Em 1936, quando Raízes do Brasil foi pela primeira vez publicado, Sergio Buarque de Holanda já avaliava que:
"Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade [...] compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do puro burocrata, conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere, relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalece a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. [...] Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático"[1].
Analisando historicamente a relação entre empresas e burocracia, pode-se perceber que a dificuldade em distinguir os domínios público e privado não constitui uma peculiaridade dos servidores. Pelo contrário, o setor privado assentou-se, em grande medida, sobre as bases de uma espécie de clientelismo na relação com a burocracia. Nesse cenário, as leis anticorrupção e as práticas da boa governança não devem abranger apenas atos da administração pública, mas também, e fundamentalmente, a governança corporativa das empresas privadas, por meio de regras de natureza geral e normas autoimpostas, como os programas de integridade, mais conhecidos pelo termo compliance.
Oriunda de avanços nos regimes internacionais, a ideia da boa governança adentrou o ordenamento jurídico brasileiro tanto pela via do direito público quanto pela do privado, haja vista a influência sobre este dos mais modernos imperativos da administração. Dessa forma, novos critérios, como transparência, prestação de contas, responsabilização de gestores e da administração passam a ser parâmetros de conduta adotados pelas empresas. A adoção desse conjunto de práticas passa a ser crescente na relação entre os conselhos administrativos, os acionistas e outras partes interessadas.
Conquanto não haja uma carta-modelo de mandamentos a ser adotados, há um patamar mínimo de medidas de boa gestão de riscos. Nesse sentido, a lei norte-americana Sarbanes-Oxley, de 2002, é paradigmática e representa a referência inicial de criação de mecanismos de auditoria e segurança nas empresas, e seu sentido é o de mitigar riscos, de evitar fraudes ou de identificá-las caso aconteçam, cumprindo com os novos imperativos da transparência e da responsabilização individualizada.
O papel dessa lei no campo do direito empresarial é o de abrir o ordenamento jurídico para essa nova perspectiva de que a boa governança corporativa e as práticas éticas do negócio não são supérfluas, mas, sim, essenciais. No Brasil, a Lei Anticorrupção (Lei 12.846, de 2013, também denominada Lei da Empresa Limpa) e o Decreto 8.420, que a regulamenta, representam o início de um movimento que impacta diretamente o setor empresarial, primeiro em sua relação com a administração pública, e, posteriormente, incutindo nas empresas a necessidade de se autorregularem em consonância com a nova categoria do direito empresarial, os programas de integridade autoimpostos:
"As práticas de responsabilidade social não representam apenas o cumprimento das normas do país de atuação, mas especialmente a adoção de comportamentos que atentem aos interesses da coletividade que permeia a atividade empresarial, exercendo uma função social, estando diretamente ligadas a questões de direitos humanos, meio ambiente e trabalhadores, sem que tal lista seja exaustiva. Assim sendo, o tema da responsabilidade social das corporações está ligado ao princípio da função social da empresa, que decorre do reconhecimento da função social da propriedade, mas também da busca do lucro pelas corporações"[2].
Além de atender a imperativos éticos, a adoção de mecanismos de boa governança é economicamente rentável. Atualmente, as bolsas de valores limitam a realização de ofertas públicas a empresas que atendam a critérios de boa administração, de modo a resguardar os possíveis acionistas e a manter a confiabilidade do ambiente financeiro[3]. Empréstimos internacionais e nacionais comumente incluem entre suas condicionalidades padrões mínimos de governança corporativa, os quais são mais bem implementados pela adoção de sistemas e regras de compliance.
Eventos recentes também indicam a existência de efeitos jurídicos para a governança corporativa. A adoção de programas e mecanismos satisfatórios de compliance, com a implementação de códigos privados de boas condutas, tem reflexos positivos para a segurança de sócios, acionistas e funcionários. Há dois exemplos nesse sentido, que dizem respeito à aplicação da Lei Anticorrupção e à possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica empresarial.
Em primeiro lugar, havendo programa de integridade efetivo por parte da empresa, reduzem-se as arbitrariedades e estimula-se a adoção de medidas efetivas de governança empresarial para a prevenção, a detecção e o reparo de práticas atentatórias ao erário. Por força do Decreto n. 8.420/2015, a comissão processante deve levar em conta a existência e o funcionamento do programa de integridade na apreciação da responsabilidade administrativa da empresa. Tamanha é a magnitude desse tipo de planejamento interno das corporações que, em casos de acordos de leniência, o programa de integridade se torna obrigatório, segundo o disposto no Decreto.
O mesmo princípio é extensível à atividade econômica realizada pela administração pública, por meio do Estatuto das Estatais (Lei 13.303/2016), que exige a adoção de regras de estruturas, práticas de gestão de riscos e mecanismos de compliance. A boa governança corporativa é, por força de lei, também um imperativo da administração indireta.
Em segundo lugar, a existência de mecanismos eficientes de compliancetambém limita a possibilidade de intromissão indevida no patrimônio dos sócios, ao reduzir-se a viabilidade de que o juízo acolha ação ou incidente de desconsideração da personalidade jurídica movido contra a empresa. Afinal, na linha de decisão recente do Superior Tribunal de Justiça em sede do REsp 1.729.554[4], a desconsideração da personalidade jurídica depende de comprovação de “prática objetiva de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial”, o que muito raramente ocorre em um ambiente corporativo bem regulado, pautado por padrões éticos apurados e estruturado em procedimentos claros e lógicos.
Esses novos critérios garantem a segurança da empresa individualmente e criam um ambiente de confiança e estabilidade para o sistema econômico como um todo. Mecanismos de compliance viabilizam o rastreamento da cadeia de práticas lesivas e a pormenorização da responsabilidade, evitando que ela seja atribuída de modo genérico à pessoa jurídica. De outra parte, a existência de regras e procedimentos é benéfica para que os empregados tenham clareza sobre o exercício e os limites de suas atribuições.
Com algumas décadas de atraso quanto à constatação de Sergio Buarque de Holanda, o regime jurídico de compliance, dotado de normas públicas e privadas, tem representado passos significativos no sentido da transparência, da integridade e da accountability, características indispensáveis à convivência harmônica e independente entre Estado e mercado.
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[1] Raízes do Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1969, p. 105-6.
[2] TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário e Globalização Rediscussão da Lógica Público-Privada do Direito Societário diante das Exigências de um Mercado Global. São Paulo: Atlas, 2014, p. 291.
[3] Quanto a isso, Marlon Tomazette cita também a criação de segmentos diferenciados na Bovespa que permitem vantagens a empresas que atendam a padrões ainda mais elevados de boa governança. Vide. TOMAZETTE, Marlon. Op. Cit. p. 281.
[4] STJ, REsp 1.729.554, rel. min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 8/5/2018. Acórdão pendente de publicação. O resumo do caso foi divulgado pelo tribunal em suas notícias. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/Desconsidera%C3%A7%C3%A3o-da-personalidade-jur%C3%ADdica-n%C3%A3o-exige-prova-de-inexist%C3%AAncia-de-bens-do-devedor>. Último acesso em 24/5/2018.
* Carolina Louzada Petrarca é advogada, especialista em Processo Civil, diretora da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC), professora de Processo Civil e conselheira federal pela OAB-DF (triênio 2015/2018)
* Gabriela Rollemberg é advogada, especialista em Direito Eleitoral, membro fundadora da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), vice-presidente da Comissão Especial de Direito Eleitoral do Conselho Federal da OAB (triênio 2015/2018)
Fonte: Consultor Jurídico