Background

Notas sobre Notas: Tema VIII: Do princípio notarial da legalidade -Da objeção da consciência - Oitava Parte - Desembargador Ricardo Henry Marques Dip

138. Terminamos de reiterar que a objeção da consciência (consciência moral, nota bene) é um juízo conclusivo que infere, de maneira cognitiva, em consonância com uma dada norma hetenônoma, norma objetiva, e não conforme com a só vontade do agente (norma subjetiva da ação).

Em outros termos, a objeção da consciência consiste em dar preferência à norma objetiva de agir, cuja verdade o agente reconhece.

A consciência moral é intelectiva. Vale dizer, que ela se destina ao conhecimento da verdade. Nada a ter, pois, com os devaneios sentimentalistas e não cognitivos, por exemplo os do Emile de Rousseau ?“Les actes de la conscience ne sont pas des jugements, mais des sentiments”?, que dão força ao egotismo hiperindividualista a que nossos tempos têm sido tão receptivos.

139. Como se forma, porém, este juízo conclusivo da razão prática, ou seja, a consciência moral?

Observe-se, a propósito, que esse juízo é próprio de modelo do discurso ordinariamente adotado para todo o campo do discurso prático, desde os mais comezinhos, até incluir os “profissionais” ?p.ex., o jurídico-prudencial e, com ele, o discurso notarial.

139. Toda argumentação, seja teórica, seja prática, tem, em algo, de fundar-se numa premissa universal indemonstrável, porque, não fossem assim, teríamos de regredir ao infinito para apoiar nossos discursos, e, pois, nunca chegaríamos a admitir argumentações formalmente válidas.

Essa premissa que buscamos pode ser objeto da inteligência dos primeiros princípios da razão especulativa ou teórica ?intellectus principiorum, assim, v.g., os princípios da identidade e da não contradição?, ou objeto dos primeiros princípios da razão prática ?os princípios da sindérese; basicamente, bonum faciendum et prosequendum, malum vitandum: o bem deve ser agido e imitado; o mal, evitado.

Pois bem, exige-se, para a estruturação inaugural do discurso prático, averbado o fato de que a razão prática é extensiva da teórica, partir deste primeiro princípio sinderético: “agir o bem, evadir o mal”.

Será esse princípio a premissa maior do silogismo prático.

Lembremo-nos aqui, todavia, da impossibilidade da indiferença moral relativamente a atos humanos concretos. O ato da consciência moral infere, necessariamente, de um pressuposto sinderético ao modo de norma primeira (ou premissa maior do discurso prático). Em hipótese alguma, a consciência moral ?enquanto conclusão de um silogismo que tem começo em uma norma sinderética? pode dissociar-se da heteronomia ou transcendência normativa, cujo conhecimento, pois e sempre, é indispensável ao juízo conclusivo da consciência e é dele também condutor.

140. Simplifiquemos um pouco esta exposição. Pensemos em exemplos. Suponhamos que nos tenta um dia a prática de um furto, uma subtração qualquer de coisa alheia.

De posse desta suposição, voltemos, pois, agora à nossa primeira premissa maior: “É preciso agir o bem e evitar o mal”. Já vimos quem, por ser este um princípio primeiro da razão prática, é ele uma norma intuitiva e indemonstrável. Mas é ainda possível agregar premissas maiores a este nosso primeiro antecedente (um exemplo desta agregação está no o célebre “silogismo do intemperante” que se acha na Ética a Nicômaco, de Aristóteles ?Bkk. 1147a).

E aqui, portanto, trataremos de adicionar duas premissas maiores: “Furtar é proibido pelo Decálogo” (premissa maior de razão superior); “Furtar é proibido pelo Código penal brasileiro” (premissa maior de razão inferior).

E seguimos com a premissa menor (relativa à conduta objeto de nossa tentação suposta ?apenas suposta, nota bene!): “Isto que se sugere para que eu aja, em concreto, é um furto, uma subtração de coisa alheia”.

Logo ?eis a conclusão, ou consciência moral?, “não devo praticar este furto”.

141. Bem se vê, portanto, que a consciência moral é um ato deliberativo que, radicado na razão prática, aplica uma ciência determinada a um caso (ou seja, há uma relação entre um dado conhecimento e uma coisa ?cum alio scientia), voltando-se, decisivamente, a uma conduta concreta.

Assim, a consciência moral não equivale ao hábito cognoscitivo dos primeiros princípios ?a sindérese?, porque a consciência conclui sobre a aplicação também desses primeiros princípios a uma ação singular. O ato do hábito da sindérese é a inteligência dos primeiros princípios da razão prática, não uma conclusão aplicativa. A consciência moral é este ato judicativo de aplicação dos princípios às condutas concretas e singulares.

Deste modo, o juízo da consciência supõe a apreensão intuitiva dos princípios da sindérese e o conhecimento da razão superior (relativa às coisas eternas) e/ou da razão inferior (referente às coisas temporais), bem como das circunstâncias particulares de cada caso para aplicar-se a ação ou vedação da conduta.

142. Estamos diante do que ocorre em nossos cotidianos discursos da razão prática. (Devo sair do restaurante sem pagar a conta ou, antes, tenho de agir de modo justo? Devo passear ou estudar hoje? Devo dar testemunho da verdade deste caso ou é-me admitido mentir?). Esta é a estrutura ordinária do silogismo prático que diz respeito a cada um de nós no ordinário de nossa existência .

Mas não custa especializar a matéria para o âmbito notarial.

Suponhamos que, em um dado tempo, apareçam num tabelionato brasileiro, cinco pessoas casadas ?sem separação judicial ou de fato?, querendo celebrar um pacto qualquer relativo a uma união estável poligâmica.

De novo: temos de partir de nossa premissa maior, haurida diretamente da sindérese, com caráter intuitivo, pois: “Agir o bem, evitar o mal”.

Premissas menores (contentemo-nos com estas, de razão inferior): “Pessoas casadas (não separadas) não podem instituir união estável (arts. 1.723, § 1º, e 1.521 do Código civil brasileiro)”; “A união estável, por força da Constituição federal do Brasil (§ 3º do art. 226), tende, por definição, a converter-se em casamento, que é instituição monogâmica no direito brasileiro (art. 1.514 do Código civil)”.

Ergo, juízo da consciência notarial: “Não é de admitir a confecção deste pretendido pacto de união estável”.

143. A consciência moral objetante ?é dizer, a objeção da consciência? não se forma de modo diverso do que acima se indicou, salvo em que objeta uma falsa norma (lex corrupta, porque lex iniusta, vera lex non est), exatamente para observar uma verdadeira e justa norma superior.

Vejamos ainda um exemplo, antes de passar (o que se fará no próximo artigo desta série Notas sobre Notas) a uma referência mais teórica ao tema específico da objeção da consciência.

Suponhamos um país: a Insula Agathaurica.

Na ausência temporária de seu célebre rei, Dom Sancho I-bis, o Único, o Parlamento aprova uma “lei” permitindo que nubentes pactuem a prática de aborto. (Fundou-se isto em que algumas pessoas não saberiam realizar seu “direito à felicidade” sem assassinar algumas crianças).

Pois muito bem. Dulcamara, o notário da Insula Agathaurica, recebe em seu ofício os nubentes Herodes e Herodias, que desejam pactuar o aborto de eventuais seus filhos.

Dulcamara objetará:

Premissa maior: “Agir o bem, evitar o mal”.

Premissa maior (agregação): “Não se deve matar o inocente” (fundamento de razão superior).

Premissa maior (nova agregação): “Conclui proximamente do primeiro princípio sinderético a vedação de dar morte ao inocente” (fundamento de razão inferior).

Premissa maior ?mas contraditória das maiores anteriores: “A (aparente) lei da Insula Agathaurica é permissiva do pacto de aborto entre os nubentes”.

(Passa-se à deliberação, e Dulcamara conclui que a contradição entre essas premissas desautoriza a “norma” inferior, que reconhece por falsa).

Logo, rematará ele com o consequente: objeta a observância da “lei” agathaurica, porque ela viola uma lei superior.

144. Vejamos isto mesmo noutra formulação mais detida, supondo agora que a hipótese tivesse lugar no Brasil:

“É preciso agir o bem e evitar o mal” (premissa maior, princípio da sindérese).

“O direto homicídio de pessoa inocente de culpa própria é um mal, tanto que o proíbe o Decálogo” (premissa maior, norma de razão superior).

“O homicídio, na vida intrauterina, é injusto, porque afeta pessoa inocente de culpa própria” (premissa maior, desdobramento da norma de razão superior),

“Dispõe o Pacto de São José da Costa Rica que pessoa é todo ser humano (nº 2, art. 1º)” (premissa maior, norma de razão inferior).

“Dispõe também o Pacto de São José da Costa Rica que toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida, desde, em geral, o momento da concepção (nº 1, art. 2º)” (premissa maior, ainda de razão inferior).

“O decreto xis autoriza a prática de aborto direto” (premissa maior, contrastada com as razões superior e inferior: corruptio legis).

“A pessoa que se espera gestada por Herodes e Herodias é um ser humano inocente de culpa própria” (premissa menor, conhecimento de singular).

Ergo, é injusto pactuar o aborto dessa pessoa” (conclusão do raciocínio prático, juízo de consciência moral que, assim, objeta a lex corrupta, para exatamente observar as normas superiores).

Prosseguiremos.

Fonte: CNB-CF