Há a premissa de que no Brasil se tributa pouco a transmissão causa mortis em comparação aos países desenvolvidos. Alguns professores tributaristas repetem a informação aos seus alunos; publicações, tais como o documento intitulado Austeridade e Retrocesso, e outras da mídia convencional, como o jornal O Estado de S. Paulo e a revista Exame, e até a revista jurídica da Presidência da República, têm divulgado essa informação. Mais detalhadamente, o que se alega é que a alíquota do imposto no Brasil de hoje é de no máximo 8%, sendo que, em 2015, a média entre as alíquotas dos seus estados era de 3,86%, enquanto países como a Suíça teriam alíquotas equivalentes a 50% — porcentagem mais de seis vezes maior.
A premissa ganhou força com a divulgação de um release da Ernst & Young Global (EY Consultoria), de 3 de junho de 2014, que, em seu site, afirma que o “Brasil é um dos países que menos tributa heranças e doações no mundo”.
O resultado prático da ampla divulgação dessa ideia foi a elaboração de duas propostas de emendas constitucionais e 12 projetos de lei visando aumentar a arrecadação dos estados e da União por meio da tributação sobre a transmissão da herança — todas sob a justificativa da baixa tributação, assim como sob o argumento de que a majoração da sua alíquota seria um meio de diminuir a desigualdade social existente no país.
Entretanto, a premissa não é verdadeira.
No release da EY Consultoria, equivocadamente, compararam-se apenas as alíquotas de alguns países, e não o valor efetivamente arrecadado — ou o impacto sobre o patrimônio do contribuinte. Para uma pessoa mais atenta, sabe-se que a alíquota é apenas uma porcentagem a ser aplicada sobre uma base de cálculo, e não o valor efetivamente arrecadado por um Estado.
Também, o release não considera a diferença entre os sistemas tributários dos países comparados, ignorando as hipóteses de incidência, isenções e abatimentos. A forma como os países comparados tributam a herança é bem diferente do sistema brasileiro.
Nos Estados Unidos (EUA), por exemplo, há dois tipos de tributação sobre a herança: uma federal e uma estadual. No âmbito federal, em 2015, apenas os valores excedentes a U$ 5,43 milhões foram tributados. A alíquota do tributo variava entre 18% e 40%, dependendo do valor a ser tributado. No âmbito estadual, no ano de 2015, dos 50 estados, 19 cobraram o tributo, além da capital do país, Washington D.C.. Os 31 estados restantes não tributaram a transferência causa mortis.
No Reino Unido, no ano de 2015, apenas os valores acima de 325 mil libras esterlinas foram tributados. Desse excedente, incidia a alíquota de 40%.
Na França, as alíquotas e a base de cálculo são progressivas em função do parentesco. Assim como os EUA e o Reino Unido, apenas valores acima de determinada quantia é tributada. Em 2015, o valor do abatimento era de 100 mil euros para cada quinhão, se o herdeiro for parente em linha reta. As alíquotas, para esse herdeiro, variavam entre 5% e 45%, sendo aplicada de forma progressiva.
No Japão, existem duas deduções legais na base de cálculo: uma dedução geral do patrimônio e mais outra dedução para cada herdeiro — este sistema de deduções é chamado de Souzokuji Seisan Kazei. Em 2015, as deduções eram de 30 milhões de ienes mais 6 milhões ienes para cada herdeiro (30 milhões de ienes + [6 milhões ienes x número de herdeiros]).
A Itália, em 2015, não cobrava o tributo sobre valores abaixo de 1 milhão de euros para cônjuges e parentes em linha reta e de 100 mil euros para irmãos. Na Alemanha, o abatimento era de 50 mil euros para cônjuges, 400 mil para filhos euros, 200 mil euros para netos e bisnetos e 100 mil euros para demais parentes.
Além dos abatimentos existentes, cada um desses países apresenta isenções pontuais, como para automóveis na Itália, obras de arte na França, etc.
Comparando os sistemas tributários do Brasil e desses países, dividindo-se o patrimônio a ser herdado em de baixo valor (R$ 25 mil), médio valor (R$ 500 mil) e alto valor (R$ 5 milhões), e considerando que o patrimônio será recebido por somente um herdeiro, apenas o Brasil tributaria o patrimônio de baixo valor (R$ 25 mil). O patrimônio de médio valor (R$ 500 mil), por sua vez, seria tributado apenas por Brasil e França.
A situação muda quando se aumenta o número de herdeiros. No caso de dois herdeiros, apenas o Brasil tributaria o patrimônio de médio valor (R$ 500 mil).
Em relação ao patrimônio de alto valor, o Estado brasileiro arrecadaria pouco na hipótese de haver somente um herdeiro, em comparação aos países citados. Entretanto, havendo dois ou mais herdeiros, o Brasil tributaria o mesmo que os demais Estados comparados. Quanto mais herdeiros, mais favorável será a tributação aos contribuintes da maioria dos países aqui descritos, em comparação ao Brasil.
Dessa forma, ao contrário da premissa existente, o Brasil tributa muito a transmissão causa mortis, principalmente quando se compara a tributação sobre o patrimônio de baixo valor — que normalmente pertence à camada mais pobre da população.
O aumento desse tipo de tributação, como proposto nos projetos legislativos existentes, não tem o condão de diminuir a desigualdade social, tendo em vista que retira do mais carente uma maior parte do patrimônio que receberia de herança.
Também, não há como vincular a receita obtida com o referido imposto a alguma política pública para diminuir a desigualdade social. O artigo 167, IV, da Constituição Federal de 1988, veda a utilização da arrecadação do imposto para um fim específico, o que torna incorreto o argumento de direcionar os valores arrecadados para tal fim.
Assim, os dois argumentos utilizados para aumentar a tributação sobre a herança se mostram incorretos, tendo a medida mero caráter arrecadatório.
Dessa forma, a premissa de que o Brasil tributa pouco a herança está equivocada, assim como o raciocínio de que o aumento de tal tributação no país diminuiria a desigualdade social.
Fonte: Conjur