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Artigo - Escrituras de poligamia na pauta do CNJ – Por Regina Beatriz Tavares da Silva

Tem circulado na internet uma fake news de que o Poder Judiciário teria autorizado o casamento entre três pessoas, referindo-se à relação de poligamia entre um homem e duas mulheres. Segundo a falsa notícia, seria o primeiro casamento “poliafetivo” realizado no Rio de Janeiro.

A notícia afirma, também inveridicamente, que o caso não é inédito no Brasil, pois em São Paulo, na cidade de Tupã, a Justiça já teria reconhecido um outro casamento numa relação entre um homem e duas mulheres, no ano de 2012.

De início, é preciso deixar claro que essas relações não são casamentos e tampouco tiveram a chancela do Poder Judiciário.

As referidas relações poligâmicas foram escrituradas em Tabelionatos de Notas, que atribuíram a esse tipo de relação a natureza de união estável, com efeitos de direito de família e sucessórios, inclusive de registro de futuros filhos em nome do “trisal”, além de efeitos perante entes públicos (como o INSS) e particulares (como planos de saúde e clubes).

Escrituras públicas de “trisais” como entidades familiares são ilegais porque violam o comando constitucional da monogamia nas uniões estáveis, além de não serem moral, ética e socialmente aceitáveis. Explica-se.

A Constituição Federal no art. 226, § 3º estabelece que a união estável é a entidade familiar formada por duas pessoas, o que está previsto também no Código Civil (art. 1.723), inclusive na interpretação que lhe foi conferida pelo Supremo Tribunal Federal, ao aplicar o dispositivo legal às uniões entre pessoas do mesmo gênero ou sexo. Sejam heterossexuais, sejam homossexuais, as uniões estáveis que se equiparam ao casamento são compostas por duas pessoas: um homem e uma mulher, dois homens ou duas mulheres.

Por esses motivos, entre outros, A ADFAS – Associação de Direito de Família e das Sucessões – realizou o Pedido de Providências nº 0001459-08.2016.2.00.0000 à Corregedoria Nacional de Justiça – CNJ, a fim de que seja vedada a lavratura de escritura pública de relação poligâmica ou “poliafetiva” como entidade familiar.

Naquele Pedido de Providências já foi proferida decisão liminar pela Ministra Nancy Andrighi, com recomendação a todos os Tabelionatos de que não lavrem essas escrituras até o julgamento do processo.

A expressão “união poliafetiva”, utilizada naquelas escrituras, é um engodo, na medida em que pretende validar relacionamentos com formação poligâmica, ao arrepio da Constituição Federal, da lei infraconstitucional e dos costumes brasileiros. Aliás, também é falacioso o argumento de que todas as relações afetivas devem ser protegidas pelo Direito. O Direito somente tutela a afetividade em caso de relações lícitas, válidas e que acatam a ordem jurídica.

Em suma, a nossa sociedade não aceita a poligamia e não existe suporte normativo em nosso ordenamento jurídico para a atribuição a esse tipo de relação de efeitos de Direito de Família e de Direito das Sucessões, tampouco perante entes públicos e particulares.

Importante é mencionar que a poligamia é adotada em regiões com os piores Índices de Desenvolvimento Humano – IDH -, entre as quais a maior parte da África, sendo que estudos realizados por renomados estudiosos de ciências políticas, assim como da psicologia, economia e antropologia, concluíram que a poligamia gera nefastos efeitos, entre os quais, a desigualdade entre homens e mulheres, com maiores índices de violência doméstica e de outros crimes, além de piores investimentos nos filhos (Joseph Henrich, Robert Boyd e Peter J. Richerson: The puzzle of monogamous marriage. Acesso em 17/04/2018: http://rstb.royalsocietypublishing.org/content/367/1589/657).

Em toda a América do Norte, América Central e América do Sul, assim como em toda a Europa, na maior parte da Ásia e na Oceania, portanto, na maior parte do mundo, é adotada a monogamia como pilar da constituição de uma família.

Coincidência ou não, a fake news voltou a circular às vésperas do julgamento do Pedido de Providências no Conselho Nacional de Justiça.

O processo está sob a relatoria do Ministro João Otávio de Noronha e o julgamento foi marcado para o dia 24 deste mês de abril.

Chega a ser espantoso que haja necessidade de uma providência do Conselho Nacional de Justiça para que alguns Notários não mais lavrem essas escrituras de relação poligâmica, porque os Tabeliães de Notas, que têm “fé pública”, deveriam sempre cumprir a lei, citando-se a lapidar frase de Ricardo Dip, na obra Prudência Notarial: “Não basta a boa vontade – e assim se diz de modo popular, há boas intenções que emparedam os infernos -, porque a eleição do agir exige razoabilidade”.

* Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Doutora em Direito pela USP e advogada.


Fonte: O Estado de S. Paulo