dessas anotações auxiliaria na prevenção de fatos lesivos ao meio ambiente, como defendido em artigo publicado na ConJur[2]. O segundo é que asseguraria maior publicidade sobre fatos relacionados ao imóvel, o que a todos interessaria. Os fundamentos legais invocados para autorizá-lo são os artigos 246 e 13, III, da Lei Federal 6.015/73 (Lei de Registros) e o artigo 26, VI da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público.

Na contramão desse entendimento, que inclusive já foi sufragado pelo TJ-SP[3], o presente artigo sustenta que, ainda que bem intencionado, esse procedimento carece de amparo legal. Além disso, pode causar prejuízos reais aos proprietários dos imóveis ao mesmo tempo em que pouco contribui efetivamente para o fornecimento de informações úteis a terceiros que tenham interesse no imóvel ou para a prevenção da degradação ambiental. Vejamos.

O registro de imóveis foi um mecanismo criado pela sociedade para dar maior segurança aos negócios relacionados aos imóveis, que são bens historicamente considerados relevantes. Por meio dele, dá-se conhecimento ao público em geral de fatos jurídicos específicos relacionados a esses bens, permitindo um fluxo seguro das operações econômicas que os envolvam. Esses fatos em regra estão relacionados à constituição, declaração, alteração ou extinção de direitos reais sobre os imóveis.

Nem toda informação pode ser inscrita no registro de imóveis, ainda que seu proprietário ou terceiro a julgue, a partir de critérios pessoais, relevantes. Se isso fosse possível, o registro se transformaria em verdadeira balbúrdia e teria prejudicada sua função de transmitir eficientemente fatos importantes relativos ao bem e viabilizar o tráfico econômico com segurança. Imagine, por exemplo, se fosse possível que o proprietário de um imóvel anotasse na matrícula o fato de ter recebido no local uma personalidade importante na esperança de colher com isso alguma valorização; se um religioso pudesse ter assentado no registro de um imóvel a ocorrência de evento especialmente marcante para sua religião; ou, ainda, se uma autoridade qualquer julgasse prudente registrar que determinada propriedade foi alvo de inúmeras invasões por movimentos de sem-terra, ou de denúncias de perturbação sonora, de modo a prevenir que terceiros interessados em sua aquisição sejam surpreendidos com essa realidade. Ter-se-ia um registro caótico, heterogêneo e pouco útil para assegurar a realização segura de operações econômicas que envolvam o bem.

Por isso, de modo a assegurar a utilidade do registro, o legislador corretamente definiu aquilo que pode nele constar, garantindo sua organização e uniformidade. Atualmente, essa tarefa é cumprida pela Lei de Registros, que elencou em seu artigo 167 os atos passíveis de registro e averbação, e por outras leis esparsas que tratam do tema e indicam os atos que podem ser assentados. É claro que essas previsões legais podem ser alteradas, seja para incluir ou excluir novos atos passíveis de anotação. Contudo, trata-se de modificação que depende da vontade do legislador e não do juízo subjetivo de qualquer interessado ou mesmo da autoridade de momento.

É verdade também que, no caso dos atos passíveis de averbação, o legislador adotou na própria Lei de Registros uma redação mais aberta ao permitir que fossem averbados, além dos casos expressamente indicados no item II do artigo 167, as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro, o que leva a doutrina a classificar esse rol como exemplificativo. Contudo, mesmo nesse caso, não se deu ao oficial de registro carta branca para averbar qualquer informação ou ato, mas apenas as sub-rogações e outras ocorrências que alterem o registro. É o que ocorre, por exemplo, no caso do tombamento definitivo de bens particulares (artigo 13 do Decreto-Lei 25/1973) ou das áreas comprovadamente contaminadas[4]. Não sendo preenchidos esses requisitos (sub-rogação ou alteração do registro), a averbação não é possível.

Quando se analisa a legislação vigente, verifica-se que o legislador em momento algum indicou como fato passível de registro ou averbação a instauração de inquérito civil. E não faltaram oportunidades para fazê-lo. Criado em 1985 pela Lei de Ação Civil Pública, esse instrumento seria depois consagrado pela Constituição Federal e previsto na Lei Federal 7.853/89, no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Código de Defesa do Consumidor, na Lei de Crimes Ambientais e no Estatuto do Idoso. Apesar disso, em momento nenhum se entendeu conveniente apontar que a mera instauração de inquérito deveria ser objeto de assentamento no registro de imóveis.

A razão para tanto decorre das próprias características desse procedimento, que carece da estabilidade e segurança encontradas, em maior ou menor medida, nos outros atos passíveis de assentamento no registro público. A primeira delas é caráter inquisitivo do inquérito, que dispensa a oitiva do proprietário do bem antes ou após sua instauração. A segunda é a precariedade desse procedimento, que pode ser instaurado a qualquer tempo a partir de sinais mínimos de irregularidade. A terceira é a flexibilidade no prazo para seu encerramento, pois, apesar de supostamente ter prazo máximo de um ano, esse pode ser prorrogado indefinidamente[5]. Além disso, há ainda o fato de que tal procedimento não se sujeitar ao controle judicial periódico, ficando exclusivamente a cargo do Ministério Público definir se e quando o encerrará.

Os fundamentos legais invocados pelos defensores da anotação do inquérito estão longe de dar sustentação a esse procedimento. O artigo 246 da Lei de Registros, apesar de reconhecer o caráter meramente exemplificativo do rol contido no artigo 167, II, apenas autoriza a averbação das sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro. A instauração de um inquérito não acarreta sub-rogação, que nada mais é que a substituição de uma pessoa ou de uma coisa por outra em uma relação jurídica, e tampouco altera registro, que permanece intacto.

O artigo 13, III, da Lei de Registros também não se presta para socorrer essa tese, já que apenas autoriza o parquet a requerer a prática de atos de registro “quando a lei autorizar”. Como visto, nenhuma lei autorizou a anotação de inquérito no registro público, o que impede que eventual requerimento seja atendido. Na verdade, o citado artigo 13, III, não dá ao Ministério Público tratamento especial, colocando-o em pé de igualdade com os demais interessados, mencionados no inciso II, que também poderão requerer a prática de atos de registro. Em ambas as hipóteses, por óbvio, caberá ao oficial registrador responsável averiguar se o pedido encontra respaldo em alguma hipótese legal.

O outro dispositivo invocado em defesa dessa tese é o artigo 26, VI, da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, que permite ao membro do Ministério Público dar publicidade aos procedimentos administrativos não disciplinares que instaurar e das medidas adotadas. Ora, o fato de autorizar o parquet a dar publicidade a suas investigações não permite que isso seja feito de qualquer forma e muito menos em assentos que por sua natureza não permitem a entrada de todo tipo de informação, como é o caso dos registros de imóveis. Uma interpretação tão elástica desse dispositivo levaria à absurda conclusão de que o órgão pudesse, sob o alegado manto desse dispositivo, exigir que todas as prefeituras do país incluíssem em seu site, ou mesmo no átrio de suas sedes, informação sobre uma investigação de caráter nacional que julgue relevante; que a junta comercial anotasse a existência de inquérito contra empresas investigadas em seus registros; que o registro civil fizesse o mesmo em relação às pessoas físicas investigadas; ou, ainda, que redes de televisão públicas tivessem que divulgar a existência do procedimento para assegurar sua ampla publicidade. Na verdade, o que esse dispositivo autoriza é simplesmente que o órgão permita acesso do procedimento ao público em geral ou divulgue seu trabalho de forma razoável nas plataformas geridas por ele, como o site da entidade e suas publicações, ou até mesmo na imprensa oficial.

O simples fato de não ter amparo legal já desautorizaria a medida em questão, como corretamente reconhecido pelo TJ-MS[6], ainda que se mostrasse benéfica ao meio ambiente e não causasse prejuízos a terceiros. Contudo, há ainda o fato agravante de que sua adoção tem, sim, o condão de causar prejuízos efetivos aos proprietários dos imóveis, tratando-se, na prática, de verdadeira hipótese de antecipação punitiva. É que, ao fazer essa anotação, o parquet lança dúvidas sobre a existência de problemas da área, mesmo que a justificativa para a instauração da investigação seja uma mera notícia de jornal ou denúncia parcamente fundamentada. Esse fato pode afastar eventuais interessados na aquisição do imóvel ou gerar sua desvalorização.

Não convence o argumento de que a simples anotação da existência de inquérito não causa prejuízos pelo fato de não impedir as operações econômicas envolvendo o bem. Ainda que, do ponto de vista jurídico, essa conclusão esteja correta, os reflexos reputacionais e patrimoniais decorrentes do envolvimento de bens ou pessoas em uma investigação são inegáveis. Afirmar que a existência de inquérito civil ambiental sobre determinado imóvel não afeta seu valor ou dificulta sua negociação se equipara a defender que se submeter a uma investigação criminal não impõe qualquer constrangimento a uma pessoa. É também esse o entendimento de Mazzilli, para quem “uma investigação descabida não raro provoca danos de difíceis mensuração e reparação para quem é investigado, seja uma pessoa física ou mesmo uma empresa”[7].

Nem mesmo o argumento de que a anotação contribuiria para melhor informar terceiros, evitando que adquiram áreas degradadas, merece prosperar. É que, de um lado, como não há um dever legal de anotação, os registradores devem se negar a fazê-lo, sob pena até mesmo de responsabilização; de outro, como inexiste uma obrigação legal dirigida ao Ministério Público para que determine a realização da anotação em todos os casos em que atue, a decisão tem caráter subjetivo, podendo ser tomada ou não de acordo com o caso ou com o posicionamento pessoal do membro. Logo, se o interessado em saber a situação do imóvel consulta a matrícula e nada encontra, essa informação pouca utilidade terá e não atestará efetivamente se há ou não investigação em curso, pois a falta de assentamento pode simplesmente decorrer da escolha do membro do Ministério Público em não “determinar” a anotação ou da recusa do registrador. Por essa mesma razão, mesmo nos casos em que uma anotação seja encontrada, nunca se saberá se os procedimentos existentes são apenas aqueles.

Assim, verifica-se que o uso dessa medida mais promove insegurança do que segurança jurídica, pois pode causar dúvidas ao cidadão comum, que não conhece essa complexa dinâmica. Vale relembrar para esse caso a percuciente observação de Marcelo A. S. Melo ao defender, em nome do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, a impossibilidade de averbação de suspeitas de contaminação da área no registro de imóveis. Segundo ele, o registro “não admite a publicidade de informações precárias e provisórias, o que abalaria o sistema registrário em razão da não-observância do princípio da segurança jurídica”[8]. O mesmo vale para meras investigações que buscam apurar a existência ou não de degradação.

Além da falta de amparo legal e das consequências que gera, não há indicativo de que essa medida efetivamente contribua com a prevenção da degradação ambiental ou com a reparação de danos. É que a simples existência da anotação não tem — nem poderia ter — natureza constitutiva de obrigação de fazer, não fazer ou pagar, seja para o proprietário atual ou seu sucessor. Tampouco serve como fundamento para justificar eventual transferência do dever de reparação para terceiros. Ou seja, além de causar prejuízos efetivos aos proprietários dos bens sem amparo legal, a anotação aqui discutida não traz benefícios efetivos no que se refere à prevenção da degradação ambiental ou à efetiva reparação de danos causados ao meio ambiente.

Por fim, vale ressaltar que não se pretende questionar a importância de garantir publicidade aos procedimentos investigatórios conduzidos pelo Ministério Público. O que se discute aqui é exclusivamente a forma adequada para fazê-lo à luz da legislação vigente e os possíveis danos decorrentes de sua inobservância. Com ou sem anotação no registro, o parquet seguirá tendo à sua disposição meios eficientes, como os seus sites, publicações e a imprensa oficial, nos quais poderá deixar claro os limites da informação fornecida e disponibilizar o inteiro teor da investigação para os interessados. Assim, em vez de buscar soluções menos ortodoxas, como a anotação dos inquéritos nos registros, mais efetivo, conveniente e compatível com a legislação seria que o órgão ministerial investisse nesses meios legítimos, criando, por exemplo, bases de dados mais amigáveis e facilmente acessíveis pela internet àqueles que pretendam conhecer os detalhes das investigações em curso sobre determinado imóvel.
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[1] D.O.E. – 28/07/2000. PROTOCOLADO CG-8.505/2000 - PIRACICABA - JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA CÍVEL.
[2] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Registro de imóveis é um aliado da proteção do patrimônio cultural. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-fev-04/registro-imoveis-protecao-patrimonio-cultural. Acesso em: 3 de junho de 2018.
[3] TJ-SP; Apelação 0000283-56.2013.8.26.0458; Relator (a): Vera Angrisani; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente; Foro de Piratininga - Vara Única; Data do Julgamento: 21/5/2015; Data de Registro: 26/5/2015.
[4] TJ-SP, Processo CG no 167/2005.
[5] Artigo 9º da Resolução 23/2007.
[6] TJ-MS – MS 5.316, MS 5.316, MS 2001.005316-3.
[7] MAZZILLI, Hugo Nigro. Inquérito civil. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p.54.
[8] MELO, Marcelo A S. GIAC – relatório da reunião de 14/2/2005. Conclusões do Irib. Disponível em: <http://www.irib.org.br/boletins/detalhes/2277> . Acesso em: 7 de junho de 2018.

* João Emmanuel Cordeiro Lima é sócio do Nascimento e Mourão Advogados, mestre e doutorando em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP, professor da Universidade São Judas Tadeu e membro da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

* Pedro Henrique Cordeiro Lima é sócio do QBB Advocacia, mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutorando em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal). Presidente da Comissão de Direito Imobiliário e Condominial da OAB-RN.



Fonte: Consultor Jurídico (ConJur)