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A Caixa de Pândora dos Condomínios Rurais

Até 1964, o processo de fracionamento da propriedade rural não possuía limitação mínima e predominantemente envolvia sua divisão jurídica e física. As partilhas de imóveis, por exemplo, tinham como regra a participação necessária do agrimensor que realizava o levantamento da propriedade, o plano de divisão e a locação das linhas divisórias. O mesmo ocorria com o desmembramento de qualquer fração de um imóvel, sem cuja planta e memorial descritivo não ocorria a desejada averbação final. Com isto, cada novo detentor de parte de um imóvel, sempre o recebia juridicamente descrito e fisicamente demarcado, ficando imediatamente livre para dispô-lo em seu pleno potencial.
Após o advento do Estatuto da Terra - um dos primeiro instrumentos baixados pelo regime militar e que regulamenta a reforma agrária até hoje - foram criados o "Módulo Rural" e a "Fração Mínima de Parcelamento - FMP", que passaram a limitar a subdivisão da propriedade como um remédio para evitar a disseminação dos improdutivos minifúndios. O efeito colateral desta medicação, entretanto, foi e segue sendo doloroso. Para fugir da nova imposição e, de brinde, economizar o custo e o tempo dos serviços do agrimensor, instaurou-se a prática de só se fracionar juridicamente o imóvel, averbando-se na mesma matrícula "frações ideais" do mesmo. A prática atingiu e segue atingindo principalmente as pequenas propriedade, por ser agora a única alternativa legal de desmembramento de qualquer parte menor que a FMP (a FMP varia para cada município e é regulada pelo Governo Federal).
Por este mecanismo, o direito à propriedade da fração é transferido, mas sua configuração geométrica e localização específica dentro do "todo maior" é omitida e todos os proprietários passam a compartilhar um "condomínio rural". Portanto, quem adquire uma "fração ideal" de um imóvel rural recebe uma "parte dentro de um todo maior" que não fica localizada, ou seja, nada lhe assegura que ela se situe ao norte ou ao sul da propriedade original, nem que tenha frente para a estrada ou acesso ao curso de água. Você e os demais proprietários do "todo maior" devem desfrutá-lo em pleno condomínio. Diferente portanto dos condomínios urbanos - horizontais ou verticais - onde cada um ocupa uma fração exclusiva, seja lote ou apartamento, onde no qual só um único proprietário entra e desfruta.
Em geral os condomínios rurais tem uma sobrevida inicial harmônica. Se decorrente de uma sucessão, onde em geral todos se dão face ao parentesco, facilmente acordam seus quinhões e passam a neles a produzir. É quando um vende sua "fração", ou falece e há partilha, que os problemas começam. Entram estranhos no condomínio que podem não concordar com as localizações dos demais e a harmonia original se desvanece. A esta altura todos já descobriram também que a "fração ideal" é muito pouco aceita como garantia em financiamentos, pois os banco descobriram rápido que a indefinição da localização do bem o torna virtualmente impenhorável. A dificuldade de acesso ao crédito passa a ser assim outro fantasma a habitar tais condomínios.
Para que uma "fração ideal" deixe de ser um pesadelo é necessário extinguir o condomínio, ou seja, contratar um profissional agrimensor, que fará o levantamento, proporá a divisão "real" e, se todos concordarem, demarcará as linhas e produzirá a planta com os respectivos memoriais descritivos e a Anotação de Responsabilidade Técnica. Com estes documentos, o Oficial de qualquer Cartório poderá fazer a Escritura de Divisão que, por fim, individualizará as frações ao ser apresentada ao Registro de Imóveis da Comarca. Este, por fim, abrirá matrículas novas e exclusivas para cada fração, fazendo nascer a plena propriedade de cada interessado. Simples - se não fosse pela sutileza da palavra "todos". Sim, basta que apenas um condômino não concorde ou não se manifeste para que o processo se inviabilize, pois, neste caso, são direitos individuais que não se submetem ao desejo da maioria. E isto é hoje muito comum, pois como já se passaram quase 50 anos desde os idos 1964, praticamente todos o imóveis sofreram sucessivas partilhas ou desmembramentos, em sua maioria produzindo condomínio de estranhos ou, mais provável, de desafetos e desaparecidos. Como a principal razão para a opção pelo condomínio foi a pequena dimensão da propriedade ou os custos do processo, é natural supor-se que quanto mais simples era o produtor mais suscetível a envolver-se com o problema ele foi. Em resumo, enquanto o culto e rico pôde evitar o problema, o pobre e pouco alfabetizado nele se afundou. O primeiro obteve crédito e segurança jurídica. O segundo sempre foi corrido dos bancos e agora sabe que o que pensava que era só seu pode ser de outro. Como o Rio Grande do Sul possui estimadamente 450.000 propriedades rurais com menos de 500 ha e infere-se que 60% destas são hoje condomínios rurais, pode-se projetar o tamanho do problema e seus efeitos sociais e econômicos. Não são conhecidas projeções do problema para todo o país.
Numa brilhante tentativa de solução, a Corregedoria Geral da Justiça do RGS baixou em 2005 o Provimento Nº 07 alcunhado de "Gleba Legal". Este instrumento deu base legal para a "extinção individual" de cada condômino, desde que os confrontantes diretos de fração cercada e ocupada (denominada "pró-diviso") concordem. Para isto basta obter uma escritura declaratória em cartório e levá-la ao Registro de Imóveis, o qual abrirá uma nova matrícula para a fração, fazendo assim nascer uma propriedade individualizada. Caso a fração não esteja demarcada ("pró-indiviso"), aí então é necessário o responsável técnico, seus documentos e respectiva ART. O Gleba Legal, apesar de sua importância, não se popularizou nem se disseminou para outros estados, como frequentemente ocorre com as boas ideias dos gaúchos. Além disto, por força da Lei 10.267/01, que exige o prévio georreferenciamento certificado pelo INCRA (o "Geo" para os íntimos), só é possível aplicá-lo para condomínios cuja área total seja inferior aos casos de enquadramento nesta Lei. Hoje esta área são 500 ha, mas com a partir de dezembro ela cairá para zero, o Gleba Legal perderá sua validade.
A óbvia conclusão é de que é urgente e muito importante a busca de uma solução. Em nossa opinião, esta solução seria um Gleba Legal com "botox", transformado em Lei. Explico. Apesar da curta vida o Gleba Legal foi aplicado em inúmeros casos e a primeira constatação é de que onde foi aplicado, nunca foi contestado: portanto funcionou! Um ponto frágil para sua popularização parece-nos ser justamente a ausência da obrigatoriedade do responsável técnico agrimensor para os casos "pro-divisos", que são a grande maioria. Sem alguém que cumpra a função de interface entre o meio burocrático e o mundo real - e se responsabilize pelos fatos que nele ocorrem - toda a responsabilidade sobre eventuais fraudes ou futuras contestações (dos demais condôminos, por ex.) recai sobre os Oficiais do Cartório e do Registro de Imóveis, e este é um grande fator inibidor de sua adoção. Assim, se a obrigatoriedade do responsável técnico for generalizada e sua responsabilidade expressa, o receio dos oficiais se dissipará, pois esta ficará novamente limitada aos atos clássicos e objetivos que lhe são consagrados. Finalmente, o instrumento necessita ser uma Lei para conviver sem conflitos com as atuais disposições do georreferenciamento e uniformizar a solução para todo o país. Um sugestão seria aplicar o "Geo" para a "localização" ("localização" na terminologia cartorial, equivale a "descrição" para o engenheiro) da fração a desanexar do condomínio e a escritura declaratória como título aquisitivo. Certificado este "Geo", seria então aberta a correspondente matrícula e todos ficariam felizes. O condomínio remanescente seguiria sua existência natural, sofrendo ou não novas desanexações, até que os condôminos restantes fossem tão poucos e afins, que poderiam extingui-lo por divisão. O "Geo" se aplicaria normalmente sobre o remanescente da matrícula original. Como a Lei 10.267/01 determinou que tais procedimentos não podem onerar os detentores de imóveis com até 4 módulos fiscais, seu custo não recairá sobre o pequeno produtor e terá de ser financiado pela mesma fonte que o Estado definir para o próprio "Geo". Entretanto, os custos do "Geo" para pequenas propriedades.
É evidente que estamos atrasados na solução de um problema que melhor seria não haver sido criado, mas que hoje contamina nossa estrutura fundiária fragilizando a segurança jurídica da propriedade e da garantia real. Um problema que só é parcialmente conhecido talvez porque atinja principalmente os produtores mais simples e com menos acesso à mídia. Um problema multidisciplinar com solução intrinsecamente técnica, mas que exigirá decisão política e participação por entidades para sua implementação. O certo é que os visíveis vazamentos desta verdadeira Caixa de Pândora que são os condomínios rurais, indicam que ela está prestes a se romper e talvez o Gleba Legal tenha sido seu primeiro e último reforço.
(*) ONG composta por representantes do INCRA, FETAG, CREA, Colégio Registral, FARSUL, UFSM, UNISINOS e outros, que se reúne para aperfeiçoar o georreferenciamento de imóveis rurais e as demais legislações que os afetam. O GeoFÓRUM possui sua sede no Colégio Registral do RGS: Av. Borges de Medeiros, 2.105, Sl. 1.303, Porto Alegre, RS - Fone: (51) 3228.3412.