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Notas sobre Notas - Tema VI: Do princípio notarial da veracidade - Terceira Parte - Desembargador Ricardo Henry Marques Dip

Tema VI: Do princípio notarial da veracidade (terceira parte)

Des. Ricardo Dip

72. Tal já se deixou antecipado, é de rigorosa confirmação histórica a notícia de que a veracidade habitual dos scribæ, antecessores próximos dos notários públicos, foi o foco atrativo da concessão política da fides publica nos séculos XII e XII do Império romano do Ocidente.

Mas a esta experiência histórica ?de que se extrai ser a fé pública notarial um posterius em relação ao exercício da costumeira veracidade dos redatores gestados no estudo do trivium? deve ainda concorrer outro modo de precedência, de caráter lógico, porque a veracidade notarial é mesmo um gênero em que se acolhem, especializados, os juízos que convocam a fides publica.

É dizer que, entre os vários possíveis capítulos dos instrumenta notarii, alguns há que têm o selo da fé pública, ao passo que outros, por não atraírem essa fé, nem por isso deixam de conduzir-se pela inclinação à verdade e de serem dotados de indícios de veracidade, por mais que, ao revés do que se dá com os atos marcados pela fides publica, possam aqueles impugnar-se em via não jurisdicional (incluídos os processos administrativo-judiciais).

73. O notário, ele pessoalmente, anima essa busca do verdadeiro, é ele, o notário, pois, a própria alma da Magistratura da verdade.

Mas que é a verdade? Que é a verdade a que deve tender, por ofício, o notário público? Que é a verdade que alimenta e dá razão histórica de ser à função notarial? Como distinguir essa verdade em contraste com as “interpretações relativistas” que infestam de insegurança e desgraçam os nossos tempos? Quando se diz que “não há verdade”, que “a verdade não se pode apreender” ou que “a verdade é só subjetiva”, como salvar a função notarial?

74. Vimos, no pequeno artigo anterior desta série “Notas sobre Notas” (o de n. 10), que a mitologia grega hipostasiara o conceito de “látos” (ou “léthos”), mediante a fantasia de um dado “rio do esquecimento” (o Rio Lethe), localizado no Hades e cujas águas tinham o condão de apagar a memória.

E esse sentido da “alétheia” grega (ou seja, o não esquecimento) cogita-se reaparecer de algum modo na etimologia latina de adjetos, hoje, de nosso vernáculo “verdade”. Assim é que uma planta de origem europeia, a flor-da-verdade ou heléboro-branco, tem o nome latino de veratrum (em português, veratro), e essa planta era usada para a restauração da saúde mental. Mas a veritas latina, de que o verus (verdadeiro) deriva, tem precedência lógica sobre este: “maior est veritas quam verus”, ensinou S. Isidoro nas Etimologias, de sorte que, sendo a veritas, por primeiro, uma conformidade das coisas (verdade em acepção ontológica), o verdadeiro, seu derivado, é uma conformidade com as coisas, é dizer: a memória (ou “alétheia”) das coisas, tal como elas são.

Assim, o verdadeiro é o resultado da conformação do entendimento com a memória das coisas, ou seja, com sua realidade, e a verdade é a mesma realidade das coisas enquanto regra e medida do entendimento ?mensura et regula intellectus. Verdadeiro, pois, diz-se da conformidade judicativa dos signos intelectuais com os significados reais das coisas ?conformitas signorum ad rerum significata.

Enfim, ser veraz é ter a memória do real... ou é caso de recorrer ao veratrum ou heléboro-branco, para sanar-se do esquecimento.

75. Na hora presente, que é o de um tempo afligido por uma ingênua crença opinativa na impossibilidade da mesma realidade (“não há verdade”), ou na inviabilidade de acesso a seu conhecimento (“se há verdade, não a podemos conhecer”), ou na comunicação objetiva do mesmo conhecimento (“toda a verdade é relativa ao sujeito”), a asserção de que o notário público não apenas tenda, em seu ofício, à recolha e afirmação da verdade, mas que, às vezes, o faça até mesmo de modo graduado (é dizer, com o atributo de uma presunção de veracidade só impugnável em via judiciária contenciosa) deveria pôr em evidência a magnitude da função notarial e o peso consequente da responsabilidade de seu exercício.

Esta grandeza da profissão do notário pressupõe a possibilidade de que, livremente, em sua ordem (in suo ordine), possa ele descobrir e asseverar a verdade, compreendendo com liberdade os fatos, compreendendo com liberdade as normas e interpretando-os com liberdade (é dizer, mediando-os, qual um intermediário livre entre normas e fatos).

Se, ao revés, puséssemos limites arbitrários à liberdade de compreensão e interpretação notariais, recusaríamos muito mais do que a função livre do notário, porque, no fim e ao cabo, estaríamos a refutar a reiterada assertiva de que “o homem é um ser que pensa”. De fato, se o notário, que sempre foi por ofício chamado a pensar; se ele, que é, por sua natureza, chamado a ser idôneo; se ele, que é, por sua história, consagrado a ser veraz; se ele não puder ser responsavelmente livre no exercício de seu ofício de afirmar a verdade, qual de nós, os que não somos notários, poderíamos assumir vocação alguma para o pensamento e a verdade?

Quando está em jogo a liberdade de pensar, está em jogo também a liberdade de ser humano: somos todos nós, ao fundo, um resultado daquilo que pensamos, e nosso modo pessoal é o modo mesmo de nosso pensamento.

Assim –nos quase infinitos e indefinidos caminhos com que o pensamento humano se desenrola– não podemos admitir uma limitação epistêmica arbitrária para a interpretação, entraves autoritários à investigação, à pesquisa, à sindicância, ao papel da memória, da experiência, da seleção de conceitos relacionáveis: tais seriam os próprios do niilismo, os do relativismo, os do subjetivismo, que asfixiam o pensamento, negando-lhes a possibilidade real de atingir seus fins.

76. Uma coisa, decerto, porém, é a restrição gnosiológica arbitrária, aflitiva da liberdade do pensar em que se consagra a possível autonomia humana do pensador. Outra coisa, muito diversa, é pretender a ilimitação do pensamento contra a evidência da própria realidade. Se admitíssemos a ilimitação arbitrária do intérprete, afirmaríamos a infinitude conceitual da interpretação, e, com isto, recusaríamos, a priori, toda possível interpretação da interpretação, porque interpretar a interpretação supõe sempre defini-la (e de-fini-la é pôr-lhe limites finitos e objetivos). Assim, é preciso aceitar limites razoáveis para as interpretações, e esses limites são os que consideram os signos em sua conformidade (regulação e medida) com a significação objetiva das coisas –ancorada esta na evidência–, de modo que se salve o pensamento, que se salve o intérprete, que se salve a própria função do notário.

Por isso, o compromisso do notário com a realidade das coisas é o atributo que mais o eleva na magnitude histórica de seu ofício. Queira sempre a história do Notariado românico que nunca venha a ser um de seus tabeliães comparado a Protágoras ou a Górgias, mas, isto sim, que dos notários latinos sempre se diga, tal se disse já e mais de uma vez, que eles se conduzem em suas atividades ao modo maiêutico com que Sócrates ?este paradigma de uma sadia moralidade que quase adivinhou o cristianismo?, ao modo qual Sócrates buscava apaixonadamente descobrir e afirmar a verdade de todas coisas e de cada uma das coisas.

Que bom é ainda termos notários e alguns resistentes Sócrates nestes nossos tempos.

Prosseguiremos.

Fonte: CNB-BR