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Notas sobre Notas - Tema VII: Do princípio notarial da imediação - Segunda Parte - Desembargador Ricardo Henry Marques Dip

88. Corre o capítulo do princípio da imediação notarial um risco de simplificação, que consiste em reduzir essa imediação do notário, quando menos de modo implícito, ao plano exclusivo do processo de sua função com resultados atrativos da fé pública.

Ou, em outras palavras, como bem avistou Rodríguez Adrados, há um lapso frequente de restringir-se a imediação notarial ao âmbito gnosiológico do de visu atque auditu do notário.

89. Dois equívocos apresentam-se de pronto com esta simplificação do tema.

Primeiro, o de que não são apenas a vista e a audição os sentidos externos propícios à captação dos bens sensíveis, certo que, segundo suas condições objetivas, esses bens podem também captar-se pelo tato, pelo olfato e pelo gosto.

Ainda que se pudesse disputar sobre a extensão da fé pública quanto a estes três últimos sentidos humanos exteriores –tato, olfato e paladar?, certo é que eles só podem realmente atualizar-se com a imediata presença dos bens sensíveis captáveis.

Daí não ser verdadeiro afirmar que a imediação notarial se ajuste somente ao território do de visis et auditis do notário.

Averbe-se que se recolhem até mesmo juízos negativos da existência de dadas pessoas, de coisas ou de fatos, e que, bem por isso, são juízos que não correspondem, à letra, ao suposto do de visu et auditu. Ao revés, trata-se aí exatamente de negar, com certeza notarial, que se tenha visto ou ouvido alguém ou algo.

90. Segundo: sem, embora, chancelar-se pelo atributo político da fides publica –que, com efeito, orbita no âmbito da potestas civitatis (ou soberania política)?, larga parte do conhecimento do notário possui grau de certeza equivalente ou, em certos casos, maior do que o abonado pela fé pública.

São coisas diversas. Um dado conhecimento notarial é qualificado fid? public? por ser resultante da captação de, quando menos, os sentidos externos da visão e da audição, mas isso não leva a que se recuse certeza ao conhecimento, pelo notário, de realidades não captadas por aqueles sentidos. Não se nega, pois, a certeza desse conhecimento, mas, isto sim, nega-se que se trate, então, de conhecimento qualificado pela fé pública.

Calha que essa espécie de conhecimento destituído de fé ?sine fid? public?? pode, muitas vezes, provir da imediação do notário em face da realidade conhecida. Isto se dá em inúmeras situações: p.ex., a presença do notário frente a efeitos sensíveis de que frua certeza de causas correntes não captadas pelos sentidos externos; o apoio da fé de conhecimento (fides cognitionis) em dados constantes da presença interna própria do sentido da memória; a imediação de um signo que convoque a atuação cognoscitiva do sentido comum, etc.

Em síntese, a imediação notarial não se reduz ao campo estreito do atributo político propiciado ao exercício do visu et auditu.

91. Insista-se neste ponto, porque, assim a lição de Rodríguez Adrados, não se tem de supor esteja o notário reduzido à função de ver e ouvir pessoas, coisas e fatos. O notário é um iurisprudens vocacionado à determinação consensual do direito, e não um mero aferidor de realidades sensíveis: pense-se, à partida, que logo após a fé de conhecimento dos outorgantes, o notário julga de sua capacidade, legitimação, liberdade de consentimento, adequação representativa, legalidade da outorga, informação suficiente da vontade ?coisas todas que vão além da mera visão ou audição de realidades sensíveis.

92. Consideremos, a propósito, ainda que brevemente, as diversas funções notariais:

(i) a de gerenciamento administrativo e financeiro;

(ii) a técnica ou poiética;

(iii) a prudencial ou de qualificação (e anexas de assistência, conciliação, mediação e conselho).

Ainda que não repugne, de fato, possam tanto a gestão administrativa e financeira de um ofício notarial, quanto as prestações técnicas do notário (exs.: buscas, extração de traslados e certidões, preenchimento de fichas de firmas) realizar-se sem a presença do notário, as funções de qualificação, assistência, conciliação, mediação e conselho não podem, ao menos em sua integralidade, efetivar-se sem a imediação tabelioa.

93. A função prudencial do notário, por antonomásia, é a de determinação do direito, o que exige um inquérito diagnóstico da real vontade dos clientes, diagnose que não pode efetuar-se sem uma relação de intersubjetividade compreensiva do fato desta vontade, da capacidade de sua formação, da suficiência informativa, da liberdade em consentir, etc.

Não é só, contudo. Se não inteiramente, é em grande medida que competirá ao notário exercer a assistência pessoal do cliente, iluminando-lhe a compreensão da própria vontade e ensinando-lhe caminhos para resolver os problemas que podem influir em sua direção ou derivar de sua expressão .

Não diversamente, cabe ao notário, frequentemente, a difícil tarefa de conciliar interesses e mediar disputas, exercitando a missão de ser um magistrado da paz jurídica. Num tempo em que a conciliação e a mediação têm convocado estudos e estudiosos –no âmbito dos designados Masc (Métodos Alternativos de Solução de Conflitos; rectius: Métodos Opcionais de Solução de Conflitos)?, e em que se gestam até correspondentes ramos tidos por de ciência (assim, a irenologia), os notários latinos, por sua histórica atuação pessoal (tem-se a tentação de dizer “pessoal e personalizada”), são os detentores de uma larga prática na “tradição da paz jurídica” ?traditio pacis iuridicæ.

A figura romanceada do “tabelião de aldeia”, nas letras fulgurantes de Alphonse Daudet, põe bem à mostra de que espécie de profissional estamos a tratar: é daquele iurisprudens que conhece pessoalmente sua comunidade, que convive pessoalmente os problemas de seus clientes, problemas que carrega com solidariedade pessoal, incumbido de solvê-los o mais e melhor possível. É por isso, é com as vistas postas na história, que se reconhece ser o notário latino, de comum, um conciliador e mediador por excelência.

Ao fim, o notário é convocado à militância do conselho, a ser a previdência humanamente possível dos interesses de seus clientes, dom de conselho que, pela educação paciente da virtude da prudência, é a clave de ouro do bom notário, e que só pode exercer-se no trato pessoal com o cliente.

Qualificação, assistência, conciliação, mediação e conselho são deveres que estão entregues, própria e pessoalmente, ao notário, com seu status de profissional do direito, e que exigem relação direta com os clientes. Ser cliente é ser confiado num patrono. E a confiança é não apenas técnica, não somente no conhecimento jurídico e na experiência profissional do tabelião, mas é a fidúcia na alçada de valores morais que não se realizam sem a consagração pessoal e imediata do notário aos deveres próprios de seu ofício nobilíssimo de determinar o direito.

Por isso, pode dizer-se que a imediação do notário é o modo de humanização do Notariado, é o emblema de que, antes do documento, está a personalização do relacionamento com os clientes, aqueles a quem, na referência de Baldo, deve o notário “ouvir com seus próprios ouvidos e ver com seus próprios olhos”.

Fonte: CNB-CF