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Artigo – Desjudicialização e poder negocial: O avanço dos cartórios – Por Gabriel de Sousa Pires

Análise crítica da desjudicialização via cartórios, destacando ganhos com mediação, títulos executivos e riscos à autonomia, imparcialidade e acesso à Justiça.

Introdução - Menos toga, mais caneta: O novo caminho da pacificação social

O Judiciário brasileiro está em colapso crônico. Com mais de 80 milhões de processos ativos, a promessa de uma justiça célere virou um mito burocrático. Nesse cenário, a desjudicialização deixou de ser tendência e passou a ser necessidade estrutural. E quem vem ocupando, com firmeza e técnica, o vácuo deixado pela ineficiência estatal? O cartório.

Nos últimos anos, o serviço extrajudicial passou de coadjuvante a protagonista silencioso da pacificação social. A escritura pública se tornou título executivo. O tabelião, agente de mediação. O registrador, via de regularização fundiária, inventarial e até possessória. A fé pública migrou da certidão para o acordo, e da formalidade para a solução.

Mas essa ascensão vem acompanhada de dilemas reais: o cartório pode tudo? Há risco de perda da imparcialidade? A autonomia da vontade está realmente preservada quando uma parte é hipervulnerável? O avanço extrajudicial traz ganhos inegáveis, mas exige vigilância institucional constante.

Este artigo investiga os instrumentos já disponíveis para a solução extrajudicial de conflitos, os riscos associados à sua expansão indiscriminada e os limites técnicos e jurídicos que garantem a legitimidade da atuação notarial e registral como meio alternativo de composição de controvérsias.

Porque, no fim, desjudicializar não é privatizar a justiça - é repensá-la com maturidade institucional e compromisso com a cidadania.

O que já temos: títulos executivos, mediação e solução de conflitos na prática

A desjudicialização no Brasil não é uma ideia em construção - é uma realidade normativa e operacional em pleno funcionamento. Os cartórios, amparados por leis específicas e resoluções do CNJ, já oferecem uma série de ferramentas eficazes para a resolução extrajudicial de conflitos.

Escritura pública com força de título executivo

A grande virada veio com o art. 784, III, do CPC de 2015, que reconheceu expressamente como título executivo a escritura pública lavrada com base em obrigação certa, líquida e exigível.

Isso significa que acordos firmados em cartório podem ser executados diretamente, sem necessidade de homologação judicial prévia. O processo vira cumprimento de sentença - mas sem sentença.

Exemplo: acordo de reconhecimento de dívida entre sócios, celebrado em escritura pública, com cláusula de vencimento e juros. Se inadimplido, segue direto pra execução.

Mediação e conciliação extrajudicial com respaldo normativo

A resolução 125/20 do CNJ inaugurou a política nacional de tratamento adequado de conflitos, prevendo a atuação de mediadores capacitados, inclusive no extrajudicial.

Em alguns Estados, como São Paulo e Minas Gerais, há provimentos específicos que autorizam e regulamentam mediações e conciliações em cartório, com lavratura de termos conciliatórios com valor jurídico.

O notário atua como facilitador do diálogo, desde que respeite os princípios da imparcialidade, voluntariedade e informação clara às partes.

Procedimentos substitutivos da via judicial já consolidados

Diversos atos antes privativos do Poder Judiciário hoje estão plenamente delegados aos cartórios:

Inventário e partilha extrajudicial (lei 11.441/2007)
Divórcio e separação consensual
Usucapião extrajudicial (art. 216-A da lei 6.015/73)
Adjudicação compulsória extrajudicial (lei 14.382/22)
Averbação premonitória e consolidação da propriedade fiduciária
Esses instrumentos desafogam o Judiciário, reduzem prazos e custos, e, quando bem utilizados, preservam a segurança jurídica com total aderência aos princípios constitucionais.

Até onde o cartório pode ir? Riscos à imparcialidade e à autonomia da vontade

Por mais que a via extrajudicial seja eficiente, ela não é imune a distorções. Quando o cartório passa a intermediar acordos, mediar conflitos e produzir títulos executivos, ele deixa de ser apenas um órgão formalizador e passa a atuar, ainda que indiretamente, na zona de tensão entre as partes. E isso exige cuidado redobrado com três pilares: imparcialidade, equilíbrio e real autonomia da vontade.

Imparcialidade funcional vs. prestação de serviços pagos

O notário atua como agente imparcial? Sim. Mas também é remunerado por quem demanda o serviço. Isso, em ambientes de conflito sensível, pode gerar assimetria de expectativas e dúvidas sobre neutralidade, principalmente em mediações com partes vulneráveis.

Exemplo: em um inventário extrajudicial com herdeiro hipossuficiente, há o risco da "pressa pelo consenso" atropelar questões patrimoniais legítimas.

Vulnerabilidade informacional e aparência de consenso

Nem todo acordo é voluntário só porque é assinado. O risco de adesão por desconhecimento, pressão econômica ou desinformação jurídica é real - especialmente quando uma das partes não está assistida por advogado ou não domina os efeitos do ato.

Aqui, o cartório precisa atuar com ética ativa: não basta lavrar o ato - é preciso garantir que ele seja compreendido e juridicamente sustentável.

Judicialização pós-cartório: Quando o "acordo" vira litígio

A falta de análise aprofundada de desequilíbrios durante a mediação extrajudicial pode gerar acordos frágeis, que depois vão parar na Justiça com alegações de:

Erro essencial;
Coação;
Vício de consentimento;
Simulação.
Ou seja: o cartório resolve no presente, mas transfere o litígio para o futuro - e o Judiciário volta a ser acionado, agora para desfazer o que não foi bem feito.

A desjudicialização é bem-vinda, mas não pode se tornar desproteção disfarçada de agilidade. A segurança jurídica começa na prevenção, e isso inclui reconhecer os limites éticos e funcionais da atuação extrajudicial.

Conclusão - O cartório não é tribunal, mas pode ser justiça: Com técnica, limites e coragem institucional

A desjudicialização no Brasil não é um capricho legislativo - é uma resposta concreta à saturação do sistema judicial. E o cartório, com sua capilaridade, agilidade e fé pública, assumiu o protagonismo dessa nova etapa da Justiça brasileira: resolver sem sentenciar, pacificar sem litigar, garantir direitos com menos toga e mais técnica.

Mas esse poder vem com um preço: responsabilidade institucional. O cartório não pode ser um fórum paralelo. Não pode atuar como se juiz fosse. E, sobretudo, não pode confundir agilidade com omissão, nem segurança com burocracia.

O avanço da via extrajudicial é desejável, legítimo e necessário - desde que construído sobre três pilares:

Autonomia real da vontade, com igualdade material entre as partes;
Imparcialidade funcional efetiva, mesmo diante da lógica remuneratória;
Limites jurídicos claros, para que a fé pública não vire instrumento de opressão travestido de celeridade.
No fim das contas, o cartório pode sim ser via de Justiça. Mas para isso, precisa ter mais do que estrutura - precisa ter compromisso institucional com o que a Justiça realmente significa: equidade, acesso e pacificação duradoura.

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Legislação e normas aplicáveis

BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015.

Art. 784, III - Reconhecimento da escritura pública como título executivo extrajudicial.

BRASIL. Lei nº 11.441, de 4 de janeiro de 2007.

Altera dispositivos do Código de Processo Civil, permitindo a realização extrajudicial de inventário, partilha, separação consensual e divórcio.

BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973.

Dispõe sobre os registros públicos (Lei dos Registros Públicos), com a redação dada pela Lei nº 13.105/2015 e Lei nº 14.382/2022.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010.

Institui a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário.

BRASIL. Projeto de Lei nº 6.204/2019 (Senado Federal).

Dispõe sobre a execução extrajudicial de obrigações e institui a figura do agente de execução extrajudicial. Disponível em: https://www25.senado.leg.br. Acesso em: 10 jun. 2025.

Doutrina e estudos especializados

TEPEDINO, Gustavo. O acesso à justiça e a via extrajudicial: uma releitura crítica. In: Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 20, 2019.

PEREIRA, Gustavo Fiscarelli. Cartórios como instrumentos de desjudicialização: limites éticos e jurídicos. Revista Cartórios com Você, ed. 25, 2023.

DIAS, Maria Berenice. Inventário, partilha e divórcio extrajudicial: simplificação com segurança jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.

OLIVEIRA, Carlos Fernando Mathias de Souza. A atuação do notário como agente pacificador e a mediação cartorial. Revista do CNB/SP, ed. 68, 2024.

Fonte: Migalhas