A judicialização na saúde suplementar: Causas, impactos e caminhos para a racionalização.
A crescente judicialização na saúde suplementar tem se tornado a preocupação central para operadoras de planos de saúde, gestores públicos e o próprio Poder Judiciário. O aumento exponencial do número de demandas judiciais no setor reflete não apenas a busca por direitos individuais, mas também revela falhas estruturais que comprometem a sustentabilidade do sistema. Os altíssimos custos advindos dessas ações impactam diretamente ambos os setores privado e público, onerando toda a sociedade. Não se discute aqui, importante já deixar claro, o sagrado e constitucional direito de ação de todo cidadão que tenha o seu legítimo direito violado.
Conforme destacado pelo ministro Antonio Saldanha, do STJ, são mais de 800 operadoras de planos de saúde em atuação no país, atendendo cerca de 50 milhões de usuários. Se o setor privado colapsar devido aos prejuízos financeiros decorrentes da litigiosidade exacerbada, o SUS sofrerá impacto drástico, com consequências imprevisíveis para a população. Estima-se que, entre 2020 e 2023, o crescimento da judicialização no setor foi de 60%, gerando prejuízo de aproximadamente R$ 17,5 bilhões, dos quais R$ 8 bilhões, diretamente atribuídos a tais ações.
O fenômeno da judicialização da saúde suplementar decorre de uma equação complexa que envolve diversos fatores. A expansão do acesso à Justiça desempenha um papel crucial. A facilidade de ingresso com ações judiciais, aliada à atuação de escritórios com atuação predatória em demandas de massa, ainda muito timidamente contidas e penalizadas, contribui para a ampliação do contencioso. Também, em outro cenário, o crescente avanço da medicina e o desenvolvimento de novas tecnologias médicas e farmacêuticas criam expectativas sobre tratamentos inovadores, muitas vezes de alto custo, que não se encontram disponíveis no rol de procedimentos obrigatórios estabelecido pela ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar.
Conforme apontado em estudo de 2022, questões contratuais, negativas de procedimentos e fornecimento de órteses e próteses estão entre as principais causas da judicialização na saúde suplementar. Outrossim, os contratos anteriores à lei 9.656, de 3/6/1998, embora representem apenas 3% da carteira de beneficiários, correspondem a 37,4% das ações judiciais, evidenciando a necessidade de regulação mais robusta e eficiente do setor.1
A atuação dos magistrados frente a essas questões também merece análise. O Judiciário, ao se deparar com demandas que envolvem a saúde, enfrenta um dilema entre garantir o direito à vida e à dignidade dos pacientes e, ao mesmo tempo, preservar o equilíbrio econômico das operadoras. Em muitos casos, a tendência é decidir favoravelmente ao consumidor, ignorando aspectos de viabilidade financeira e o impacto sistêmico das decisões. Medicamentos com valores exorbitantes, como aqueles que atingem as cifras de R$ 17 milhões por paciente, exemplificam situações em que a concessão de tratamentos por meio de ações judiciais pode comprometer a estabilidade econômica das empresas do setor.2
Outro aspecto relevante a ser considerado é a ocorrência de fraudes no setor da saúde suplementar. A CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito das Próteses, por exemplo, revelou esquemas fraudulentos envolvendo a prescrição de próteses e órteses sem necessidade real, apenas para beneficiar grupos específicos da cadeia de fornecimento.3 A indústria farmacêutica também é frequentemente apontada como um agente que incentiva práticas questionáveis, oferecendo premiações e benefícios a profissionais de saúde para que prescrevam determinados medicamentos e equipamentos.
Tais práticas não apenas elevam os custos dos planos de saúde, como também contribuem para a judicialização, uma vez que o eventual beneficiário, ao se deparar com a negativa de um procedimento prescrito, busca a intervenção do Judiciário para sua obtenção. Assim, a interação entre esses fatores cria um ciclo vicioso de litígios, prejudicando operadoras e consumidores.
Diante desse cenário desafiador, a busca por soluções estruturais é imprescindível. Algumas iniciativas já implementadas no setor público podem servir de modelo para a saúde suplementar. O Fórum Nacional de Saúde e os comitês estaduais de saúde têm se mostrado eficazes na criação de espaços de discussão e mediação entre os diversos atores envolvidos, permitindo que demandas sejam resolvidas antes de alcançar o Judiciário.
A utilização da medicina baseada em evidências também surge como uma estratégia fundamental para qualificar as decisões judiciais. A implementação de um "portal da transparência" para registrar benefícios recebidos por profissionais de saúde, bem como a análise técnica da pertinência de tratamentos pleiteados, pode auxiliar na redução de litígios baseados em prescrições de duvidosa credibilidade.
Sobretudo, o fortalecimento de mecanismos de resolução extrajudicial de conflitos, como a mediação e a conciliação, representa uma alternativa viável para evitar o acirramento da litigiosidade. Nesse sentido, a atuação das agências reguladoras deve ser revisitada, de modo a torná-las instâncias proativas na redução do contencioso.
Nesse particular, a atuação de escritórios especializados em suporte jurídico estratégico para operadoras de saúde suplementar é um diferencial digno de registro. Além da representação em litígios judiciais e administrativos, escritórios qualificados desempenham papel fundamental na garantia da conformidade regulatória, na segurança contratual e na oferta de previsibilidade econômica para as operadoras.
A recente decisão do TJ/MG, no âmbito do IRDR - Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas relativo ao Tema 91, estabeleceu que o interesse de agir nas demandas consumeristas de natureza prestacional depende da comprovação de tentativa prévia de solução extrajudicial da controvérsia. Esse entendimento reforça a necessidade de atuação preventiva dos escritórios de advocacia, auxiliando as operadoras na criação de mecanismos eficazes de atendimento ao consumidor, visando reduzir o passivo judicial.
A implementação de estratégias jurídicas baseadas no citado IRDR possibilita às operadoras maior segurança no tratamento de demandas e na definição de critérios claros para a negativa de procedimentos que não estejam em conformidade com as diretrizes da ANS, com reflexos diretos no menor risco de condenações e na maior previsibilidade da gestão financeira.
Acrescente-se que o suporte jurídico especializado permite às operadoras adequar seus contratos e regulamentos internos às constantes mudanças legislativas e jurisprudenciais, garantindo que seus modelos de negócio estejam alinhados às melhores práticas do setor. A assessoria estratégica também viabiliza o desenvolvimento de protocolos internos para facilitar a comprovação do atendimento prévio das reclamações administrativas, minimizando riscos processuais.
Vejo que a parceria entre operadoras e escritórios com atuação dedicada ao setor de saúde contribui para um modelo de atuação que harmoniza os interesses dos consumidores e dos agentes econômicos, promovendo o equilíbrio financeiro do setor e a mitigação da litigiosidade abusiva. Com essa abordagem, é possível edificar um ambiente mais seguro e eficiente para a saúde suplementar no Brasil.
A judicialização da saúde suplementar, portanto, é um desafio complexo que exige soluções sistêmicas e racionais. A sustentabilidade do setor depende da implementação de políticas públicas que promovam o equilíbrio entre os direitos dos consumidores e a viabilidade econômica das operadoras.
Não se deve ignorar que a crescente judicialização da saúde suplementar no Brasil gera, igualmente, impactos significativos para o sistema de justiça e para a economia do país, fragilizando, por conseguinte, as premissas de equidade e eficiência na distribuição dos serviços de saúde no país.
É cediço que a ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar desempenha um papel fundamental na regulação do setor e na prevenção de litígios. No entanto, é necessário aprimorar os mecanismos de regulação para proporcionar maior segurança jurídica e previsibilidade para beneficiários e operadoras. Uma das principais questões que impulsionam a judicialização é a interpretação do rol de procedimentos da ANS, que define os serviços mínimos obrigatoriamente cobertos pelos planos de saúde.
Para minimizar conflitos, é essencial que a ANS estabeleça critérios mais objetivos e transparentes na inclusão e revisão de procedimentos no rol de cobertura. Além disso, a criação de mecanismos de revisão periódica e dinâmica, com a participação de especialistas e representantes da sociedade civil, pode evitar interpretações divergentes e reduzir a necessidade de ações judiciais.
A mediação e a arbitragem, por sua vez, são instrumentos eficazes para resolver disputas sem a necessidade de intervenção do Judiciário. No Brasil, algumas operadoras de planos de saúde já adotam esses mecanismos, mas ainda de forma limitada. Para que a resolução extrajudicial seja amplamente utilizada, é necessário que a ANS e o Poder Judiciário incentivem sua adoção por meio de normativas específicas.
A criação de câmaras técnicas de mediação, compostas por profissionais especializados em Saúde e Direito, pode oferecer soluções mais rápidas e eficientes para os beneficiários. Essas câmaras poderiam atuar em parceria com órgãos de defesa do consumidor e com as instâncias estaduais do Ministério Público, garantindo um atendimento mais ágil e acessível.
A aplicação da tecnologia à gestão das demandas judiciais, desde a automação de processos à utilização de inteligência artificial, também rende importante auxílio à prevenção e contenção de conflitos no setor de saúde suplementar. Com efeito, ferramentas de análise preditiva são capazes de identificar padrões de reclamações e antecipar soluções para problemas recorrentes.
Outra contribuição qualificada ao monitoramento dos índices de judicialização e à resolução das demandas está relacionada à criação de plataforma digital integrada, que conecte operadoras, beneficiários, ANS e Judiciário. A plataforma prezaria pela transparência e pela aferição da conformidade dos benefícios pleiteados, antes da sua submissão ao Judiciário, como instrumento equivalente a uma "segunda opinião" médica automatizada.
Um dos desafios da saúde suplementar é a falta de informação dos beneficiários sobre seus direitos e deveres. Muitas demandas judiciais podem ser evitadas com a adoção de critérios que promovam maior clareza sobre as regras de cobertura, reajustes e condições contratuais. Campanhas educativas promovidas pela ANS, associações de consumidores e pelo próprio setor podem contribuir, efetivamente, para a redução da litigiosidade.
Além disso, a capacitação dos magistrados sobre questões técnicas relacionadas à saúde suplementar é fundamental para que as decisões judiciais sejam fundamentadas de forma coerente com a realidade da saúde no Brasil.
Note-se que a judicialização observada em números crescentes na área da saúde é uma prática comum entre cidadãos com melhor condição econômica,4 o que desafia a lógica da universalização do acesso ao Judiciário que, a rigor, encontra-se ocupado por demandas deflagradas por parcela reduzida da população.
Para que a saúde suplementar seja viável a longo prazo, urge uma revisão profunda das causas que atormentam o setor, a partir de uma visão sistêmica e do reforço do elo entre os segmentos público e privado. Atualmente, não há evidências de uma integração formal e abrangente entre as plataformas de telessaúde do SUS e as operadoras de planos de saúde no Brasil.
Embora o SUS apresente iniciativas próprias, como o Programa Telessaúde Brasil Redes, que visa apoiar as equipes de atenção básica por meio de teleconsultorias e educação permanente,5 a sustentabilidade dessas ações é gravemente prejudicada pela ausência de mecanismos válidos de integração com o setor privado.
Durante a pandemia de covid-19, foi possível assistir a tímida aceleração na transformação digital da saúde.6 Entretanto, persiste a carência de uma integração entre as plataformas de telessaúde do SUS e as das operadoras privadas, que poderia otimizar recursos e evitar a sobrecarga do sistema público.
Conclui-se que a resposta à judicialização da saúde suplementar exige soluções articuladas e inovadoras. O fortalecimento da regulação na definição bem delineada dos direitos e deveres dos beneficiários, a ampliação dos mecanismos extrajudiciais especializados na resolução de litígios na área de saúde, o uso da tecnologia em prol da transparência e da verificação da consistência das reclamações são algumas medidas para reduzir a litigiosidade, mas essenciais para garantir um sistema de saúde mais eficiente e sustentável.
A construção de um novo pacto social entre beneficiários, operadoras, Poder Judiciário e órgão regulador é a única equação apta a equilibrar direitos individuais e coletivos, assegurando que a saúde suplementar atenda com qualidade e acessibilidade a milhões de brasileiros.
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1 SILVA, Andréa Ferreira da; MOTA, Eduardo Luiz da Costa; ARAÚJO, Francisco de Assis; MACHADO, José dos Reis; LIMA, Luciana de Oliveira; LIMA, Ricardo Alexandre de Mendonça. A judicialização na saúde suplementar: uma avaliação das ações judiciais contra uma operadora de planos de saúde, Belo Horizonte, Minas Gerais, 2010-2017. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 46, n. 134, p. 566-579, jul./set. 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/ 79PXPwMTb8XnzD3396jvJqk/?lang=pt. Acesso em: 19 fev. 2025.
2 O medicamento Hemgenix, utilizado no tratamento da hemofilia B, tem custo aproximado de US$ 3,5 milhões, equivalente a cerca de R$ 17,7 milhões (disponível em: https://ndmais.com.br/saude/ate-r-177-milhoes-veja-lista-dos-remedios-mais-caros-do-mundo. Acesso em: 19 fev. 2025). Além disso, o Elevidys, aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para tratar a distrofia muscular de Duchenne, pode custar até R$ 20 milhões no Brasil (disponível em: https://g1.globo.com/saude/noticia/2025/01/29/remedio-mais-caro-do-brasil-custa-ate-r-20-milhoes-e-nao-tem-previsao-para-chegar-ao-sus.ghtml. Acesso em: 19 fev. 2025). Esses valores ilustram os desafios enfrentados pelo sistema de saúde suplementar diante de tratamentos de alto custo.
3 Conforme relatório final de julho de 2015 do deputado federal André Fufuca (PEN-MA), emitido no âmbito da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara dos Deputados que investigou a Máfia das Órteses e Próteses (disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1579578. Acesso em: 19 fev. 2025).
4 SILVA, Andréa Ferreira da; MOTA, Eduardo Luiz da Costa; ARAÚJO, Francisco de Assis; MACHADO, José dos Reis; LIMA, Luciana de Oliveira; LIMA, Ricardo Alexandre de Mendonça. Op. cit.
5 Conforme notícia disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/seidigi/sus-digital/telessaude. Acesso em: 19 fev. 2025.
6 SILVA, Adriano Massuda; MACHADO, Cristiani Vieira; ANDRADE, Gabriela Ramos de; LIMA, Luciana Dias de; ALVES, Maria Tereza. Teleassistência no Sistema Único de Saúde brasileiro: onde estamos e para onde vamos? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 29, n. 7, p. 1783-1794, jul. 2024. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/ WHgTDFZpBZCLk9kNrMdStbH. Acesso em: 19 fev. 2025.
Fonte: Migalhas