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Notas sobre Notas - Tema VIII: Do princípio notarial da legalidade - Sexta Parte - Desembargador Ricardo Henry Marques Dip

126. Tem-se dito aqui, reiteradamente, ser o notário um profissional liberal ?ou seja, alguém que exerce uma arte própria de homens livres. A autonomia, contudo, ou independência desse exercício profissional não inibe o concurso de uma tarefa documentadora que, além de ser pública (no sentido de que interessa à sociedade política), recebe do Estado, que é a parte superior dessa sociedade, um atributo de potestas ?o que corresponde à dação de fé pública.

Função privada ?ou melhor, comunal?, sob dado aspecto, função pública (rectius: administrativa), sob outro ângulo, a função notarial participa de ambas essas características jurídicas ?comunitária e estatal?, porque documenta com fides publica (e este poder lhe advém da soberania política), mas pratica seu ofício como “forma de expresión exclusivamente personal”, e cuja autonomia “emana directamente de la ley” (Bautista Pondé). Esta singularidade do ofício notarial, que é a de ser, a um só tempo, sob distintos aspectos, função da comunidade e receptor de uma potestas pública, põe à mostra um jurista particular que, dotado de algum poder público, tem vinculação direta com a lei, não com a administração, o que parece bem explicar a redundante, mas feliz sentença de Martínez Segovia, de que “la función notarial ni es pública ni es privada, sino que es función notarial”.

127. O notário exerce funções, primeiro, no interesse da comunidade ?funções que atuam na esfera do interesse privado, mais próprias, pois, da soberania social (na magnífica expressão de Vázquez de Mella). E sobre elas agrega as tarefas de autenticação e de controle da legalidade, a que concorre o atributo da fé pública, exercitando o notário, neste capítulo, funções mais próprias da soberania política.

Por mais caiba admitir que a natureza jurídica da relação entre o Estado e o notário seja contratual ?ou, com o entendimento de Villalba Welsh, um relacionamento de caráter especificamente notarial (a isto se acomoda o conceito de “delegação” inscrito no caput do art. 236 da Constituição federal brasileira de 1988), as tarefas tabelioas agregadas pela dação da fides publica não permitem supor que o notário, suplantando a autonomia segundo a lei, possa exercer suas funções de maneira desvinculada de limites normativos. Sua autonomia, repitamos a já anunciada lição de Bautista Pondé, “emana directamente de la ley”, e não da mera vontade do notário.

128. Profissional do direito, secundum quid ?nisto incumbido de atuar no âmbito das relações de direito privado?, e agente público, quoque secundum quid, a quem nisto compete uma tarefa legitimadora, o notário, Magistrado da segurança jurídica, não frui de uma liberdade profissional para afastar-se da finalidade assecuratória que se atribui definidamente a seu ofício.

Quando se admitisse que, a pretexto de ser autônomo ou sob a escusa de ser independente, pudera o notário desfrutar de uma liberdade sem vinculação à lei, gozar de despotismo interpretativo e da arbitrariedade apartada da tradição multissecular do direito, já não seria ele um possível Magistrado da segurança jurídica, nem solidez do direito seria de esperar que se haurisse de um gênero de coisas menos nutrida de verdadeira liberdade que abeberada de licenciosidade.

Estaríamos aqui, com efeito, no domínio da liberdade notarial negativa, que intenta, em última análise, contra a própria instituição do Notariado latino.

129. O mote fundamental da liberdade negativa, em todo seu gênero, foi já adequadamente construído por Aleister Crowley: “Do what thou wilt!” ?faz o que tu queres. Trata-se de uma “liberdade” pela qual o actante não reconhece a dependência de lei alguma que não seja a lei de sua própria vontade: “nulla viene dalla natura, tutto si fonda sull’autodeterminazione dell’uomo, e l’unico peccato consiste, secondo questa logica, nell’impedire all’individuo di seguire i propri istinti e le proprie tendenze” (Roberto de Mattei) ?nada vem da natureza, tudo funda-se na autodeterminação do homem, e o único pecado consiste, segundo esta lógica, em impedir o indivíduo de os próprios instintos e tendências. Nesse mesmo sentido, uma sentença da Suprema Corte norte-americana, no caso Planned Parenthood of Southestern vs. Casey, sustenta que “at the heart of liberty is the right to define one's own concept of existence, of meaning, of the universe, and of the mystery of human life” ?no coração da liberdade está o direito a definir o conceito da própria existência, o sentido do universo e o mistério da vida humana.

Tem-se logo à vista que, se a vontade for inteiramente livre para escolher o que lhe calhar, formando, assim, seu próprio espaço indeterminado de criação de valores (cf. Contreras e Poole), já as ideias de bem e de mal, de justo e de injusto, de lícito e ilícito, serão noções irrelevantes, e sequer possível seria limite algum a essa liberdade, porque sua limitação padeceria, ipso facto, da pejoração de ser tirânica. Esta é uma aporia do pensamento político da hora presente (vid? Miguel Ayuso).

130. Especificamente, a liberdade notarial negativa consiste em o notário atribuir caráter de objetivação reguladora exclusiva à própria vontade, de sorte que sua consciência seja a única fonte de normatividade. Cuida-se, pois, de uma “subjetivização objetivante”, em que as ações se submetem, com exclusão de fontes normativas extrínsecas, apenas às representações, impulsos e tendências do notário (é nisto avistável um selo kantiano), qual fora o tabelião das notas o portador de um ofício privado, sem relação alguma com a vida da comunidade e sem comprometimento com a segurança jurídica a que se devota (ou deve dedicar-se) sua profissão.

Com a liberdade notarial negativa está-se diante de um hipersubjetivismo hermenêutico ?o que Élissalde e, na sequência, Michel Villey, designaram “hermenéutisme”: o primado de uma interpretação livre e sem fim, em que pontificam (i) a hipertrofia da intentio lectoris (ou, de maneira mais específica, da intentio notarii) e (ii) o detrimento das intentiones legis (das intenções da lei), acarretando o sacrifício da segurança jurídica.

[Em rigor, a noção mesma de segurança jurídica deixa aí de ter sentido objetivo, uma vez que sua própria criação frui do voluntarismo não cognoscitivo que plasma a liberdade negativa].

Exemplos frequentes desta liberdade notarial negativa podem recrutar-se, em nossos dias, no campo do direito de família, em que mais de perto parecem concentrar-se forças avessas à tradição sapiencial do direito. Tem-se chegado a novidades interpretativas que, abdicando dos conceitos plurisseculares, p.ex. de “casamento” e de “família”, levam à privatização dessas instituições que, assim desconstruídas, passam a impor-se, sob o modo de “novas categorias”, para a convivência comunitária.

A dinâmica essencial da tradição ?nisto consiste efetivamente o progresso, que é o preparo de melhores tradições? exige refletir sobre os supostos adequados a esse progresso, às mudanças que não sejam produto da simples ânsia revolucionária de novidades. De fato, contra a anxietas novitatum notariorum sempre é possível oferecer o remédio dos conceitos, das proposições, das experiências e dos costumes que, tendo suplantado com êxito a prova da convivência histórica, “parecem bem a todos, ou à maioria, ou aos sábios, e, entre estes últimos, a todos, ou à maioria, ou aos mais conhecidos e reputados” (Aristóteles).

É verdade, não se pode negar que a liberdade notarial negativa seja, de fato, criadora: cria os meios que, ao fim, destruirão o próprio Notariado, porque uma liberdade ilimitada é um antípoda da segurança jurídica.

Fonte: CNB-CF