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iRegistradores: O que é o direito real de laje à luz da lei nº 13.465/2017 (parte 1) – por Carlos Eduardo Elias de Oliveira

1 Introdução

Uma frase marcou os meus primeiros raios de estudo de Direito. Após um seminário acadêmico, alcancei no corredor um dos maiores processualistas brasileiros que, nos bastidores, tinha sido o responsável por leis que haviam mudado o Código de Processo Civil. O saudoso professor e ministro do STJ Athos Gusmão Carneiro, após dissolver minhas dúvidas, apoiou amigavelmente a sua mão no meu ombro e disse: “Nova Lei, Nova Hermenêutica”. Realmente, o Novo sempre surpreende. Os juristas tendem a infertilizar o Novo por meio de uma hermenêutica do passado. A sujeição ao Novo costuma demorar algum tempo.

O Direito Civil amanheceu no dia 12 de julho de 2017 com uma impactantes novidades. Foi publicada a Lei nº 13.465/2017, foi fruto da conversão da Medida Provisória 759/2016. Trata-se de uma Lei que, ao enfrentar com ousadia o problema das ocupações irregulares de terras, chacoalha estruturas tradicionais do Direito Civil, denunciando que, entre as várias causas de proliferação da informalidade na ocupação fundiária, está também a progressiva decrepitude de alguns institutos de Direito das Coisas e das interpretações correlatas.

Tivemos a honra de participar dos trabalhos desenvolvidos no Congresso Nacional para a construção do texto da nova Lei e testemunhamos a participação relevantíssima de respeitadíssimos juristas, a exemplo dos professores Dr. Otávio Luiz Rodrigues Junior (USP), Dr. Roberto Paulino (UFPE) e Dr. Hércules Benício (IDP), Dr. Rodrigo Numeriano, além dos civilistas e registradores Dr. Flauzilino Araújo dos Santos e Dr. Sérgio Jacomino. Outros respeitados juristas deixam aqui de ser mencionados apenas em razão dos limites deste estudo. A Rede de Pesquisas de Direito Civil Contemporâneo teve participação especial nesse processo.

O nosso objetivo aqui será o de apontar as principais novidades que despertarão debates intensos nos civilistas e que exigirão deles construir uma “nova hermenêutica” para tratar especialmente das instituições tradicionais de Direito das Coisas e de Direito Urbanístico.

De modo mais específico, trataremos apenas do Direito Real de Laje. Deixaremos para outra oportunidade o trato de outros assuntos relevantes ao Direito Civil, como as duas novas espécies de Condomínios (o de Lotes e o Urbano Simples), uma nova forma de aquisição originária da propriedade (Legitimação Fundiária), as alterações no Usucapião Extrajudicial e as novas regras sobre uma hipótese de extinção da propriedade imóvel, o abandono. Outra novidade que infelizmente deixaremos para outra oportunidade é o consórcio imobiliário, figura formidável que contribuirá para a utilização do reparcelamento como forma de reorganização do espaço urbano, conforme texto de um dos mais respeitados urbanistas brasileiros, o professor Victor Carvalho Pinto (Disponível neste link).

2. Direito Real de Laje

2.1.Da gênese: subsídios para interpretações históricas

Após críticas levantadas pela doutrina, com destaque aos textos produzidos no âmbito da Rede de Direito Civil Contemporâneo, sob as penas dos professores Otávio Luiz Rodrigues Junior () e Roberto Paulino, o texto do Direito Real de Laje inicialmente costurado pela Medida Provisória 759/2016 foi aprimorado.

No processo de elaboração, foram estimadas ideias de outras autoridades nesse tema, como o professor Frederico Henrique Viegas de Lima (UnB) – autor da obra “O Direito de Superfície como Instrumento de Planificação Urbana” – e o professor Rodrigo Reis Mazzei – com sua dissertação de mestrado “O Direito de Superfície no Ordenamento Jurídico Brasileiro”. Outros juristas colaboraram por diversos meios (e-mail, ligações telefônicas etc.).

Na redação do texto, foi também levado em conta a disciplina do instituto pelo Código Civil de Portugal, que, ao tratar do Direito Real de Superfície, disciplina o “Direito de construir sobre edifício alheio” no seu art. 1.526º:

“Artigo 1526º?(Direito de construir sobre edifício alheio)

O direito de construir sobre edifício alheio está sujeito às disposições deste título e às limitações impostas à constituição da propriedade horizontal; levantado o edifício, são aplicáveis as regras da propriedade horizontal, passando o construtor a ser condómino das partes referidas no artigo 1421º.”

Igualmente, no tratamento das áreas comuns, o legislador inspirou-se na disciplina que o Código Civil lusitano dispensa ao condomínio, com adaptações. Veja que o art. 1.510-C do CC, embora se particularize em alguns aspectos, guarda indisfarçável simpatia com a definição de partes comuns do prédio na forma desenhada pelo art. 1.421º do Codex português:

“Artigo 1421.o?(Partes comuns do prédio)

1. São comuns as seguintes partes do edifício:

a) O solo, bem como os alicerces, colunas, pilares, paredes mestras e todas as partes restantes que constituem a estrutura do prédio;

b) O telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso de qualquer fracção;

c) As entradas, vestíbulos, escadas e corredores de uso ou passagem comum a dois ou mais condóminos;

d) As instalações gerais de água, electricidade, aquecimento, ar condicionado, gás, comunicações e semelhantes.

2. Presumem?se ainda comuns:

a) Os pátios e jardins anexos ao edifício;

b) Os ascensores;

c) As dependências destinadas ao uso e habitação do porteiro;

d) As garagens e outros lugares de estacionamento;

e) Em geral, as coisas que não sejam afectadas ao uso exclusivo de um dos condóminos.

3 ? O título constitutivo pode afectar ao uso exclusivo de um condómino certas zonas das partes comuns.”

O Direito Real de Laje está agora previsto a partir do art. 1.510-A do Código Civil como uma nova espécie de Direito Real.

2.2 Nomenclatura atécnica, mas popular

Em primeiro lugar, o nome “Laje” não foi o mais técnico, pois esse novo direito real retrata um direito real de superfície de graus sucessivos (segundo, terceiro etc.), que também poderia ser chamado de direito real de sobrelevação. Todavia, por força da fama popular granjeada pela expressão, o Parlamento preferiu manter o nome atécnico. Perceba que, apesar de ser nomeado como direito real de laje, esse direito real também pode ser instituído para formalizar a titularidade de um direito real sobre “andares subterrâneos”, de modo que não é apenas a “laje” que serve de ponto de partida, mas também o solo.

Deveras, o direito real de laje não abrange apenas o espaço aéreo acima da laje (“andares ascendentes”), mas também o espaço abaixo do solo (“andares subterrâneos”). Isso demonstra a incoerência taxonômica do legislador: o Direito Real não é apenas de Laje, mas também de Subsolo. Para adaptação terminológica, quando o Código Civil refere-se ao “titular da laje”, está implícito que se está a falar do titular da laje aérea e da laje subterrânea. Seja como for, a nomenclatura atécnica atende a um objetivo maior: aproximar o Direito do homem comum, do – nas palavras de Ronald Coase – “the man on the Clampham Bus”[1].

2.3 Direito real sobre coisa própria (alargamento do conceito de propriedade) e lajes aéreas e subterrâneas.

Ao contrário do que insinua uma primeira impressão, o Direito Real de Laje não é um direito real sobre coisa alheia. É, sim, um novo Direito Real sobre coisa própria, ao lado do direito real de propriedade. É verdade que uma visão topográfica do Código Civil não dá clareza acerca da natureza jurídica do Direito Real de Laje, pois este ocupa um título do Livro de Direito das Coisas (Título XI) em pé de igualdade com os títulos do Direito Real de Propriedade e dos direitos reais sobre coisa alheia. A visão panorâmica da organização do Código Civil deixa em aberto a efetiva natureza jurídica da figura.

A natureza jurídica é esclarecida pela leitura dos arts. 1.510-A e seguintes do Código Civil e do novo § 9º que foi acrescido ao art. 176 da Lei de Registros Públicos (conforme art. 56 da nova Lei). Na forma como foi redigido o Código Civil nesse ponto, o Direito Real de Laje é uma espécie de Direito Real de Propriedade sobre um espaço tridimensional que se expande a partir da laje de uma construção-base em direção ascendente ou a partir do solo dessa construção em direção subterrânea. Esses espaço tridimensional formará um poliedro, geralmente um paralelepípedo ou um cubo. A figura geométrica dependerá da formatação da sua base de partida e também dos limites impostos no ato de instituição desse direito real e das regras urbanísticas. Teoricamente, esse espaço poderá corresponder a um poliedro em forma de pirâmide ou de cone, se isso for imposto no ato de instituição ou em regras urbanísticas. Esse espaço pode ser suspenso no ar quando o direito real for instituído sobre a laje do prédio existente no terreno ou pode ser subterrâneo quando o direito real for instituído no subsolo. O direito real de laje pode ser aéreo ou subterrâneo, portanto.

Enfim, o Direito de Laje é um Direito Real de Propriedade e faculta ao seu titular todos os poderes inerentes à propriedade (usar, gozar e dispor), conforme art. 1.510-A, § 3º, do Código Civil. Ele terá, inclusive, uma matrícula própria no Registro de Imóveis, pois, conforme o princípio registral da unitariedade ou unicidade matricial, a cada imóvel deve corresponder apenas uma matrícula. Se o Direito Real de Laje fosse um direito real sobre coisa alheia, ele – por esse princípio registral – não poderia gerar uma matrícula própria.

Em verdade, o Direito de Laje representa um alargamento da noção tradicional de Direito Real de Propriedade, em semelhança ao elastecimento desse conceito que já foi feito, em tempos passados, pela figura de unidade privativa em condomínio edilício (ex.: os vulgos “apartamentos” que compõem edifícios). As unidades privativas de condomínio edilício também representam direitos reais de propriedade e possuem matrícula própria, de maneira que guardam semelhanças com o Direito Real de Laje. Apesar dessas similitudes, o Direito Real de Laje não é uma espécie de condomínio edilício, pois, além de não atribuir ao titular da laje qualquer fração ideal sobre o terreno (art. 1.510-A, § 4º, CC), possui regramento próprio.

O fato de o Direito Real de Laje aéreo (e não o subterrâneo, por conta da sua independência física, reconhecida pelo art. 1.510-E, I, CC) ser extinto no caso de ruína da construção-base sem reedificação em 5 anos não corrompe a sua natureza de um verdadeiro direito real de propriedade, pois essa dependência arquitetônica não é decisiva para a conceituação jurídica, que é fruto de uma ficção legal.

Como se vê, a nova figura desafia a doutrina tradicional de Direito das Coisas, pois o tratamento legal feito pelo Código Civil optou por considerar o Direito Real de Laje como uma espécie de direito real sobre coisa própria, e não como direito real sobre coisa alheia.

Ainda temos muito a falar sobre esse novo Direito Real, o que será feito na próxima coluna. Até mais.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).

[1] Essa expressão inglesa se reporta ao homem comum. Clapham é um bairro muito popular de Londres, de modo que a referência a um homem em um ônibus nesse local reporta-se a uma situação comum (COASE, Ronald Herry. A firma, o mercado e o direito. In: COASE, Ronald Herry. A firma, o mercado e o direito (coleção Paulo Bonavides). Tradução Heloisa Gonçalves Barbosa; revisão técnica, Alexandre Veronese, Lucia Helena Salgado e Antonio José Maristrello Porto; revisão final Otavio Luiz Rodrigues Junior; estudo introdutório Antonio Carlos Ferreira e Patrícia Cândido Alves Ferreira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016-A, p. 4).

Carlos Eduardo Elias de Oliveira é advogado e professor de Direito Civil do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) em Brasília. Mestre em Direito, Estado e Constituição na UnB, bacharel em Direito na UnB e consultor legislativo do Senado Federal na área de Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário. É ex-advogado da União e ex-assessor de ministro do STJ.

Fonte: iRegistradores