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Notas sobre Notas - Tema VI: Do princípio notarial da veracidade - Primeira Parte - Desembargador Ricardo Henry Marques Dip

NOTAS SOBRE NOTAS

Do princípio notarial da veracidade (primeira parte)

Des. Ricardo Dip

61. A caracterização do notário latino ou românico emergiu, ad summam, da conjunção de três elementos constitutivos: (a) a habitualidade do domínio prático-prático das disciplinas do trivium; (b) a especialização no estudo do direito, à época da nascente universidade medieval; (c) a concessão política da potestade da fé pública.

62. Os dois primeiros desses elementos experienciaram-se ao largo dos séculos na vida das diversas comunidades, gestando o traço fundamental, característica naturalidade histórica dos notarii latinos, de serem eles uma função da comunidade, ou seja, criação quase espontânea da soberania social (e não da política), respondendo diretamente à lei e não ao poder político. Daí os predicados indeclináveis da liberalidade profissional do notarius latino e, de conseguinte, de sua independência jurídica (in suo ordine).

63. O terceiro elemento constitutivo do notário de tipo latino foi uma agregação de natureza política: a fides publica. Mas este predicado, embora concessão da soberania política, frutificou da provada experiência histórica de os scribæ do Ocidente e do Oriente romanos serem habitualmente verazes. Vale dizer, não foi a atribuição da potestade de fé pública o fundamento da veracidade costumeira dos notários latinos, mas, ao revés, a tradição de sua veracidade habitual foi o pilar da concessão do poder da fides publica. Tal como é ainda agora, já o era muito antes; em palavras de RODRÍGUEZ ADRADOS, “la verdad o veracidad del documento es (…) el fundamento de su eficacia, de la fe publica”.

64. Isto projeta a maior extensão da veracidade notarial relativamente ao campo da fé pública. Ainda, pois, nos casos em que não caiba a eficácia própria da fides publica notariorum, acredita-se de comum em que os notários são, por seu hábito, verazes. De não ser assim, a fides publica terminaria por não se conservar no estrato a que corresponde, na medida em que ela supõe exatamente a anterior confiança comunitária no notarius.

65. Muito antes, com efeito, de, na Baixa Idade Média, dar-se a atração da potestade da fides publica aos scribæ experienciados no trivium e no saber jurídico, já se exigia daqueles a observância dos bons deveres da moral e da técnica, de modo a que se destinassem sempre à verdade.

Vejamos um episódio particular, a título de exemplo, recolhido na área longobarda do Império do Ocidente (valho-me aqui, sobretudo, das lições de BONO).

Como se sabe, o antigo tabellio romano não detinha a potestade da fé pública, que se reservava à escrituração só por algumas autoridades (titulares do ius gestorum), e, no território longobardo (mais ou menos hoje correspondente não só à Lombardia, mas também estendendo-se de Turim a Trento e Pavia), uma vez instaurado o Regnum italicum –isto, a partir de 538, com a invasão de germanos sob a liderança de Alboíno?, os scribæ publici se foram transformando, de modo paulatino, em notarii, ainda sem poder autenticador, nos quais últimos, entretanto, já se vai desenhando, a pouco e pouco, a figura do notarius publicus, ou seja, o notário de molde românico que tem, ali, por precedente próximo, o notarius longobardo.

Pois bem, já na segunda metade do século VIII, o Imperador Carlos Magno vitoria-se contra os longobardos, adotando expressamente a condição de “Rei dos Lombardos”, de tal sorte que, com isto, veio a instaurar-se uma regular sucessão dinástica dos francos na Lombardia, de modo que o Imperador carolíngio LOTÁRIO I (795-855) pode impor no Regnum Italiæ, pela primeira vez na história, o juramento notarial, cuja fórmula, indicada nas Capitulares de 824, permite reconhecer, de maneira explícita, a relevância da veracidade na documentação notarial: “Notarii autem hoc jurare debent, quod nullum scriptum falsum faciant (…)” ?ou, em versão livre: os notários devem jurar não fazer escrito falso.

A prática manteve-se entre os franceses, e ainda hoje o Decreto n. 73-609, de 5 de julho de 1973, prevê, na França, a prestação, perante um tribunal, do serment de notaires: “Je jure de loyalement remplir mes fonctions avec exactitude et probité et d'observer en tout les devoirs qu'elles m'imposent”.

Os termos “exactitude” e “probité” suprem, neste passo, pelo de veracidade.

Compreende-se, pois, que larga tradição vertebre um dos epítetos pelo qual se conhece, com inteira justiça histórica, o Notariado latino, qual o de ser uma “Magistratura da verdade”.

Prosseguiremos, Deo volente.

Fonte: CNB-BR