O enquadramento legal e a classificação da natureza jurídica dos contratos firmados no âmbito de uma Regularização Fundiária Urbana (Reurb), instituída pela Lei Federal nº 13.465/17, têm gerado debates cada vez maiores e trazido insegurança jurídica para as partes interessadas nos projetos e que têm a intenção de fomentar o segmento. Esse cuidado deve se dar observando-se também os impactos que a operação poderá trazer para outras partes que também poderão ser afetadas direta ou indiretamente, seja na qualidade de ocupante da terra, de detentoras de direitos sobre a área ou até mesmo titulares de domínio.
É importante contextualizar que a mesma lei federal que instituiu a Reurb também aborda diversos outros institutos, como reforma agrária e regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal, além de alterações/revogações a muitos dispositivos legais relevantes (inclusive ao próprio Código Civil). No entanto, ao explorar a Reurb nos deparamos com diversas lacunas na lei, que não se ateve a regrar elementos e critérios para salvaguardar situações nas quais poderá haver desentendimentos ou conflitos entre as partes, razão pela qual aumentam as chances de dúvidas, incertezas, insegurança e entendimentos divergentes.
A dúvida que vamos nos ater aqui, e que tem sido recorrente nos tribunais em julgamentos de demandas diversas — que, naturalmente, podem ocorrer, especialmente durante a vida útil do contrato e no prazo de cumprimento das obrigações inter-relacionadas —, é no que se refere a definição de enquadramento legal e natureza jurídica dos contratos firmados no âmbito de uma Reurb, com a tentativa de enquadrar sua estrutura, como se fosse um contrato comum e típico, em absoluta submissão ao Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Os impactos da confusão (que é puramente jurídica, mas seus efeitos refletem na prática e especialmente esfera negocial) trazem uma insegurança jurídica para as partes e entidades reguladoras interessadas nos projetos, sobretudo no que se refere às cláusulas, obrigações, prazos e condições que serão assumidos e suas consequências legais. Notem que esta questão acaba se tornando fator prejudicial à finalidade da própria criação da Regularização Fundiária pelo legislador, particularmente no âmbito do interesse social dos projetos.
Aplicação do CDC
Atualmente, não há um posicionamento jurisprudencial consolidado sobre o tema, que ainda está em fase embrionária de discussão. Contudo, os casos analisados até agora tendem a afastar a aplicação do CDC, fundamentando-se na complexidade estrutural e multidisciplinar dos contratos de Reurb, que não se enquadram nas relações de consumo típicas. Essa perspectiva reforça a observância do Código Civil, que proporciona maior liberdade contratual, essencial para adaptar os negócios às realidades específicas de cada caso e atribuir validade e eficácia aos seus termos.
Nossa percepção diante desses fatores é que essa linha de raciocínio deve ser mantida. A Reurb, por seu caráter social, técnico e multidisciplinar, distingue-se de contratações típicas reguladas pelo CDC. Diferentemente de um contrato de compra e venda ou prestação de serviços, a regularização fundiária exige competências interdisciplinares e está sujeita a normas urbanísticas, administrativas e civis, além da necessária participação ativa do Poder Público em todas as etapas do contrato.
Reconhecer que os contratos firmados para operações de Reurb devem ser disciplinados pelo Código Civil é um passo importante para garantir a validade e eficácia dos instrumentos firmados, maior liberdade de contratação das partes legitimada e sustentar a segurança jurídica da operação, além de mitigar potenciais conflitos.
Para ressaltar as diferenças entre a regulamentação contratual da Reurb e a legislação que rege transações consumeristas, é essencial ter uma visão clara de suas complexidades e fundamentos legais. O quadro abaixo resume esses pontos e as principais distinções de cada enquadramento legal.
TRANSAÇÕES SUBMETIDAS E DISCIPLINADAS PELO CDC (LEI FEDERAL N.º 8.078/90) | CONTRATAÇÕES NO ÂMBITO DE REURB (LEI FEDERAL N.º 13.465/17) | |
NECESSIDADE DE AÇÃO ESTATAL NA CONSTITUIÇÃO E DEMAIS ETAPAS DA TRANSAÇÃO | Não.
Contrato firmado diretamente entre particulares. |
Sim.
Embora a sua formalização contratual se dê de maneira particular, o processo de regularização e o sucesso das etapas vinculadas no instrumento firmado dependem de aprovação dos entes públicos competentes (as obrigações assumidas não dependem exclusivamente da sociedade ou organização contratada, mas da ação estatal).
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FINALIDADE | Nos contratos de consumo, a obrigação é de resultado: o consumidor paga e espera receber o que foi ajustado. | A obrigação é de meio, pois sua execução e conclusão dependem de fatores externos. |
“TARGET “ | Nas relações de consumo o “cliente” é o destinatário final, adquire bens ou serviços e deve receber o que foi negociado nos termos do contrato firmado. | O “cliente” não é o destinatário final, pois neste formato de negócio existem implicações jurídicas mais amplas (que não se enquadraram nas restrições/limitações do CDC) |
PRESTAÇÃO*
*elemento constitutivo da obrigação assumida (elemento objetivo ou material); vinculado ao objeto contratado. |
Contratos sob o CDC visam proteger consumidores em relações típicas de consumo. | Envolvem questões jurídicas complexas relacionadas à regularização de propriedades, direitos relacionados à terra
e regularização fundiária. |
EXTENSÃO DISCIPLINAR | CDC. | Seu enquadramento multidisciplinar e mais complexo, envolve questões de direito imobiliário, urbanístico e administrativo/regulatório. |
FATO JURÍDICO*
*elemento exterior à relação obrigacional; causa/ fonte da obrigação cuja relação contratual dele emerge. |
Trazer equilíbrio para a relação entre consumidor e fornecedor, a fim de proteger a parte (presumivelmente) mais vulnerável de práticas abusivas e garantir seu acesso às informações detalhadas sobre o que objeto da contratação. | Incentivar e promover a regularização de imóveis com a formalização legal de propriedades e adequação da terra às normas urbanísticas, a fim de garantir segurança jurídica à sociedade e fomentar a inclusão social. |
SUJEITOS DA RELAÇÃO OBRIGACIONAL*
*elemento subjetivo da relação contratual. |
“Fornecedor”: parte que fornece o produto ou serviço; e
“Consumidor” (final): a pessoa física que adquire ou utiliza o produto ou serviço. |
“Entidades de Regularização”: sociedade empresária ou organização especializada em regularização fundiária, que presta serviços para facilitar a formalização e regularização de propriedade.
“Cidadão”: Indivíduo (ou uma coletividade de pessoas) que tem por objetivo regularizar a situação de determinada área (imóvel). pois a relação vai além da simples transação de bens ou serviços. |
REGULAMENTAÇÃO | LEGISLAÇÃO APLICÁVEL*
*especificidade da norma. |
CDC | Código Civil |
É essencial que as partes tenham consciência de que é necessário adotar um cuidado especial, sobretudo na fase pré-contratual, na condução e elaboração de todos os instrumentos inerentes ao projeto de Reurb, com assessoria jurídica especializada e sob a ótica de cada tipo de transação e suas particularidades.
Os instrumentos firmados e acordos mantidos devem ser elaborados de forma a garantir a validade e eficácia dos seus termos, se utilizar da liberdade que o Código Civil permite para mitigar situações de potencial conflito entre as partes e, com isso, ter a segurança jurídica necessária para proteção de seus direitos.
Fonte: Consultor Jurídico (ConJur)