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Notas sobre Notas - Tema VIII: Do princípio notarial da legalidade - Primeira Parte - Desembargador Ricardo Henry Marques Dip

Tema VIII: Do princípio notarial da legalidade (Primeira Parte)

Des. Ricardo Dip

94. Com a brevidade costumeira (exigível nas circunstâncias), trataremos agora do princípio notarial da legalidade, examinando seguidamente:
(i) o conceito geral de “princípio de legalidade”;
(ii) suas divisões segundo a legalidade formal e a material, bem como a legalidade estrita e a legalidade latiore sensu;
(iii) a crise atual desse princípio;
(iv) a noção específica do “princípio notarial de legalidade” com suas acepções relativas à fonte e aos efeitos notariais;
(v) a vinculação do princípio notarial com a segurança jurídica;
(vi) a harmonização do princípio da independência jurídico-notarial com a compulsiva observância da legalidade;
(vii) o conteúdo da legalidade notarial, aqui fazendo-se, em homenagem ao quadro brasileiro contemporâneo, dedicada referência à natureza e aos limites dos “códigos de normas” ou “normas de serviço do extrajudicial”;
(viii) o tema, enfim, da possibilidade e dos requisitos da objeção da consciência notarial.

95. Passemos ao primeiro destes pontos.

À partida, não estaria mal quem dissesse, embora isto exija explicações adequadas, corresponder o princípio da legalidade, em seu gênero, à ideia de sujeição à lei.

Mas essas referidas exigíveis explicações, a bem de ver, se quiserem ser efetivamente “adequadas”, têm de estadear-se na linha das meditações clássicas, remontando-se, de algum modo, aos ensinamentos de Platão e de Aristóteles e à síntese superior tomista, síntese e ensinamentos para os quais, em resumo, a lei é fruto da reta razão ?rationis rectæ ordinatio?, ou, na expressiva referência platônica, uma valoração comunitária orientada pelo logos, um logos destituído de apetites e paixões (na lição da Política de Aristóteles); ou, a nosso ver, numa conceituação definitiva: “a ordenação racional para o bem comum, promulgada por quem tem o cuidado da comunidade” ?rationis ordinatio ad bonum commune, ab eo qui curam communitatis habet promulgata (S.Tomás de Aquino).

Tenha-se em conta, porém, nesta perspectiva clássica, que a lei não é propriamente o direito (“lex non est ipsum ius proprie loquendo”), embora, isto sim, uma sua fonte de insuperável necessidade.

Com efeito, já Aristóteles aconselhara, no primeiro livro da Retórica (Bkk. 1.354 b), que correspondesse às leis “bem dispostas” determinar, por si próprias e o quanto possível, tudo o que conviesse aos fins da cidade (ou seja, do Estado), deixando aos juízos particulares o menos possível.

Modernamente, Montesquieu também abonou essa necessidade das leis para que os homens sejam avisados de seus deveres na vida social, afirmando, abeberado na lição platônica, que as leis são feitas para anunciar as ordens da razão.

Leis “bem dispostas” ?assim as recomendou Aristóteles? são as que consistem em ditames da razão, porque as leis, verdadeiramente, constituem a razão do direito (ratio iuris) e, tratando-se das leis humanas, devem elas destinar-se à consecução de um fim político, ou seja, o bem comum da comunidade política (pro commune civium utilitate ?na alusão clássica de S.Isidoro de Sevilha).

Tudo isto é muito diverso, bem pode observar-se, da concepção nominalista que faz da lei uma resultante da mera vontade do legislador de turno ?é dizer, da simples potestas de quem, de fato, possa promulgá-la. Trata-se aí da concepção voluntarista da lei, que se resume na emblemática expressão maquiavélica segundo a qual, num regresso ao pensamento dos sofistas, a salvação da pátria (mas hoje poderia dizer-se com um pouco de impiedade: o simples interesse secundário do Estado) não exija considerações sobre o justo e o injusto das normas. (Muito gráfica, a propósito, é a circunstância histórica de Hans Kelsen, o mais festejado teórico do voluntarismo normativista, refugiar-se nos Estados Unidos em face da “legalidade mere formal”, que ele próprio reconhecera, do governo nacional-socialista alemão: tanto se vê, primum vivere deinde excogitare fabulæ, digo: philosophari).

Este quadro, conciso embora seu tratamento neste pequeno artigo, basta (e este foi seu escopo) para introduzir critérios de consideração sobre o fato de o princípio da legalidade pode tomar-se sob tríplice ponto de vista: o da submissão à lei,

(i) enquanto imposição emanada da potestas, imposição cujo conteúdo é indiferente, sem possível valoração, anético, não se exigindo sua retidão racional, bastante a voluntas do poder de legislar;

(ii) enquanto, embora expressão racional humana, imposição firmada em abstrato, sem conexão com a realidade;

(ii) enquanto ditado racional e finalístico, realista (ou seja, que considera a natureza das coisas) e emergente de autoridade legítima.

96. De maneira mais vistosa, o princípio da legalidade assume-se, ao modo de uma sinédoque, numa enunciação de princípio da legalidade penal.

É costumeiro, mas errôneo, atribuir-se o surgimento desse princípio jurídico-penal à Magna Charta de João Sem Terra, no século XIII (1215). Poderia talvez remontar-se antes sua origem histórica à França do século IX (com os Tratados de Verdun e de Mersen firmado entre Lotário e seus irmãos, Luís, o Germânico, e Carlos, o Calvo), embora, mais seguramente, contudo, possa comprovar-se criticamente nos reinos da Hispania, aos fins do século XII, a formalização expressa desse princípio da legalidade penal, com a cláusula secundum foros suos inscrita na Magna Carta leonesa, cláusula essa que previa não poder punir-se ninguém se não houvera, antes, correspondentes normas forais preceptivas (é dizer, leis particulares de uma cidade ou estamento). Essa Magna Carta foi jurada por Dom Alfonso IX, Rei de León, em 1188, ou seja, 27 anos com anterioridade à edição da Magna Charta de João Sem Terra.

O que importa aqui considerar, sobretudo, no entanto, é o fato de que se tenha feito comum ?a propósito, primeiro, da legalidade penal, e, expansivamente, mas com certa flexibilidade, também dos demais âmbitos de acolhida do princípio da legalidade? a adoção de aforismos recrutados por Anselm von Feuerbach, indicando serem predicados da lei (penal, primeiramente, como ficou dito) ser ela estrita (nullum crimen, nulla poena sine lege stricta), escrita (nullum crimen, nulla poena sine lege scripta), certa (nullum crimen, nulla poena sine lege certa) e prévia (nullum crimen, nulla poena sine lege prævia).

Assim, com seu maior rigor, o princípio da legalidade importaria na submissão à lei estrita, escrita, certa e prévia. Neste círculo não haveria lugar para o costume, salvo o caso de sua textualização: a exigência de lei estrita reclamaria a canonicidade legística, vale dizer, que sempre a lei proviesse da legítima função própria do Poder legislativo (na linguagem contemporânea).

97. Esta concepção mais rígida do princípio da legalidade, nem sempre e nem toda ?non semper neque omnis?, pôde já ou pode ainda adotar-se na vida jurídica dos povos. A realidade impôs-se em contrário de uma dada extensão fabulativa desta conceituação rigorosa (e, a bem dizer, ideológica).

Tanto nos interessa a nossas pequenas meditações, a função notarial, convivendo acercadamente com os consentimentos no âmbito da autonomia privada, não pode espartilhar-se por limites de normas escritas, cabendo-lhe, decerto, a consideração dos costumes (secundum præterque leges e desde que possam valorar-se como algo vivido de maneira racional) e a consideração das determinações autônomas dos particulares, contanto que não se oponham elas à natureza das coisas ou às leis humanas proibitivas ou que estatuam sanções invalidantes.

Também no plano meramente da forma legislativa, não se pode reduzir a lei, para o ofício notarial, ao campo exclusivo das ditadas pelo Parlamento (quer dizer, leis em acepção canônica), admitindo-se, além delas, uma série de outros instrumentos normativos, segundo as competências constitucionais (assim, competências que, pois, guardam harmonia com a ideia clássica de autoridade qui curam communitatis).

98. Já aqui avançamos, portanto, algo que corresponde às divisões da legalidade em formal e material, e em estrita e lato sensu.

Primeiramente, a ideia de legalidade formal, de modo próprio, remonta-se ao sentido canônico da lei, e assim ela se afeiçoaria ao projeto de um Estado legislativo, reduzindo-se somente às normas elaboradas, com a observância dos processos legísticos pelos Parlamentos, por serem dotados estes, com exclusividade, da função legiferante. Desta maneira, a lei formal estaria plenamente identificada à lei estrita.

É patente que, de fato, este regime de funções típicas cedeu passo, em todo o mundo, a uma convivência de funções atipológicas dos vários chamados “poderes políticos” (ou seja, funções de soberania política, as do Legislativo, Executivo e Judiciário, aos quais cabem ainda acrescentar as episodicamente exercidas pelo designado “Poder” Moderador). Trata-se de nota comum nos tempos contemporâneos. Daí a conhecida coeva profusão de decretos e decretos-leis e medidas provisórias e regulamentos e instruções e portarias e orientações e comunicados provenientes do Executivo, em concurso com as leis oriundas do Legislativo, e, de par com tudo isto, os provimentos, as recomendações, as sentenças (tidas por) normativas, os códigos de normas, as normas de serviço ?tudo isto com o que, faz algum tempo, Édouard Lambert designara de “gouvernement de juges”, e a que, mais recentemente, Gérard Timsit entendeu denominar “pouvoir ventriloque”. Estamos, neste quadro, diante de uma legalidade latiore sensu, mas, em certa medida, uma “legalidade” apenas factual (se o nome calhar, da veniam).

Importa, entretanto, uma referência, ainda que breve, à legalidade material, que supere a redução voluntarista à qual é de todo indiferente o conteúdo das leis ?auctoritas, rectius: potestas, non veritas facit legem. A consideração material da lei impõe a valoração de seu conteúdo, enquanto dirigida a realizar o justo e favorecer o bem comum, de sorte que as leis sejam verdadeiramente jurídicas.

A estima da legalidade material tem um papel paideico quanto ao exercício da função dos notários, educando-lhes a vontade e a razão prática, propriamente a virtude da prudência, haurida esta pela experiência reiterada de sua arte, de modo a habituá-los a inclinar o ânimo e a encontrar intelectualmente a res iusta nos acordos próprios da autonomia privada.

Prosseguiremos.

Fonte: CNB-CF