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Artigo: Casei-me com meu irmão? – Por Regina Beatriz Tavares da Silva

O Brasil durante um ano esteve àfrente de muitos outros países em matéria de preservação dos seres humanosgerados por técnica de reprodução assistida.


Em 14 de março de 2016, oConselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio do Provimento nº 52, estabeleceunormas de extrema relevância sobre a reprodução assistida, a pedido da ADFAS,representada por esta articulista como presidente nacional desta Associação deDireito de Família e das Sucessões.

Até então, a reprodução assistidanão tinha regulamentação por meio de normas de aplicação geral ou erga omnes,porque era normatizada somente pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que éórgão de supervisão da ética profissional, cujas normas dizem respeitoexclusivamente à classe médica. Em suma, normas deontológicas, sem eficáciaerga omnes.

Assim, havia apenas a Resoluçãodo CFM nº 2.121, de 24 de setembro de 2015, segundo a qual era obrigatório o anonimatodo doador de sêmen ou da doadora de óvulo na reprodução assistida, tambémchamada reprodução heteróloga, em que uma terceira pessoa doa seu materialgenético para a fertilização de outra. (Capítulo IV, itens 2 e 4).

A proteção do doador do materialgenético, para que nunca pudesse ser identificado incentiva a doação de sêmen eóvulos, com a consequente ampliação do número de inseminações artificiais efertilizações assistidas. Tudo pela utilização das técnicas de reproduçãoassistida, independentemente dos problemas que a não identificação do doador domaterial genético possam causar ao ser humano gerado desse modo, em termosexistenciais, ou pelo vazio nesse ser humano, como se fosse, com o perdão dotermo, um filho de “chocadeira”, sem poder saber do seu passado, de suaverdadeira origem.

Em representação da ADFAS –Associação de Direito de Família e das Sucessões – apresentei ao CNJ osfundamentos pelos quais deveria ser vedado o anonimato ou sigilo do doador dematerial genético.
Já havia analisado este tema em tese de pós-doutoramento, apresentada naFaculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em que apontei as gravesviolações que o anonimato dos doadores em reproduções assistidas causa aosdireitos fundamentais de conhecimento da origem biológica e genética. Esta tesefoi publicada no livro Grandes Temas de Direito de Família e das Sucessões,Saraiva
(p. 17/85).

Como resultado do pedido daADFAS, o Provimento do CNJ nº 52/2016 determinou que o doador de sêmen e adoadora de óvulo deveriam ser identificados em escritura pública, a serapresentada no ato do registro de nascimento oriundo de reprodução assistida. OCNJ, no uso de suas atribuições, entre as quais normatizar os registros denascimentos, por meio daquele Provimento, estabeleceu norma de extremarelevância na proteção dos seres humanos nascidos por reprodução assistida, queé a revelação de quem é o doador do material genético, porque todas as pessoastêm o direito de conhecer sua origem, quem são seus ascendentes ou “pai e mãebiológicos” (art. 2º, § 1º, I).

Observe-se que, de acordo com oProvimento do CNJ nº 52/2016, embora obrigatória a revelação da identidade dodoador, essa informação não criaria vínculo de paternidade entre o doador desêmen ou a doadora de óvulo e a criança gerada (art. 2º, § 4º).

No entanto, o CNJ tomou outroposicionamento em 14 de novembro de 2017, por meio do Provimento n. 63, em querevogou o Provimento antes citado, possibilitando o anonimato do doador domaterial genético, já que retirou a exigência da apresentação da escriturapública com o nome do doador no ato do registro de nascimento oriundo dareprodução assistida (art. 8º).

Quase que concomitantemente, oCFM editou outra Resolução, reiterando o que dizia a anterior. Segundo aResolução do CFM nº 2.168, em 10 de novembro de 2017, é obrigatório o anonimatodo doador de sêmen e a doadora de óvulos (Capítulo IV, itens 2 e 4): “Osdoadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa” e “Serámantido, obrigatoriamente, sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas eembriões, bem como dos receptores. Em situações especiais, informações sobre osdoadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente paramédicos, resguardando-se a identidade civil do(a) doador(a).”

Vejam o resultado perverso doanonimato do doador num caso real, ocorrido na França, que já comenteianteriormente e que agora, com a modificação das normas do CNJ, pode ocorrertambém em relação a casais brasileiros.

Na França, no ano de 2009, ospais de Audrey Kermalvezen, uma advogada francesa, revelaram à filha, jácasada, que ela fora concebida por reprodução assistida heteróloga, aquela queum casal realiza mediante doação de gameta de um terceiro, ou seja, aprocriação de Audrey ocorrera com o espermatozoide de outro homem que não seupai.

Audrey sentiu o mundo abrir aosseus pés. Ela conta que foi tomada de uma raiva intensa contra os pais, porterem escondido a verdade dela por quase trinta anos. A raiva e a indignaçãoque a moça sentia pelos pais só foi atenuada porque, como advogada especialistaem Bioética, ela sabia perfeitamente o quanto a medicina e a legislaçãofrancesa haviam contribuído para criar e manter aquela mentira na qual elahavia acreditado durante tanto tempo, ao privilegiar o completo sigilo dosprocedimentos de reproduções assistidas, mantendo o anonimato absoluto dosdoadores, com o propósito de encorajar mais e mais pessoas a se tornaremdoadores de gametas.

Contudo, a angústia que se abateusobre Audrey não se devia exclusivamente à frustração de descobrir que o homemque passara a vida inteira pensando ser seu pai, não era de fato seu paibiológico. Sua situação era mais grave. Audrey casara-se com um homem da mesmaidade, nascido na mesma região da França, também concebido por reproduçãoassistida. Sem poderem conhecer as identidades de seus pais biológicos, emrazão do anonimato do doador que vigora na França, ela e o marido foram tomadospelo medo de que fossem irmãos, com a mesma ascendência biológica paterna.

O casal iniciou então umaverdadeira batalha na justiça, que continua se estendendo por anos, paradescobrir a identidade de seus respectivos pais biológicos, ou, ao menos, paraobterem a confirmação que não são filhos biológicos do mesmo homem.

Mas essa informação tem sido negada,porque, argumentam as autoridades francesas, colocaria em risco o anonimato dosdoadores. Assim como no Brasil segundo sua atual regulamentação, na França aidentidade dos doadores somente pode ser revelada aos médicos e por razões desaúde cujo tratamento exija o conhecimento dos dados genéticos.

No Brasil, Audrey teria melhorsorte sob a égide do Provimento do CNJ de 2016 e ficaria igualmente como ficousem a tutela de seus direitos de conhecer a identidade de seu pai biológico soba vigência do Provimento do CNJ de 2017.

Note-se que o CFM autoriza que umdoador produza 2 gerações de crianças de sexos diferentes numa área de1.000.000 de habitantes (Capítulo IV, item 6). Levando-se em consideração que,de acordo com o IBGE, o município de São Paulo possui aproximadamente 12milhões de habitantes e que a Grande São Paulo tem 21 milhões, existe apossibilidade de existirem, respectivamente, 24 e 42 irmãos dentro dessas áreasgeográficas, oriundos da mesma doação de sêmen, ou seja, com o mesmo ascendente,se apaixonarem e praticarem involuntariamente o incesto. Mas o risco de incestoé muito maior tendo em vista que um doador de sêmen pode ter outros filhosnaturalmente, que também poderão se apaixonar por seres humanos gerados de suadoação de esperma.

O sofrimento de inúmeras pessoasna França, que desejam conhecer a sua ascendência biológica, é revelado pelaexistência da Associação PMAnonyme, que reúne cerca de 300 pessoasinconformadas com o anonimato na sua ascendência biológica. Além de encamparema luta pública pela mudança da legislação francesa, essas pessoas, unidas emseu desespero, organizam-se para tentar obter dados com testes genéticos entresupostos irmãos, todos oriundos de reproduções assistidas. Através dessaAssociação e desses mesmos testes genéticos que não são regulares, podendo-seimaginar as dificuldades inerentes à sua realização e à conclusão sobre aexistência ou não de laços fraternos, Audrey e seu marido, embora ainda esperema resposta da Corte Europeia de Direitos Humanos sobre a revelação de suaascendência biológica, tiveram a sorte de livrar-se da dúvida que os angustiavaao conseguirem identificar alguns meio-irmãos, após muitos anos de aflição.

O risco de incesto é real não sóna França, como também no Brasil e em todos os países que adotam o anonimato dodoador.

E aí fica a dúvida a perturbargravemente um casal em que pelo menos um deles tenha sido gerado por reproduçãoassistida: “Casei-me com meu irmão”?


*Regina Beatriz Tavares da Silvaé Presidente da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões).Doutora em Direito pela USP. Pós-Doutora em Direito da Bioética pela Faculdadede Direito da Universidade de Lisboa. Advogada.

Fonte: Estadão