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Notas sobre Notas - Tema VI: Do princípio notarial da veracidade - Conclusão - Desembargador Ricardo Henry Marques Dip

Tema VI: Do princípio notarial da veracidade (conclusão)

77. Tal o fez ver Castán Tobeñas, no imperdível opúsculo Función notarial y elaboración del derecho, deve-se a Joaquín Costa a certeira afirmação de ser o documento notarial a “prova antilitigiosa por excelência”, de que seguiu a célebre sentença deste grande pensador espanhol: “Notaría abierta, Juzgado cerrado”.

Mas esse valor notarial no fomento da paz jurídica não brotou ao acaso em homens vulnerados quais todos o somos. Esse valor de tão elevada estima nas comunidades resulta de uma adesão profissional à verdade e ao bem, de um compromisso, enfim, historicamente provado, no sentido de que o sim seja sim, o não, não.

Consideremos a historicidade desta valorosa conduta profissional por meio, aqui, de um breve e abonador exemplo que está mesmo à raiz de nosso direito. Na Hispanidade da Baixa medieval, os escrivanos juravam exercer seu ofício comunal com fidelidade (fideliter), de modo que tudo haviam de fazer “lealmente e derechamente” (assim o dispunha o Fuero Real ou Fuero de las leyes ?completado em 1255?, uma das admiráveis obras de ordenação notarial expedida pelo Rei Alfonso X, “El Rey Sabio”, de León e Castilla), sob pena de seus atos não valerem, sem prejuízo de penalidades pessoais.

78. Ora, leal e consoante o direito é o exercício notarial conformado à verdade e ao bem (em que se inclui o justo), é dizer, o ofício público do tabelião que, em sua experiência profissional, devota-se em observar com rigor o princípio da realidade das coisas, tanto no conhecê-las, quanto no expressá-las.

Esse princípio da realidade, segundo o qual todo conhecimento deve adequar-se às coisas, abdicando-se das interferências passionais ou ideológicas, impõe-se não apenas como atributo da cognição dos notários (cognitio notarii), mas igualmente como predicado da expressão notarial (elocutio notariæ).

Aristóteles, no Perihermeneias, ensinara já que as palavras orais são símbolos das paixões da alma, e as escritas, símbolos das palavras orais. É por estes meios que todos conhecemos as coisas, porque elas são as mesmas para todos, tanto quanto, para todos, mesmas são as paixões da alma. Se assim é para todos os homens, é-o por motivos profissionais, para os tabeliães, cuja linguagem sempre foi de comum a explicitação da realidade conhecida, seja na função de exprimir o pensamento, seja na de expressar a vontade, seja, ao fim, na de comunicar uma emoção, paixões todas da alma e que são imagens das coisas.

Recolhe-se, quanto aos scriptores profissionais, uma larga tradição que vem da Roma antiga, em que se acreditava, de modo sacral, no liame entre o mistério (numen) e o nomen das coisas: se o homem romano conhecia a verdade de certas coisas (seu numen) era porque, assim era sua fé, conhecia o nome de cada uma delas, pois consistia o domínio dos nomina um fator essencial para que os deuses pagãos dessem audiência e proteção aos romanos.

O próprio nome da cidade de Roma ?nomen urbis Romæ? era secreto. A deusa Angerona, que era a protetora da urbs romana, tinha por imagem uma mulher com os dedos pousados sobre os lábios, simbolizando um silêncio ritual e, além disso, um vínculo entre a palavra e a coisa que a palavra significa, uma relação firme entre o nome e a eficácia do que se verbaliza.

Vem a propósito que, numa passagem ciceroniana, há notícia de um certo Valerius Soranus ter pronunciado, em voz alta, o nome da cidade de Roma, o que lhe atraiu a pena de crucifixão (que não se sabe se foi a ele realmente imposta).

S.Agostinho, nas páginas magníficas de seu De Civitate Dei, conta o caso de um chefe militar romano, Marcus Attilius Regulus, que, prisioneiro dos cartagineses, foi enviado a Roma para convencer o Senado a uma troca de prisioneiros, tendo empenhado sua palavra de que retornaria a Cartago. Uma vez em Roma, Marcus Regulus persuadiu os senadores de que a troca de prisioneiros não atendia aos interesses do Imperium Romanum, de maneira tal que contrariou a vontade dos chefes púnicos. Na sequência, apesar dos insistentes apelos dos romanos, Marcus Regulus regressou a Cartago, onde teve morte cruel, depois de horrendas torturas ?horrendis cruciatibus. Era assim, contudo, que se entendia: a palavra de um homem é a própria essência desse homem, e é pela observância da palavra empenhada que se honram os homens dela proferentes: deste modo até hoje conhece-se o que é um “homem de palavra”, aquele que cumpre as promessas, que veicula sua alma nas palavras que pronuncia.

79. Paremos por aqui, entretanto, confiados em que se haja retido uma conclusão essencial: não é à potestas da fé pública que o Notariado latino deve sua histórica afeição à verdade, mas, ao invés disso, é ao hábito de rigor profissional com que os scribæ e notarii se devotaram à veracidade que se deve a póstera concessão da fides publica.

Antes, pois, aos notários latinos deve reconhecimento o Estado, que aqueles a este.

80. E, para encerrar este pequeno capítulo dedicado ao princípio notarial da veracidade, bem cabe imitar a mesma ideia de Rodríguez Adrados, que recorreu a versos de Antonio Machado (1875-1939), o poeta sevilhano que tão bem avisou contra os males do niilismo, do relativismo, do subjetivismo, males destas categorias todas que, imbricadas, têm em comum o desprezo e o maltrato da verdade.

É que a poesia tanta vez consegue dizer mais alto o que a prosa não obtém elevar das planuras:

¿Tu verdad? No, la Verdad,
y ven conmigo a buscarla.
La tuya, guárdatela.

(…)

La verdad es lo que es,
y sígue siendo verdad
aunque se piense al revés.

81. No próximo artigo desta série “Notas sobre Notas” versaremos brevemente sobre o princípio da imediação notarial ?que talvez pudesse de algum modo designar-se princípio da personalização notarial?, pondo em evidência a relevância da presença direta do notário em momentos essenciais do exercício de seu ofício.

Fonte: CNB-CF