Background

Notas sobre Notas - Tema VIII: Do princípio notarial da legalidade - Quarta Parte - Desembargador Ricardo Henry Marques Dip

Tema VIII: Do princípio notarial da legalidade (Quarta Parte)

Des. Ricardo Dip

111. Passemos a discutir, com a costumada brevidade que se tem aqui adotado, os temas da legalidade dos efeitos notariais, da vinculação do princípio da legalidade notarial com a segurança jurídica e da concordância da independência do notário com a compulsória observância dessa legalidade.

112. Conforme já ficou dito, com apoio nas lições de Bono (a quem tanto seguimos neste passo), a credibilidade histórica do notário –ou, por outro aspecto, a consolidada fidúcia comunitária em sua atuação? deriva da fidelidade e da aptidão perseverantes de seu ofício (officium tabellionatus): fidelidade objetiva e fidelidade subjetiva (esta, frequentemente acolitada pelo juramento de officio notarii fideliter exercendo).

Assim, a autorização tabelioa, que é a asseveração de um documento notarial dotar-se de legalidade e autenticidade, pôde repousar historicamente na só atuação legitimadora do próprio notário –ei solo creditur?, dispensando, de conseguinte, a confirmação póstera do documento por meio de testemunhas, exatamente em homenagem a essa dúplice fidelidade, objetiva e subjetiva.

Mas a fé do que o notário faz, o princípio do fidem facere –atributo notarial de conferir-se plena fides ao documento em cuja formalização intervenha o notário? pressupõe forma regrada (publica forma), de modo que a fé da escritura (fides scripturæ) assenta tanto num elemento objetivo (a legalidade do ofício público: o notário exerce, semper secundum leges, um ofício específico próprio de uma publica persona e voltado à utilitas publica), quanto num elemento subjetivo (a idoneidade técnica, prudencial e moral do tabellio publicus).

113. Dessa maneira, o documento notarial –o documento que atrai fidem publicam? é aquele quod a publica persona conficitur, ou seja, o que emana de pessoa pública, enquanto no desempenho de um ofício dirigido ad publicam utilitatem –no interesse público, pois? e na forma regular (“regular” é aquilo que é segundo regras: secundum regulas). Por isso, o documento notarial que produz eficácia fidei publicæ é o documento feito na forma legal (per manum tabellionis in publica forma factum).

Os efeitos do documento notarial, portanto, demandam a observância da legalidade, de tal sorte que a autenticidade documentária (robur firmatus) só diz respeito, de modo estrito, ao documento (scriptum) autorizado legalmente –ou seja, o instrumentum in publica forma redactum.

Quando não se observe a lei, ou o documento é nulo, ou, quando logre escapar da nulidade, apenas se considera instrumentum privatum, sem a plenitude da fé pública, ainda que provenha de um notário que, nesta hipótese, atua como pessoa privada sem o atributo do ofício notarial (persona privata, qui non habet officium notarii).

114. A consolidação do notário ao largo do tempo é resultante de uma história contínua de aptidão e fidelidade no ofício. A ideia de continuidade –que é a de tradição, na medida em que supõe sempre a entrega (traditio) de um patrimônio? ancora na conexão vital entre a comunidade e o “tabelião de aldeia”, um conselheiro, mediador, magistrado da paz social, e confirma, quanto ao objeto das atuações notariais, o relacionamento sólido entre a res certa (segurança jurídica) e a res iusta (a coisa justa).

É dizer que, da tradição de casos e soluções pontuais, obtêm-se, per experientiam et consuetudinem, as respostas que, sendo seguras, também se desvelam justas ut in pluribus (ou seja, com frequência).

Saliente-se que o notário atua para determinar o direito, vale dizer, para determinar o justo de dado caso não litigioso que lhe é propiciado, e essa res iusta é um produto encontrado (rectius: inventado, descoberto) pela prudência jurídico-notarial. Esta, no entanto, supõe sempre a experiência: é nutrida da memória do passado e da inteligência do presente, para poder ser prognose do futuro. De modo que, por experiência e costume, o notário, ao largo do tempo, foi desvelando o justo e o seguro, ou, em outras palavras, a segurança justa (ou segurança jurídica), por assim dizer: um justo “estatístico”, um justo conforme o que comumente ocorre (plerumque accidit), que, todavia, não exclui casos excepcionais.

Por isso, Vallet sustentava, com razão, que a virtude intelectual mais própria do notário é a sínese (hábito anexo da prudência) ?que é a virtude do senso comum, da sensatez?, e entendia que ao juiz cabe a anexa da gnome (a virtude de decidir a exceção). Como quer que seja, a ideia de sensatez notarial é a da recolha de uma contínua experiência prático-prática que redunda em bons frutos.

Pode, pois, dizer-se que a res certa é a própria coisa justa na maioria dos casos. Seu déficit é questão jurisdicional.

115. A ninguém é dado evadir dos limites da legalidade, e o notário, por mais se afirme sua independência qualificadora, tem sua atuação demarcada por normas objetivas e, não menos, por uma norma subjetiva (a consciência moral, de que falaremos em próximo artigo desta série).

A liberdade na qualificação notarial não se confunde com o mero arbítrio de uma consciência que se estadeie de modo absoluto, fruindo, implícita ou intencionalmente, de uma ilegítima objetivação normativa.

Se, por um lado, o respeito à independência jurídica iniba interferências ablatórias, no todo ou em parte, da qualificação notarial, tem de considerar-se, por outro lado, que o submetimento à legalidade é um dos princípios da atuação tabelioa. Este binômio tensivo exige discreto acercamento, para evitar que, a pretexto de controle superior da legalidade, haja intervenções supressivas da independência do notário, mas, por igual, para também evitar que, sob a escusa dessa mesma independência, um notário sinta-se à margem da legalidade, ou acima dela, desleixando de seu dever de atuar em forma regrada (in public? forma) e com a experienciada e costumeira aptidão de seu ofício: os notários hão de ser sempre “eruditos das leis e da boa opinião” ?notarii legibus eruditi et bonæ opinionis.

Por lástima, não faltam episódios em que, comumente por vanglória (esta é um dos pecados capitais dos homens), haja alguns poucos notários que se afadigam ou mesmo inimizam da sínese, inclinando-se à comichão das novidades e à pertinácia nos erros, e que, em ruptura com a comunidade, atraindo luzes muito brilhantes, mas fugidias, e vozes de todo toantes, mas de ruídos desconcertados, com isto põem em risco, erodem ou mesmo destroçam a confiança na sensatez habitual de um ofício que se consagrou função comunitária antes pela histórica e fidelíssima observância dos usos e costumes do que pelo afã revolucionário do insólito.

Prosseguiremos.

Fonte: CNB-CF