Uma análise com base no projeto da nova Lei de Execução Fiscal (PL 2488/22)
A EC 132/23, responsável por concretizar a reforma tributária, trouxe alterações que impactam não apenas no âmbito material do sistema tributário nacional, mas também no ambiente processual.
Entre as novidades está o princípio da simplicidade, que passa a ter assento constitucional e consistir em vetor para o legislador infraconstitucional e para os aplicadores do direito tributário em geral.
Nesse cenário, a questão que ora se apresenta é como esse princípio pode ser aplicado no contexto da cobrança extrajudicial da dívida ativa pelas Fazendas Públicas, especificamente no que toca à adoção de um modelo de execução fiscal fora da via judiciária, sem se desconsiderar as complexidades inerentes ao procedimento exacional.
Para examiná-la, serão utilizadas como base as disposições do PL 2488/22, que disciplina a cobrança judicial e extrajudicial do crédito tributário e pretende revogar a Lei 6.830/80[1].
Em textos anteriores publicados nesta coluna, desenvolveram-se, incialmente, os contornos da aplicação do princípio da simplicidade ao ambiente processual tributário[2], bem como, num segundo momento, foram analisados os modelos propostos de execução fiscal extrajudicial no ambiente legislativo[3].
Dando sequência ao estudo do tema, é oportuno demonstrar, brevemente, onde estamos, para que possamos compreender onde devemos chegar. Assim, vale observar que o STF deu o primeiro passo em direção à racionalização na tramitação das execuções fiscais no âmbito do Judiciário, quando, no julgamento do Tema 1.184 de repercussão geral (RE 1.355.208/SC), em 19/12/2023, a corte determinou a extinção de execuções fiscais de baixo valor sem bens penhorados e condicionou, ainda, o ajuizamento de novas execuções à previa adoção de tentativas de conciliação e protesto do título. Na mesma linha, foi editada a Resolução 547/2024 do CNJ.
A partir daí, surgiram diversos acordos entre diferentes órgãos com o intuito de se adequarem à nova realidade de racionalização da cobrança, como é o caso do Acordo de Cooperação Técnica (ACT) firmado entre o CNJ, o TJSP, a PGE-SP e o TCE-SP, e que foi responsável pela extinção de quase 2 milhões de execuções fiscais entre os meses de janeiro e agosto de 2024[4].
O recado é claro: a cobrança dos créditos tributários diretamente pelos entes e a subsidiariedade da instância judiciária passam a ser a tônica.
Nesse sentido, o ponto do PL que trata da execução fiscal extrajudicial é, sem dúvidas, o de maior inovação e está em plena consonância ao contexto exposto, indo ao encontro da necessidade de modernização e de simplificação do sistema de cobrança, reconhecida pelo próprio Judiciário.
Nesse ambiente, o texto original do projeto, no art. 19 e seguintes, previa um rito próprio para as execuções fiscais de créditos de pequeno valor, que seriam conduzidas pela Advocacia Pública de cada ente. Contudo, nesse aspecto, o texto inicial do projeto foi substancialmente modificado e, segundo a atual redação, tal procedimento passa a ser realizado perante os tabelionatos de protesto. Entendemos, porém, que a solução mais adequada pode estar no caminho do meio. Explica-se.
Numa primeira análise, constata-se que a Fazenda Pública, enquanto detentora do crédito tributário e por ter pleno conhecimento a seu respeito, assim como, muitas vezes, até da realidade patrimonial do devedor, tem melhores condições de promover a sua cobrança.
Além disso, já há uma sistemática administrativa prévia na tentativa de recuperação da dívida, como é o caso da utilização dos estímulos negativos ao pagamento, a exemplo do protesto. Ao lado deles, existem os meios alternativos de composição de litígios, como a transação, que estão à disposição do contribuinte-devedor e já são utilizados por diversos entes federados, oferecendo diferentes oportunidades de autorregularização (sistema multiportas).
Com isso, o citado procedimento seguiria para uma fase seguinte – a execução extrajudicial -, esgotadas todas as tentativas anteriores de satisfação do crédito tributário, apenas, pois, como medida residual e contínua. Haveria, nesse sentido, além da observância ao princípio da simplicidade, a compatibilização com os princípios da cooperação e da eficiência.
A matéria exige, então, um amadurecimento na percepção da Administração Pública não somente enquanto credora, mas, sobretudo, como garantidora dos direitos individuais, sendo a proteção do interesse público o seu norte principal e pressuposto para qualquer tentativa de simplificação. Sobre isso, inclusive, não é à toa que a Advocacia Pública se insere como função essencial à justiça na CF/88 e é essa a postura que vem adotando cada vez mais.
A previsão normativa do pedido de revisão de dívida inscrita (PRDI) é ilustrativa desse quadro, tendo sido inaugurada pela Fazenda Nacional por meio da Portaria PGFN 33/2018 e que possibilita a reanálise dos critérios de liquidez, certeza e exigibilidade, hipótese em que há um controle de legalidade extraordinário a partir da provocação do devedor.
Dessa forma, confere maior legitimidade ao procedimento de inscrição ao dotá-lo de bilateralidade e mostra a preocupação fazendária com o devido processo legal no âmbito administrativo, vindo a se tornar uma experiência exitosa e ter previsão no art. 15 do PL ora sob discussão.
Por outro lado, não se desconhece a elevada disparidade existente entre os diversos entes, sobretudo os pequenos e médios estados e municípios, já que há 5.570 municípios brasileiros, além dos 26 estados e o Distrito Federal, não sendo demais imaginar que grande parte deles pode não ter a estrutura suficiente para tramitar administrativamente execuções fiscais de forma eficiente.
Com base nisso, deve-se ter em mente que o princípio da simplicidade não pode ser confundido com a superficialidade, e a sua principal finalidade é obter um resultado integral e útil a ambas as partes, de maneira que dificilmente solução única será capaz de se adequar à referida heterogeneidade estrutural.
Destarte, para os casos em que o ente federado não detenha configuração interna suficiente e até que essa realidade porventura se altere, a tramitação das execuções fiscais no âmbito dos tabelionatos de protesto pode ser uma solução viável, embora a alteração do órgão de tramitação, por si, só não garanta o aumento da eficiência, de modo que deve haver um cuidadoso acompanhamento dos resultados.
Ao revés, para os entes federados que já estão bem organizados em sua cobrança extrajudicial, como a União, o estado de São Paulo e diversos outros, a tramitação desses executivos sob responsabilidade do respectivo órgão de Advocacia Pública se mostra uma decisão mais acertada e que gera um incremento de simplificação e eficiência. Melhor seria, claramente, que o texto do PL 2488/22 conferisse essa opção de escolha, prestigiando a autonomia do ente e se adequando aos diferentes contextos.
Ademais, outro ponto que merece amadurecimento é quanto à imposição de um limite máximo de valor para a utilização de tal procedimento, que no projeto se estabeleceu em 60 salários mínimos para o âmbito federal. Todavia, se a direção a ser seguida é a do aumento da simplicidade e da eficiência, em que medida o critério valorativo caminha nesse sentido?
Ao contrário, com muito mais razão a opção extrajudicial deveria se aplicar também aos créditos de maior valor, já que são os que, justamente, demandam maior eficiência na cobrança. Não faz sentido, assim, excluir da sistemática mais eficiente os créditos de valor mais elevado.
Ante o exposto, o princípio da simplicidade tem plena aplicação no âmbito da cobrança do crédito tributário e a adoção de um modelo de execução fiscal extrajudicial está em conformidade com o seu teor.
No entanto, por ter um conteúdo relativo, que depende do parâmetro comparativo, deve se adaptar às diferentes situações, de sorte que seria mais oportuno se o projeto trouxesse duas alternativas: a tramitação processual sob responsabilidade da respectiva Advocacia Pública ou das serventias extrajudiciais, bem como se fosse majorado o valor do teto para a cobrança, ao menos em relação aos entes bem estruturados para o procedimento exacional administrativo.
[1] Tendo como referência o texto até então aprovado pela comissão de juristas no Senado Federal, disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9636053&ts=1723670335030&disposition=inline.
[2] Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/pauta-fiscal/a-simplicidade-no-sistema-processual-tributario-do-que-estamos-falando-07072024.
[3] Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/pauta-fiscal/simplicidade-como-orientadora-da-escolha-do-modelo-de-execucao-fiscal-administrativa
[4] Disponível em https://cnj.jus.br/execucao-fiscal-eficiente-quase-2-milhoes-de-processos-extintos-em-2024/.
Fonte: JOTA