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Artigo – Regularização fundiária urbana (Reurb) e sua (eventual) submissão ao CDC – Por Giselle Vergal Lopes

O enquadramento legal e a classificação da natureza jurídica dos contratos firmados no âmbito de uma Regularização Fundiária Urbana (Reurb), instituída pela Lei Federal nº 13.465/17, têm gerado debates cada vez maiores e trazido insegurança jurídica para as partes interessadas nos projetos e que têm a intenção de fomentar o segmento. Esse cuidado deve se dar observando-se também os impactos que a operação poderá trazer para outras partes que também poderão ser afetadas direta ou indiretamente, seja na qualidade de ocupante da terra, de detentoras de direitos sobre a área ou até mesmo titulares de domínio.

É importante contextualizar que a mesma lei federal que instituiu a Reurb também aborda diversos outros institutos, como reforma agrária e regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal, além de alterações/revogações a muitos dispositivos legais relevantes (inclusive ao próprio Código Civil). No entanto, ao explorar a Reurb nos deparamos com diversas lacunas na lei, que não se ateve a regrar elementos e critérios para salvaguardar situações nas quais poderá haver desentendimentos ou conflitos entre as partes, razão pela qual aumentam as chances de dúvidas, incertezas, insegurança e entendimentos divergentes.

A dúvida que vamos nos ater aqui, e que tem sido recorrente nos tribunais em julgamentos de demandas diversas — que, naturalmente, podem ocorrer, especialmente durante a vida útil do contrato e no prazo de cumprimento das obrigações inter-relacionadas —, é no que se refere a definição de enquadramento legal e natureza jurídica dos contratos firmados no âmbito de uma Reurb, com a tentativa de enquadrar sua estrutura, como se fosse um contrato comum e típico, em absoluta submissão ao Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Os impactos da confusão (que é puramente jurídica, mas seus efeitos refletem na prática e especialmente esfera negocial) trazem uma insegurança jurídica para as partes e entidades reguladoras interessadas nos projetos, sobretudo no que se refere às cláusulas, obrigações, prazos e condições que serão assumidos e suas consequências legais. Notem que esta questão acaba se tornando fator prejudicial à finalidade da própria criação da Regularização Fundiária pelo legislador, particularmente no âmbito do interesse social dos projetos.

Aplicação do CDC
Atualmente, não há um posicionamento jurisprudencial consolidado sobre o tema, que ainda está em fase embrionária de discussão. Contudo, os casos analisados até agora tendem a afastar a aplicação do CDC, fundamentando-se na complexidade estrutural e multidisciplinar dos contratos de Reurb, que não se enquadram nas relações de consumo típicas. Essa perspectiva reforça a observância do Código Civil, que proporciona maior liberdade contratual, essencial para adaptar os negócios às realidades específicas de cada caso e atribuir validade e eficácia aos seus termos.

Nossa percepção diante desses fatores é que essa linha de raciocínio deve ser mantida. A Reurb, por seu caráter social, técnico e multidisciplinar, distingue-se de contratações típicas reguladas pelo CDC. Diferentemente de um contrato de compra e venda ou prestação de serviços, a regularização fundiária exige competências interdisciplinares e está sujeita a normas urbanísticas, administrativas e civis, além da necessária participação ativa do Poder Público em todas as etapas do contrato.

Reconhecer que os contratos firmados para operações de Reurb devem ser disciplinados pelo Código Civil é um passo importante para garantir a validade e eficácia dos instrumentos firmados, maior liberdade de contratação das partes legitimada e sustentar a segurança jurídica da operação, além de mitigar potenciais conflitos.

Para ressaltar as diferenças entre a regulamentação contratual da Reurb e a legislação que rege transações consumeristas, é essencial ter uma visão clara de suas complexidades e fundamentos legais. O quadro abaixo resume esses pontos e as principais distinções de cada enquadramento legal.

TRANSAÇÕES SUBMETIDAS E DISCIPLINADAS PELO CDC (LEI FEDERAL N.º 8.078/90) CONTRATAÇÕES NO ÂMBITO DE REURB (LEI FEDERAL N.º 13.465/17)
NECESSIDADE DE AÇÃO ESTATAL NA CONSTITUIÇÃO E DEMAIS ETAPAS DA TRANSAÇÃO Não.

Contrato firmado diretamente entre particulares.

Sim.

Embora a sua formalização contratual se dê de maneira particular, o processo de regularização e o sucesso das etapas vinculadas no instrumento firmado dependem de aprovação dos entes públicos competentes (as obrigações assumidas não dependem exclusivamente da sociedade ou organização contratada, mas da ação estatal).

FINALIDADE Nos contratos de consumo, a obrigação é de resultado: o consumidor paga e espera receber o que foi ajustado. A obrigação é de meio, pois sua execução e conclusão dependem de fatores externos.
“TARGET Nas relações de consumo o “cliente” é o destinatário final, adquire bens ou serviços e deve receber o que foi negociado nos termos do contrato firmado. O “cliente” não é o destinatário final, pois neste formato de negócio existem implicações jurídicas mais amplas (que não se enquadraram nas restrições/limitações do CDC)
PRESTAÇÃO*

*elemento constitutivo da obrigação assumida (elemento objetivo ou material); vinculado ao objeto contratado.

Contratos sob o CDC visam proteger consumidores em relações típicas de consumo. Envolvem questões jurídicas complexas relacionadas à regularização de propriedades, direitos relacionados à terra

e regularização fundiária.

EXTENSÃO DISCIPLINAR CDC. Seu enquadramento multidisciplinar e mais complexo, envolve questões de direito imobiliário, urbanístico e administrativo/regulatório.
FATO JURÍDICO*

*elemento exterior à relação obrigacional; causa/ fonte da obrigação cuja relação contratual dele emerge.

Trazer equilíbrio para a relação entre consumidor e fornecedor, a fim de proteger a parte (presumivelmente) mais vulnerável de práticas abusivas e garantir seu acesso às informações detalhadas sobre o que objeto da contratação. Incentivar e promover a regularização de imóveis com a formalização legal de propriedades e adequação da terra às normas urbanísticas, a fim de garantir segurança jurídica à sociedade e fomentar a inclusão social.
SUJEITOS DA RELAÇÃO OBRIGACIONAL*

*elemento subjetivo da relação contratual.

Fornecedor”: parte que fornece o produto ou serviço; e

Consumidor” (final): a pessoa física que adquire ou utiliza o produto ou serviço.

Entidades de Regularização”: sociedade empresária ou organização especializada em regularização fundiária, que presta serviços para facilitar a formalização e regularização de propriedade.

Cidadão”: Indivíduo (ou uma coletividade de pessoas) que tem por objetivo regularizar a situação de determinada área (imóvel). pois a relação vai além da simples transação de bens ou serviços.

REGULAMENTAÇÃO | LEGISLAÇÃO APLICÁVEL*

*especificidade da norma.

CDC Código Civil

É essencial que as partes tenham consciência de que é necessário adotar um cuidado especial, sobretudo na fase pré-contratual, na condução e elaboração de todos os instrumentos inerentes ao projeto de Reurb, com assessoria jurídica especializada e sob a ótica de cada tipo de transação e suas particularidades.

Os instrumentos firmados e acordos mantidos devem ser elaborados de forma a garantir a validade e eficácia dos seus termos, se utilizar da liberdade que o Código Civil permite para mitigar situações de potencial conflito entre as partes e, com isso, ter a segurança jurídica necessária para proteção de seus direitos.

Fonte: Consultor Jurídico (ConJur)