Introdução
Inicialmente, espero que este artigo seja lido com espírito isento e que sirva para a reflexão. Não tenho a pretensão de ser o dono da verdade nem tampouco o “cavaleiro do apocalipse”. Pretendo apenas trazer algumas ponderações — às vezes de forma contundente (estilo meu) —, de modo a contribuir para o debate. Acredito, piamente, que a arbitragem é um sucesso no Brasil e merece continuar sendo. Ressalto ainda que este artigo trata — apenas — das arbitragens locais. Feitas essas ressalvas, sigo com meus pitacos. Aguardo, no entanto, críticas mordazes e, eventualmente, um ou outro encômio, discreto e silencioso.
Muito se escreve sobre processo e arbitragem, e não raras vezes um dogmático imperativo categórico é repetido sistematicamente: arbitragem nada tem a ver com processo. Na visão de muitos, processo seria um sinônimo de engessamento, atraso e formalismo. Um festival de ritos que — em uma análise ligeira — atrapalharia a adequada solução do mérito em disputa. Por isso mesmo, enuncia-se, com grandiloquência, que uma das principais vantagens da arbitragem seria a flexibilidade procedimental.
O presente artigo, contudo, visa demonstrar que as festejadas maravilhas da flexibilidade devem ser vistas cum granus salis. Um formalismo exacerbado, de fato, não é solução. Todavia, não me parece razoável que duas partes em um conflito de interesses sejam desprovidas de regras básicas de modo a regular sua disputa adversarial.
Antes de mais nada, talvez seja necessário fazer uma ponderação que permeará todo o racional aqui exposto. Quer se queira ou não, arbitragem é procedimento que visa pôr fim a uma lide: ou seja, a “um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida” (Francesco Carnelutti). A sua diferença mais marcante, no que se refere aos litígios tradicionais, reside na jurisdição. Em vez de submeter sua disputa aos tribunais estatais, as partes, livremente, decidem que suas disputas serão solucionadas por meio de um procedimento arbitral.
Poder-se-ia dizer que se trata de um processo privado, estando livre das “nefastas” liturgias processuais. Mas, mesmo assim, como se verá nas linhas subsequentes, há regras que — a meu ver — devem ser seguidas. Data maxima venia, acredito que não será possível alcançar a melhor solução sem que os mais comezinhos princípios processuais — e garantias constitucionais — sejam observados. Esclareça-se: a ideia não é — de forma alguma — defender a aplicação do Código de Processo Civil às arbitragens.
No entanto, parece pouco provável que um conflito de interesses seja solucionado sem a observância (i) ao devido processo legal; (ii) ao tratamento isonômico das partes; (iii) ao contraditório e à ampla defesa; (iv) às fases procedimentais (postulatória, probatória e decisória); e (v) à distribuição racional e coerente dos ônus processuais (entre eles, os ônus de alegar e de provar). É dentro desse escopo, assim, que convido o leitor à reflexão, sem a pretensão de formular qualquer espécie de imperativo categórico. Vamos, assim, ao contraponto.
Devido processo legal
Processo, como se sabe, é um “conjunto de atos sucessivos, praticados ordenadamente, a fim de se alcançar um resultado”[1]. Parece óbvio, mas não custa lembrar que a modificação na sucessão dos atos ou na ordem de sua prática alterará o resultado a ser alcançado. Daí a necessidade de se assegurar, às partes, garantias mínimas de que determinados atos serão feitos no tempo, no modo, na ordem e na forma devidos, afim de não se alterar o resultado a ser alcançado e ainda de não permitir que esses atos sejam desvirtuados.
O devido processo legal, por sua vez, constitui exatamente nesta garantia de que as lides serão solucionadas de forma adequada com atos praticados em determinada ordem e forma[2]. Só assim é possível assegurar que as partes sejam ouvidas e que pratiquem todos os atos necessários, no sistema adversarial[3], para defesa dos seus interesses.
O due processo of law é garantido mundialmente nos mais diversos sistemas jurídicos[4]. Sem ele, haveria profunda incerteza para as partes, impedindo que elas soubessem o que fazer para exercer o direito de defesa dos seus interesses.
A definição da sequência e ordenação dos atos e fases do procedimento, portanto, é uma garantia fundamental de que as partes terão pleno conhecimento de seus direitos, ônus e deveres no curso do procedimento que visa a solução de seu conflito.
Além disso, o devido processo legal se desdobra em garantias fundamentais para as partes litigantes. Dentre elas pode-se destacar o direito ao (i) tratamento isonômico; (ii) ao contraditório; e (iii) à ampla defesa.
Tratamento isonômico
O fundamento para o tratamento isonômico das partes se encontra no preceito constitucional de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (artigo 5º, caput da Constituição Federal). Se todos são iguais perante a lei, os litigantes também devem ser tratados com igualdade, seja junto ao Poder Judiciário, seja em um tribunal arbitral.
Como ensina, com muita propriedade, Eduardo Couture, “o litígio aparece, portanto, marcado por uma ideia que chamamos de bilateralidade. As partes se acham no litígio em pé de igualdade e essa igualdade, dentro do processo, outra coisa não é senão uma manifestação do princípio de igualdade dos indivíduos perante a lei”[5].
Tratar as partes com isonomia é dar-lhes as mesmas oportunidades durante a dialética do procedimento; é cobra-lhes os mesmos ônus; é, acima de tudo, dar as devidas consequências para quem litiga de modo a criar uma balburdia no processo.
Contraditório e ampla defesa
Na esteira do tratamento isonômico está o sagrado direito ao contraditório e à ampla defesa, insculpido no artigo 5ª, LV da Constituição Federal. As partes têm o direito de apresentar suas objeções às pretensões e alegações que lhes são imputadas.
Todavia, na linha do que já foi dito acima, os direitos implicam em ônus. Da existência do direito ao contraditório e à ampla defesa, decorre, necessariamente, o ônus de afirmar e de provar. Aliás, como disse com muita precisão Eduardo Couture, “para ser fiel ao método cartesiano, em primeiro lugar devem ficar os fatos. A vida do direito, antes de tudo é a vida dos fatos”[6].
Sem narrativa de fatos, não há oposição dialética viável. Nem se transmudando em algoz de si próprio qualquer um conseguiria adivinhar as pretensões, alegações e afirmações que poderiam ser feitas contra si. É impensável, por exemplo, que a parte possa ser obrigada a atuar como autor e réu de si mesma, corrigindo a ausência de afirmações da outra parte, em um exercício mental ao melhor estilo “Dr. Jekyll e Mr. Hyde”.
Como salientou muito bem o professor Cândido Dinamarco, “entre os ônus processuais, o primeiro e de maior peso é o ônus de afirmar, especificamente considerado nos termos do ônus de demandar. E como quem pede há de justificar o petitum alinhando uma causa petendi, só demanda adequadamente quem fundamenta de modo adequado”[7].
Na irretocável lição de Francesco Carnelutti, “o processo judicial e o processo dialético aparecem, portanto, ante nós, unidos por um vínculo profundo. Chega-se à verdade por oposições e refutações; por teses, por antíteses e por sínteses. A justiça se serve da dialética porque o princípio da contradição é o que permite, por confrontação dos opostos, chegar à verdade”[8]. A dialética, por óbvio, pressupõe a afirmação.
Essa mesmíssima linha, destacando a imprescindibilidade do ônus de afirmar, é adotada no common law, como se pode perceber do trecho abaixo de autoria dos professores Fleming James, Jr., Geoffrey C. Hazard, Jr., John Leubsdorf, in verbis: “The Federal Rules require a complaint to provide a ‘statement of the claim showing that the pleader is entitled to relief.’ Under the codes, the complaint must state facts ‘constituting the cause of action.’ Although these terms are not identical, they each require the pleader to describe a specific instance falling within a class of instances that the substantive law recognizes as entitling the injured party to relief, if the facts alleged can be proven”[9].
Vê-se, assim, que é do próprio direito ao contraditório e à ampla defesa que surge o dever de afirmar. A apresentação de pretensões, desta feita, gera a obrigação da afirmação detalhada dos seus fundamentos. Sem isso, a parte contrária fica absolutamente impossibilitada de impugnar as pretensões. A inépcia de um pedido por falta de narrativa é, portanto, um corolário lógico das garantias previstas no artigo 5º, LV da Constituição Federal, e, acredito, deveria ser aplicada, também, aos procedimentos arbitrais.
Fases de um procedimento
As partes apresentam posições contrárias, e, ao final do procedimento dialético, o tribunal arbitral proferirá uma decisão que porá fim ao conflito de interesses. Essa formatação impõe um “conjunto de atos sucessivos, praticados ordenadamente, a fim de se alcançar um resultado”[10]. Para a garantia do devido processo legal e dos demais princípios mencionados acima, a sequência desses atos precisa ter marcos e fases específicas.
Todo o procedimento adversarial possui algumas fases bem delineadas com uma sequência própria: (1) a postulatória; (2) a probatória; e (3) a decisória. Aqui, diferentemente da matemática, a ordem dos fatores tem o condão de alterar ou até impedir a obtenção do produto. Por razões óbvias, não é possível iniciar essa sequência pela fase decisória ou probatória.
De modo a não eternizar uma disputa, cumpre, outrossim, esgotar cada fase procedimental antes de adentrar à próxima. A fase probatória, por exemplo, não pode ser iniciada antes que a fase postulatória termine. E a razão disso é por demais simples: em um procedimento adversarial, só se provam fatos que tenham sido alegados pelas partes.
Confira-se, nesse sentido, a lição de Francesco Carnelutti, in verbis: “Na linguagem comum, prova se utiliza como comprovação da verdade de uma proposição; somente se fala prova a propósito de alguma coisa que foi afirmada e cuja exatidão se trata de comprovar; não pertence à prova o procedimento mediante o qual se descobre uma verdade não afirmada senão, pelo contrário, aquele mediante o qual se demonstra ou se encontra uma verdade afirmada”[11](grifo nosso).
Percebe-se, portanto, que as fases e a sequência tradicional do procedimento devem ser observadas, mesmo em uma arbitragem. De outra forma, prevaleceria o caos e a incerteza, gerando profunda insegurança jurídica para os litigantes.
Ainda que se diga que uma das principais vantagens da arbitragem consiste em criar o melhor procedimento para a solução de uma disputa específica, não é possível, pura e simplesmente, negar séculos de conhecimento sobre processo. Os princípios processuais, consagrados na nossa Constituição Federal e na história da humanidade, são a garantia fundamental para um julgamento justo e constituem a legítima expectativa das partes e da sociedade como um todo acerca de como a Justiça será distribuída, e, por que não dizer, como será encontrado o direito aplicável a cada situação.
Por essas razões, à luz do que se demonstrou acima, cumpre reconhecer a falha incorrigível de narrativa genéricas e inespecíficas (failure to state a claim[12]), levando à inépcia dos pleitos assim deduzidos[13]. Fatos e narrativas, por óbvio, são obrigações fundamentais para o exercício do direito de demandar. Mas por que isso?
Moacyr Amaral Santos adverte, por exemplo, que “a perícia versa sobre fatos”[14]. Mas quais fatos seriam esses? Obviamente os fatos afirmados, pois, como elucida Francesco Carnelutti, “fato não afirmado se considera inexistente”[15]. Além disso, o insigne processualista italiano aduz, incisivamente, que “o ônus da afirmação não pode ser distribuído, porque o interesse na afirmação (na consideração [berüsksichtgung] do fato afirmado) é somente unilateral. (…) Portanto, quando se trata de estabelecer quem deva afirmar, não pode haver eleição”[16] (grifo nosso).
Percebe-se, portanto, que as fases de um processo têm razões lógicas e técnicas, não podendo ser ultrapassadas, sob pena de culminar em um processo kafkiano, confuso, injusto, muitas vezes interminável e, por que não dizer, violador das garantias constitucionais das partes. Iniciando-se pela descrição precisa dos fatos, diversos ritos — criados por séculos — visam, a bem da verdade, garantir o equilíbrio e regras claras para que os conflitos de interesses sejam decididos sem surpresas e ponderadamente. Não são filigranas, são critérios para buscar as melhores decisões possíveis, a despeito das idiossincrasias humanas, que, em última análise, são tratadas pela própria economia, como se percebe dos estudos que conferiram a Richard Thaler o Prêmio Nobel deste ano[17].
Conclusão
Loucura, insensatez, sectarismo e falta de equilíbrio são a tônica do debate brasileiro. Não se olha, de forma minimamente objetiva, para argumentos, ponderações e percepções. Tudo se resume a uma disputa grotesca de quem “fala mais alto”. Infelizmente, essa postura — adotada ostensivamente nos debates públicos — vem caminhando, a passos largos, para a dialética dos procedimentos arbitrais e judiciais.
A “caça às bruxas” da atualidade tem sido a força motriz para tempos sombrios. Tudo é objeto de escrutínio imediato e imediatista, sem provas nem aprofundamento. Leituras diagonais são feitas para conclusões instantâneas, ao melhor estilo “café solúvel”. Esquecemos, assim, do dever sacrossanto de avaliar fatos, circunstâncias, particularidades, fundamentos e, acima de tudo, provas.
De orelhada, formamos julgamentos com base no que ouvimos dizer — inclusive por “prova” testemunhal, que, como diz o ditado, “é a prostituta de todas as provas”. Fogem-se das razões, partindo-se para juízos de valor enviesados, construídos por falatório e desprovidos de critérios mínimos.
Por essas razões, data maxima venia, é crucial, na minha modesta opinião, que os procedimentos arbitrais respeitem (i) o devido processo legal; (ii) o tratamento isonômico das partes; (iii) o contraditório e a ampla defesa; (iv) as fases procedimentais (postulatória, probatória e decisória); e (v) a distribuição racional e coerente dos ônus processuais (entre eles os ônus de alegar e de provar). Sem isso, transforma-se a arbitragem em um procedimento tresloucado, sem rumo nem direção, que, certamente, acabará em um resultado precário, pouco sólido e, talvez, contrário ao próprio direito, abrindo brechas — infelizmente — para a intervenção a posteriori do Poder Judiciário, o que somente prejudicará a credibilidade e o sucesso do instituto em nosso país.
[1] In Introdução ao Processo Civil, Sérgio Bermudes, 5º Edição, Forense, 2010, pág. 79.
[2] Na lição de Eduardo Couture: “O procedimento não se nos apresenta mais como o humilde servo do direito civil ou do direito comercial, mas como um ramo autônomo do direito, colocado sobre a fronteira da Constituição para assegurar a eficácia dos direitos do homem no tocante à justiça”. In Introdução ao Estudo do Processo Civil, José Konfino – Editor, 3ª Edição, pág. 33.
[3] Fleming James, Jr., Geoffrey C. Hazard, Jr., John Leubsdorf esclarecem o seguinte sobre o sistema adversarial: “Party-presentation concerns “content of the cause” and assumes that both sides (or all sides when the litigation involves more than two parties) have a balanced opportunity to investigate and present proof and legal argument. The principle is an expression of the interrelated ideas that parties should be masters of their own rights, free to press or waive claims or defenses, and that the social interest in securing legal rights is sufficiently served by leaving their enforcement to the self-interest of the parties directly affected”. In Civil Procedure, Foundation Press, 2nd Edition, 2001, pág. 4.
[4] Como esclareceu, com muita propriedade, Eduardo Couture: “Muitas constituições americanas consagram, ainda hoje, mediante texto expresso, no capítulo dos direitos individuais, a máxima de que ninguém pode ser condenado sem ser ouvido. Uma larga experiência histórica, através dos séculos, nos ensina a profunda sabedoria desse preceito. Esses dispositivos têm um antecedente claro na garantia contida nas emendas V e XIV da Constituição dos Estados Unidos da América do Norte e conhecido com o nome de ‘due processo of law’”. Ob. Cit. pág. 50.
[5] Ob. Cit. págs. 41 e 42.
[6] In Introdução ao Estudo do Processo Civil, José Konfino – Editor, 3ª Edição, pág. 25.
[7] In Fundamentos do Processo Civil Moderno, Ed. Malheiros, 3ª edição, pág. 929.
[8] Ob. Cit. pág. 66.
[9] Ob. Cit. pág. 198.
[10] Ob. Cit. pág. 79.
[11] Ob. Cit. pág. 67.
[12] A Suprema Corte dos Estados Unidos rejeitou três demandas, em razão da falta de narrativa. Os casos são os seguintes: (i) Ashcroft v. Iqbal; (ii) Bell Atlantic Corp. v. Twombly; (iii) Tellabs, inc. v. Makor Issues & Rights, ltd. Ou seja, até no common law essa questão está ganhando contornos mais sérios.
[13] “A afirmação das partes vincula ao juiz quanto à posição do fato: de um lado, porque não pode pôr uma situação de fato que não tenha sido afirmada por uma (pelo menos) das partes, e de outro, porque não pode deixar de pôr (omitir) uma situação de fato que tenha sido afirmada por todas as partes. A afirmação unilateral (discorde) de um fato é condição necessária para a sua posição na sentença; a afirmação bilateral (concorde) é por fim condição suficiente. Os fatos não afirmados não podem ser postos; os fatos afirmados de comum acordo têm que ser postos”. Francesco Carnelutti, Ob. Cit. pág. 40.
[14] Ob. Cit. pág. 140.
[15] Ob. Cit. pág. 40.
[16] OB. Cit. pág. 41/41
[17] www.nobelprize.org/nobel_prizes/economic-sciences/laureates/2017/advanced-economicsciences2017.pdf
*Leonardo Corrêa é advogado formado pela PUC-Rio, com LL.M pela University of Pennsylvania (EUA).
Fonte: Conjur