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Notas sobre Notas - Tema VIII: Do princípio notarial da legalidade - Quinta Parte - Desembargador Ricardo Henry Marques Dip

116. Temos, nesta série de artigos, insistido na afirmação da independência jurídica do notário, in suo ordine, vale dizer, no âmbito da qualificação jurídico-notarial, sem prejuízo de um possível controle posterior, seja proveniente da esfera administrativa (que, no caso brasileiro atual, é de titularidade do Poder judiciário), seja derivado de atuação jurisdicional.

Cumpre distinguir: uma coisa é a qualificação jurídica; outra, o controle dessa qualificação jurídica (o que já será uma re-qualificação).

117. Esta independência do ofício notarial, que é plena (repita-se: em sua ordem) no domínio da qualificação jurídica, não se reveste de mesma plenitude quanto ao território das funções técnicas do notário (p.ex., quanto às cautelas que deva adotar para identificar pessoas, expedir certidões, dar buscas etc.), quando ?e esta é a situação do ordenamento jurídico no Brasil? haja previsão legal de alguma interferência do poder de controle ?potestas regiminis (cf. inc. XIV do art. 30 da Lei n. 8.935, de 18-11-1994). Autoriza-se, neste passo, a edição de normas “técnicas”, discricionárias, mas sempre suposto que não sejam contra legem (isto algumas vezes não se tem levado em conta).

118. Também no plano do gerenciamento administrativo e financeiro do ofício notarial ?que a lei brasileira prevê ser “responsabilidade exclusiva” do tabelião (art. 21 da mesma Lei n. 8.935)?, é de admitir alguma intervenção desse poder de controle, para atender à cláusula normativa de “melhor qualidade na prestação dos serviços”, mas aqui não se pode autorizar uma discricionariedade substituinte, sob pena de não se justificar a responsabilização exclusiva do notário pela gestão do ofício. Cabe demarcar essa intervenção do poder de controle dentro de estritos limites legais e sempre estimado o fim de buscar melhor qualidade do serviço.

119. A independência do notário no campo da qualificação jurídica relaciona-se de modo tensivo com sua submissão à legalidade, submetimento este que é da tradição do Notariado: já em 725, no Reino longobardo, exigira-se dos notários o “saber das leis” (scire leges), assim o refere Jose Bono, e, tal o mencionamos em artigo anterior desta série, na Hispania da Baixa Idade Média, os escrivanos não só juravam exercitar seu ofício com fidelidade (fideliter), mas também “derechamente” (Fuero Real de Dom Alfonso X, de León e Castilla), isto sob pena de seus atos não valerem e infligirem-se sanções pessoais.

Admitir a liberdade na qualificação notarial não significa imunizar da observância da legalidade, e Rodrígues Adrados bem observou, a propósito, que “la autenticidad o certeza legal que la fe pública imprime al documento notarial sería, en efecto, grandemente peligrosa para la seguridad jurídica si el notario pudiera prestarla a su libre arbítrio”. Continua o Autor:

“(…) sería inmensamente dañosa para el interés público y para la paz social si pudieran otorgarse en instrumento público cualesquiera actos y negocios, también los ilícitos e incluso los delictivos.”

E remata, agudamente:

A nadie se le ocurre que el Ordenamiento haya instituido en Notariado para dotar de la eficacia especial conocida por fe pública a actos que el mismo Ordenamiento repudia, poniendo a los ciudadanos en la necesidad de impugnar judicialmente unos negocios que de esta manera habrían adquirido una presunción de validez, una apariencia de normalidad; la misión antilitigiosa del notario se habría convertido en un incremento de la litigiosidad y en muchos casos la ilegalidad saldría triunfante.”

120. É árdua, reconhece-se, a tarefa de assinar os lindes que permitam salvaguardar, de um lado, a independência qualificadora do notário, e, de outro lado, seu submetimento à legalidade, mas é possível acercar-se um tanto da matéria, sem embora ter a intenção de, no apertado espaço destes pequenos artigos, solver questão de tamanha profundidade e complexidade.

121. Consiste a qualificação jurídica em um processo da razão prática envolvendo, no plano jurídico, a compreensão de fatos e normas, sua interpretação e, no mais das vezes, uma decisão acerca de determinada conduta a sugerir, permitir, autorizar, proibir, agir, mandar que se aja ou faça, etc. Bem se avista que os juristas todos proferem qualificações jurídicas.

Trata-se de um processo fundamentalmente cognitivo ?ou de desfecho cognitivo; de modo mais próprio: prudencial. Poderia falar-se em discurso da razão prática ou discurso prudencial, mas parece melhor falar-se em “processo”, para que se abranja com mais comodidade o que é próprio da invenção das premissas, é dizer, da descoberta de fatos e normas que devam considerar-se no silogismo prático.

A afirmação de que se trata de um “processo da razão prática” afasta, pronta e claramente, as teses voluntaristas, que negam o caráter cognitivo da qualificação jurídica e situam-na num simples exercício da vontade (cf., a este respeito, o estudo de Vautrot-Schwarz). Ainda que não se recuse, na qualificação jurídica, algum papel da vontade em dirigir ao fim a razão prática, calha que o ato mesmo da vontade sucede ao da razão prática, porque é esta quem descobre o fim (ou bem) a que inclinar a vontade (é, p.ex., pelo hábito ou pela disposição da prudência que se descobre o suum da justiça, pois a vontade livre é somente um apetite de escolher coisas opostas entre si, sem que lhe caiba a cognição e a valoração moral dessas coisas).

122. A iuris prudentia romana, conforme conhecida sentença de Ulpiano (que a nutriu de ideias já ensinadas por Platão, Aristóteles e Plutarco), é a divinarum atque humanarum rerum notitia, iusti atque iniusti scientia ?a ciência do justo e do injusto, tendo como pressuposto certas coisas divinas e humanas. A isso pode ajuntar-se uma asserção de Celso, para quem ius ars boni et æqui est ?o direito é a arte do bom e do justo (ou equânime). Ora, a inventio ou descoberta do direito (do bonus et aequus), nas divinarum atque humanarum rerum (quer dizer, a invenção do suum que se desfia na consagrada definição da justiça: suum cuique tribuere), é algo precedente ao ato de justiça; ou seja, não há justiça sem a prévia invenção ou descoberta do direito, sem a antecedente assinação pontual da “suidade” que constitui o objeto da justiça. Vem a propósito esta valiosa lição do emérito pensador chileno Juan Antonio Widow: “No basta querer ser justo, o valiente, o temperado, para serlo, sino que también hay que saber serlo. En otras palabras, no existen virtudes ciegas”.

123. Na qualificação, compreendem-se tanto fatos, quanto normas. O de que se trata é de desvelar a realidade daqueles, incluindo suas circunstâncias, e entender o que se pretende com a norma.

A dialética do direito (aqui se toma o termo “dialética” na acepção aristotélica: argumentação cujo consequente é apenas provável) resulta de um confronto entre factum e exigências normativas, da tensividade do justo e do injusto, do legal e do ilegal. Não é que recuse, no âmbito jurídico, a possibilidade de certezas absolutas, e, por exemplo, nós as temos quando elas derivam da intuição dos primeiros princípios da razão prática. Tampouco se trata de negar o caráter universal das conclusões próximas desses primeiros princípios. Nem se está aqui a refutar o poder conclusivo das evidências quoad se, ou ainda contestar que a certeza possa provir de um reiterado conhecimento experiencial que se conaturalize com o sujeito cognoscente. Mas é certo que as premissas normativas (todas as fontes do direito positivo) e uma ampla região de fatos exige uma detida análise da realidade e convoca a via da indução, impondo um diálogo (dialética é também dialogar) entre teses e antíteses, fatos e princípios, conclusões gerais e casos, evidências e obscuridades.

124. Aristóteles versou, na Tópica, sobre a invenção de um método que ensina a argumentar sobre as questões propostas, partindo sempre de premissas prováveis (endoxa), e afirmou que “prováveis são as proposições que parecem bem a todos, ou à maioria, ou aos sábios, e, entre estes últimos, a todos, ou à maioria, ou aos mais conhecidos e reputados”. Esta arte de busca de premissas ?a ars inveniendi? há de valer-se de um catálogo de tópoi (por assim dizer, de argumentos adequados frequentemente para discutir dadas questões), porque a validade do discurso dialético não procede só de sua estrutura lógico-formal, mas, especificamente, da averiguação do modo como são obtidos os endoxa ?equivale a dizer, as proposições prováveis. Ora bem, a fonte principal de obtenção válida das premissas do silogismo dialético constitui-se dos tópicos que contêm uma crença, uma opinião ou um saber objetivamente científico já constituído (cf. o excelente livro de Félix Lamas sobre a experiência jurídica).

Assim, a invenção ou descoberta dos tópoi é, em muito, devedora da tradição do pensamento: ou seja, são prováveis as proposições que, tendo suportado a prova da experiência histórica, repete-se aqui o que disse Aristóteles, “parecem bem a todos, ou à maioria, ou aos sábios, e, entre estes últimos, a todos, ou à maioria, ou aos mais conhecidos e reputados”.

125. Eis aqui uma importante clivagem para distinguir, de uma parte, a mera arbitrariedade que há no afã de novidades, e, de outra parte, a verdadeira e louvável independência na qualificação notarial.

Uma angústia de novidades ?anxietas novitatum ?isto que já se designou de “obsessão pelo tempo que passa”? não constitui um pilar da liberdade, mas uma revolução, uma desordenação que conspira contra a liberdade. A pura novidade ?a que não é justificada com rigor intelectual? não é critério de verificação da realidade das coisas, não é critério da verdade, senão que, ao revés, configura a preterição da experiência e do costume em favor da soberba de um “salto no escuro”: de fato, por que, sem forte razão bastante, “ficar com o capricho da própria opinião”, em vez de solidar na continuidade do que já provadamente pareceu “bem a todos, ou à maioria, ou aos sábios, e, entre estes últimos, a todos, ou à maioria, ou aos mais conhecidos e reputados”?

Prosseguiremos neste agudíssimo tema, versando, em nosso próximo artigo, sobre a chamada “liberdade notarial negativa”.

Fonte: CNB-CF