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Notas sobre Notas - Tema VIII: Do princípio notarial da legalidade - Segunda Parte - Desembargador Ricardo Henry Marques Dip

Tema VIII: Do princípio notarial da legalidade (Segunda Parte)

Des. Ricardo Dip


99. Ainda que, tal o veremos, com contornos próprios que atendam às características dos ajustes entre particulares, a atividade notarial está moldada pelo princípio da legalidade, é dizer, a um dado submetimento à lei, e, bem por isto, fácil é considerar que uma crise no molde implica uma crise no moldado, de maneira que distúrbios aflitivos do princípio da legalidade provocam algumas turbações no ofício notarial.

100. É verdade que a ideia de crise parece mesmo conatural ao mundo contemporâneo.

Ainda que sua noção possa, uma e outra vez, transitar pelo neutro significado moral da simples mudança ?o que inclui a possibilidade de transformar-se para melhor (são as chamadas “crises de crescimento”; assim, p.ex., Andrei Gabriel Ple?u fala de uma “crise de alegria” no Leste europeu)?, o fato é que, na linguagem comum, a crise se traduz mais frequentemente com a ideia de desordenação, deficiência, padecimento, até mesmo chegar ao plexo de uma situação agônica (estar em crise é, ordinariamente, estar no ponto crítico de uma anomalia: pense-se “no doente em estado crítico”).

Julio Alvear Téllez, por exemplo, este muito autorizado pensador chileno, versou recentemente as crises da soberania popular (por não ter correlato na realidade), da separação de poderes (por sua falta de funcionalidade), da representação popular (por ser mera ideologia) e dos direitos humanos (por sua imprevisibilidade conceitual), e simples consulta a livros ao alcance das mãos permite recolher os temas da “crise de racionalidade” (Contreras e Poole), “crise financeira” (Silvano Borruso), “crise da nação (Murillo Ferrol), “crise da família” (Lucius Cervantes), “crise da modernidade” (Thomas Molnar), “crise da democracia” (François Gaucher), “crise do Estado liberal” (António Manuel Hespanha), “crise da antropologia” (Domingos Basso), “crise do homem” (Bernardino Montejano), crise moral, crise religiosa, crise econômica, crise fiscal, crise de identidade, crise da cultura, crise das artes, e não faltará que se fale na crise da própria ideia de crise: uma conhecida anedota (ao gosto dos monárquicos, bien sûr) afirma que a crise da república, no Brasil, começou em 1889 (no dia 15 de novembro desse ano…).

101. Antes mesmo da metade do século passado, já Calamandrei acusava a “crise do direito”, acenando, entre outros seus sintomas, (i) à progressiva debilitação do direito subjetivo, reduzindo-se a um interesse apenas ocasionalmente protegido; (ii) à expansão do direito administrativo em detrimento do direito civil; (iii) a absorção do processo civil na jurisdição voluntária ou na jurisdição administrativa; (iv) ao aumento dos poderes discricionários do juiz; (v) à aspiração nominalista do casuísmo.

Da reconhecida vulgata sobre a segurança jurídica ?a valiosa obra de Flávio Lópes de Oñate, La certezza del diritto? vem a alarmante afirmação de que este nosso mundo contemporâneo é avesso e hostil “à lei concebida como valor autônomo e transcendente”, o que explicaria a facilidade com que podemos, hoje, compreender expressões como a de Paule-Monique Vernes, falando na “crise endémique des lois”, ou a de Michel van de Kerchove, referindo-se ao “déclin du principe de légalité”.

102. Restrinjamo-nos aqui, porém, a umas tantas pequenas incursões em algumas poucas características desta crise contemporânea da legalidade, no limite em que estas mais pareçam repercutir na atividade notarial.

Podemos dividir essas características, escolhidas, note-se bem, em meio a muitas outras, segundo melhor se moldem ao aspecto quantitativo ou ao qualitativo.

103. Quanto ao primeiro, o da quantidade, é evidente o excesso numérico das normas jurídicas. Isto, por si só, conspira contra a segurança de orientação.

A exageração quantitativa de regras aflige sua própria observância: o efeito primeiro da inflação normativa é a dificuldade em preservar rigidamente o princípio de ninguém poder escusar-se com a ignorância da lei (disse-o bem Nicolas Nitsch, este princípio “devient de plus en plus fictif”).

Além disso, há o risco de a produção incessante de normas ser qual uma “indústria (…) que cria constantemente novos falsos direitos” (Ignacio Barreiro).

Frequentemente, neste quadro hiperinflacionário de lei, o jurista ?em todo seu gênero, incluindo-se aí o notário, o juiz, o advogado?, o jurista, diz Mireille Delmas-Marty, “não sabe mais, não segue mais –não consegue mais seguir– o movimento legislativo (…)” (a consagrada autora francesa referia-se, de maneira específica, ao direito penal, mas sua reflexão pode aplicar-se ao campo inteiro do direito: “Le juriste ne sait plus, ne suit plus –ne peut plus suivre– le mouvement d’incrimination en droit pénal”).

104. Com essa exageração quantitativa das regulações, multiplicam-se as incertezas.

Novos textos de lei são novos problemas de compreensão, são novos problemas de interpretação, são novos inquéritos acerca de normas implícitas, são colisões frequentes de textos novos com normas antigas: o direito parece muita vez tornar-se líquido ou evaporar-se (para renovarmos uma referência a Delmas-Marty), porque, a cada rápida mudança na lei, sentimos o direito como algo fluido, vaporoso, que agora nos ensina o que fazer, para amanhã orientar-nos exatamente para o oposto.

Já se disse que “vivemos na expectativa da anistia do dia seguinte, tamanha a instabilidade jurídica” e que, com a liquidez resultante da hiperinflação de leis, “perdemos a ideia de que o direito (…) nos dá as raízes para vivermos felizes”.

É interessante pensar um tanto nestas resultantes. Não se trata apenas ?embora isto seja relevante? de considerar as turbações provocadas por essa hiperinflação de leis no plano das atividades profissionais dos juristas: o notário é também alguém que, tal como o hombre de las calles, vive comumente na esfera do direito. Mas é que, em meio à sua crise, o direito já não nos aparece ?ao notário, ao juiz, ao advogado, ao hombre de las calles? como um bem pessoal, a que tendemos para observar um dever ?o de dar a cada um o que é seu ?suum cuique tribuere. O direito agora não aparenta mais ser este suum objeto da virtude da justiça, porque o direito soa aos nossos ouvidos, nestes tempos, como uma coisa estranha à nossa alma: parece-nos algo completamente tão alheio a nós ?mas não o é, ou ao menos não o deve ser!?, parece-nos ser algo que não nos diz respeito salvo porque nos é imposto, só isto. Parafraseando Radbruch, o direito da hora presente é ainda alguma coisa, está certo, mas já não nos aparenta ser aquele direito que havemos de ter como objeto do hábito moral da justiça. (Que pena: com este gênero de “direito” já não podemos ser felizes!).

105. A debilitação objetiva da legalidade, pois, não somente acarreta a perda da certeza do direito, mas também o detrimento da afetividade em relação à lei, produzindo-se o sentimento de insegurança jurídica, quadro psicológico anunciado já, no século passado, por Louis Le Fur, e, ao lado desta agora chamada “neurose da insegurança”, vem-nos acometer um trágico desamor da lei.

A “segurança da insegurança” (Pérez Luño), com a ruptura da previsibilidade de aplicação da lei, favorece o caldo de cultura do decisionismo e da judiciocracia ?com a plenitude do que Alain Peyferitte designou justice-loterie?, bem como do que se pode denominar monroísmo da administração (Polin referira-se já e mais fortemente a um dado “despotismo administrativo”). Esta “doutrina Monroe” da administração pública ?ou administrativismo? caracteriza-se em que os particulares e seus bens se tornam simples meios a serviço efetivo da administração: “tudo na administração, nada fora da administração, nada contra a administração” ?ou, noutro enunciado, este mais famoso, por certo: “La nostra formula è questa: tutto nello Stato, niente al di fuori dello Stato, nulla contro lo Stato” (discurso de Benito Mussolini, em Milão, no dia 28 de outubro de 1925).

[Acho que não viverei o bastante, Deo volente, para deixar de surpreender-me quando notários e registradores, com sua independência jurídica e sendo eles, assim o são, custódios das liberdades concretas do povo, sejam exatamente alguns deles quem esteja a implorar mais e mais regulamentos administrativos para observarem as leis que mais e mais se editam].

Fonte: CNB-CF