Recentemente, a Advocacia-Geral da União, por meio do Parecer CGU/AGU n. 01/2008-RVJ, aprovado, em 19 de agosto de 2010, pelo Parecer n. LA-01 do Advogado-Geral da União, manifestou-se quanto à interpretação a ser dada à matéria relativa à aquisição de propriedades imobiliárias rurais, no Brasil, por pessoas jurídicas.
Mais especificamente, esse parecer representou uma inovação quanto à “equiparação de pessoa jurídica brasileira com pessoa jurídica estrangeira”, pois estendeu as restrições constantes da Lei n. 5.709, publicada em 11 de outubro de 1971, às pessoas jurídicas nacionais de que participe estrangeiro, pessoa física – não-residente – ou jurídica – que não possua sede no Brasil –, a qualquer título, e desde que essa participação assegure a ele (estrangeiro) o “poder de conduzir as deliberações da assembléia geral, de eleger maioria dos administradores da companhia e de dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia”[i] [ii].
Para se chegar a essa conclusão, entre outros argumentos, adotou-se uma ponderação de “princípios e normas constitucionais referentes à apropriação das terras rurais por estrangeiros ou por pessoas jurídicas brasileiras controladas por estrangeiros, em face da supervalorização de nossas terras rurais férteis causada pelo desenvolvimento de tecnologia nacional apta a criar inovadoras formas de geração de energia a partir de fontes naturais renováveis, pela crise alimentar mundial e pela decorrente valorização de nossas commodities e, ainda, pela riqueza mineral de nosso subsolo [...]”[iii].
E como sói acontecer, os efeitos dessa nova interpretação produzir-se-ão desde a publicação do documento no Diário Oficial da União, conforme recomendado no próprio parecer[iv].
Apesar da subjetividade que possa surgir da interpretação da forma de participação do estrangeiro no capital social de pessoa jurídica nacional, o elemento objeto que determinará a conduta do Oficial de Registro de Imóveis, quando da inscrição[v] de aquisição de propriedade rural por qualquer pessoa jurídica, é o fato de a maioria do capital social ser detida por estrangeiros, pessoas físicas, residentes no exterior, ou jurídicas, com sede no exterior[vi] [vii].
A expressão “poder de conduzir as deliberações da assembléia geral, de eleger maioria dos administradores da companhia e de dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia” requer consubstanciação em elementos minimamente objetivos que se externam, ao Oficial de Registro de Imóveis, na participação do capital social.
Há, além do mais, outra questão bastante interessante no conteúdo do parecer: a lei publicada em outubro de 1971 seria aplicável, também, às situações de arrendamento rural de terras, em razão do disposto no §1° do artigo 23, da Lei n. 8.629, de 1993[viii].
No entanto, como fazer inscrever, no Registro de Imóveis, os contratos de arrendamento rural, diante do princípio da taxatividade que disciplina a atividade? A resposta para tanto seria valer-se do disposto no artigo 246 da Lei n. 6.015, de 1973, e lançar nas transcrições ou matrículas os contratos de arrendamento rural por ato de averbação, obedecidas todas as regras da Lei n. 5.709, de 1971. A averbação desses arrendamentos seria a forma de que disporiam os serviços prediais para se manter o controle pretendido pela lei.
Alternativa à averbação, na matrícula, do arrendamento rural seria registrar tais contratos junto aos Oficiais de Registro de Títulos e Documentos. No entanto, o registro em tais serventias somente seria procedido com a comprovação de atendimento de todos os requisitos impostos pela Lei n. 5.709, o que não dispensaria certidão do(s) Oficial(is) de Registro de Imóveis competente(s) e nem posterior comunicação a ser feita pelo Oficial de Registro de Títulos e Documentos ao(s) Oficial(is) de Registro de Imóveis.
Em aspectos pontuais (aquisição de propriedade imobiliária rural e arrendamento por pessoa jurídica), a legislação de 1971 e o decreto que a regulamenta (Decreto 74.965, publicado em 26 de novembro de 1974) impõem aos Oficiais de Registro de Imóveis o procedimento a ser seguido. Essas normas estabelecem, por exemplo, a obediência, quanto ao tamanho da área a ser adquirida, autorizações especiais a serem apresentadas, livros a serem escriturados e limite quanto à aquisição da propriedade, considerando-se as nacionalidades. Não bastassem esses textos, há doutrina e decisões que bem ajudaram ao desenvolvimento do assunto[ix].
Como bem adverte Ademar Fioranelli, “a legislação pertinente é específica e atribui grande responsabilidade aos Registros de Imóveis no auxílio desse controle, quer quanto à forma de aquisição, quer quanto à sua quantidade. Pesa sobre nossa cabeça, até, responsabilidade de ordem penal, tal a gravidade com que o legislador e o Executivo encaram a problemática”[x]. E, agora, diante dos robustos argumentos constantes do parecer da Advocacia-Geral da União, essa responsabilidade estender-se-ia para averbações dos contratos de arrendamento rural.
E, uma vez praticado o ato de registro (ou averbação para as situações de arrendamento), essas informações podem ser disponibilizadas a qualquer pessoa. Esse é um dos objetivos dos registros públicos, que visam, entre outros fins, a garantir publicidade daquilo que é lançado nos livros da serventia[xi].
Ainda que se trate de uma publicidade indireta[xii], há, até mesmo, certa ostensividade na publicidade dos atos de registros de aquisições de imóveis rurais por estrangeiros, na medida em que as informações sobre indigitadas aquisições devem ser obrigatoriamente encaminhadas, trimestralmente, à Corregedoria Geral da Justiça dos Estados e à repartição estadual do INCRA (art. 16 do Decreto 74.965, de 1974).
No entanto, cabe lembrar que “[...] obter a certidão é direito do interessado, mas isso não significa, é claro, que ele tem direito também ao conteúdo adequado a seus interesses. A certidão será fornecida, mas contendo informações consentâneas com a legalidade que informa o registro pátrio”[xiii], o que inclui, entre outras circunstâncias, o próprio fato de os títulos estarem registrados.
Assim, ainda que o artigo 10 do decreto de 1976 imponha limites temporais à lavratura da escritura pública e ao registro dela na circunscrição imobiliária, não se pode desconsiderar que, eventualmente, alguns títulos poderão não ser submetidos a registro, o que impediria a firme fiscalização prevista na legislação.
Chama a atenção no assunto, também, a efetividade do controle que se pretende ter sobre tais negócios imobiliários (transmissão de propriedade e arrendamento rural), enquanto a legislação se mantiver voltada, em grande parte, para o registro da aquisição da propriedade imobiliária.
A atividade dos Oficiais de Registro de Imóveis é restrita ao controle da aquisição da propriedade imobiliária e seria ampliada, como aqui se sugere, para situações de arrendamento rural. Foge, evidentemente, das atribuições dos Oficiais, o exame da disponibilidade do capital social, representado por cotas ou ações das pessoas jurídicas.
Imagine-se, por exemplo, o registro de uma venda e compra em que figure como adquirente uma pessoa jurídica (sociedade empresária, por exemplo), cujo capital esteja, no momento da lavratura da escritura pública e do registro, em mãos de brasileiros. Passados alguns anos após o registro do título aquisitivo, o capital social é transmitido para pessoa natural estrangeira. Não há, na legislação nacional, qualquer dispositivo que obrigue à pessoa jurídica levar essa informação para o registro de imóveis ou, tampouco, qualquer legislação que obrigue às Juntas Comerciais informar as serventias imobiliárias sobre a transferência.
Mesmo que se pretendesse recorrer ao disposto na Lei n. 6.739, de 06 de dezembro de 1979[xiv], para se obter a declaração de nulidade de ato praticado sob o fundamento de desconformidade com a Lei n. 5.709/1971, a subsunção do fato (pretensamente nulo) à legislação de dezembro de 1979 seria duvidosa, uma vez que o registro, junto à serventia predial, estaria de acordo com os documentos vigentes à época da apresentação do título a registro[xv].
Para se tornarem efetivas a Lei de 5.709/1971 e a interpretação veiculada pela Advocacia-Geral da União, há necessidade, pois, de implementações legislativas que permitam o controle da aquisição de imóveis rurais por pessoas jurídicas estrangeiras em momentos que não se restringem ao da inscrição do título aquisitivo (ou contrato de arrendamento) na serventia. Talvez a criação de mecanismos de comunicação entre as Juntas Comerciais, os Oficiais de Registro Civil de Pessoas Jurídicas e os Oficiais de Registro de Imóveis seria o caminho para o efetivo cumprimento das Leis n. 5.709 e n. 8.629.
Assim, ao que parece, essa nova orientação, quanto à aquisição de imóveis rurais por pessoas jurídicas, ampliou as atribuições (obrigações) do Oficial de Registro de Imóveis e, ao mesmo tempo, apontou a necessidade de se ter controle sobre outros aspectos das transações que envolvam pessoas jurídicas, diante das atribuições limitadas, ao menos neste tema, que caracterizam o Registro de Imóveis.
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* Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas da Comarca de Santa Cruz das Palmeiras, Estado de São Paulo. Mestre em Direito Empresarial pela Universidade de Itaúna (Minas Gerais).
[i] ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO. Parecer n. LA-01. Brasília, 2010. p. 41. Disponível em: