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Artigo – Princípio da prioridade e o provimento CNJ 188/24 – Por Jean Mallmann

Crítica ao § 3º do art. 320-I do CNN (prov. CNJ 188/24): Viola a prioridade registral, compromete a segurança jurídica e contraria normas legais estabelecidas.

Em 10 de dezembro de 2024, foi publicado o provimento 188/24, do CNJ. Esse provimento alterou o CNN/CN/CNJ-Extra - Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça para dispor sobre o funcionamento do novo sistema da CNIB 2.0 - Central Nacional de Indisponibilidade de Bens.

Embora o texto do provimento tenha dispositivos importantes e que contribuem para a atuação dos serviços notariais e registrais e do Poder Público, não se pode deixar de notar a "novidade" mais marcante e extremamente prejudicial à segurança jurídica: o art. 320-I, § 3º, o qual prevê uma regra totalmente em desacordo com a legislação Federal. Dispõe referido dispositivo da norma administrativa que: "A superveniência de ordem de indisponibilidade impede o registro de títulos, ainda que anteriormente prenotados, salvo exista na ordem judicial previsão em contrário".

A específica previsão regulatória expedida pelo CNJ é expressamente contrária a diversos dispositivos legais.

O art. 1.246 do Código Civil, por exemplo, é expresso ao estabelecer que "O registro é eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro, e este o prenotar no protocolo". Na prática, a legislação civil prevê o momento em que o registro é considerado efetivado, estabelecendo, por ficção jurídica, que os efeitos registrais retroagem ao momento do protocolo. Em outras palavras, o ato registral, ainda que realizado materialmente em momento posterior (digitado no computador, impresso e assinado), tem seus efeitos a partir da prenotação (protocolo) no Registro de Imóveis, motivo pelo qual qualquer ato ou fato contraditório que seja protocolado posteriormente é ineficaz.

Trata-se de algo até então pacífico na doutrina, na jurisprudência e, sobretudo, na legislação.

A questão se resolve no plano da eficácia, isto é, das consequências dos atos jurídicos, estabelecendo o protocolo como momento exato em que ocorre a constituição, modificação ou extinção de direitos sobre imóveis, sendo irrelevante o dia e a hora da realização do ato material do registro. Dessarte, o Código Civil expressamente estabelece um "corte temporal" objetivo para o momento da eficácia dos atos registrais: o protocolo. Tal previsão se dá com o intuito de respeitar a segurança jurídica dos atos e negócios encetados e levados ao fólio real.

O disposto no Código Civil protege, em especial, a segurança jurídica dinâmica do registro imobiliário, de modo que a transmissão de direitos relativos a bens imóveis seja efetuada de maneira segura, preservando que o adquirente de direitos tenha garantido que a sua aquisição encontrará a eficácia jurídica esperada e resguardando a segurança do tráfico negocial.

Ademais, qualquer mudança do momento da eficácia dos atos registrais somente poderia ser objeto de norma de igual hierarquia ou de hierarquia superior ao Código Civil (lei stricto sensu). E, como é cediço, as normas inferiores que disponham em sentido contrário às de hierarquia superiores são inválidas, eivadas de nulidade absoluta. Eis o caso, em específico, do § 3º do art. 320-I do CNN/CN/CNJ-Extra, ato administrativo que prevê um regulamento de caráter procedimental, e que serve para explicitar os meios de realização dos procedimentos regulados, não podendo inovar ou contrariar a lei que já normatiza sobre o tema.

Neste sentido, é de se reconhecer que, com o intuito regulatório, o CNJ não só inovou no procedimento, mas "legislou" sobre o direito material dos usuários dos serviços de registro de imóveis. Como se vê, indiscutivelmente, o CNJ aprovou um preceptivo regulamentar totalmente contra legem, o qual, se, em tese, passível de aplicação, alteraria os direitos subjetivos reconhecidos em lei para os proprietários e detentores de outros direitos sobre imóveis, violando assim, inclusive, o princípio da legalidade insculpido no art. 5º, inc. II, da Constituição Federal ("ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei").

Além do Código Civil, a lei 6.015/73 (LRP - Lei de Registros Públicos) também teve suas prescrições legais desrespeitadas pelo disposto no regulamento administrativo do CNIB. O art. 186 da LRP determina que "O número de ordem determinará a prioridade do título, e esta a preferência dos direitos reais, ainda que apresentados pela mesma pessoa mais de um título simultaneamente". O princípio ou regra da prioridade ainda pode ser extraído dos arts. 12, 182, 189, 190, 191, 192 e 205 da LRP.

Portanto, conforme categoricamente descrito no texto legal da LRP, prenotado o título, este toma um determinado número de ordem e tem preferência sobre todos os demais títulos contraditórios eventualmente apresentados a posteriori, enquanto vigente o seu protocolo. Se o título for apto a registro dentro do prazo de vigência da prenotação, os títulos contraditórios protocolados depois não podem passar sua frente, mas, pelo contrário, devem ter suas inscrições obstadas e indeferidas, por não serem mais passíveis de produzir sua eficácia no registro imobiliário.

Eis a simplicidade do princípio da prioridade: o título que primeiro ingressar no Livro Protocolo terá a prioridade e preferência à inscrição, afastando a contradição entre títulos. Resume-se isso no brocardo latino: "prior in tempore, portior in iure".

Além disso, o art. 54 da lei 13.097/15 encontra-se igualmente violado pelo regulamento do CNJ, visto que estabelece taxativamente que as restrições ao direito de propriedade ou aos demais direitos inscritos na matrícula imobiliária somente tem efeito contra terceiros quando previamente registradas ou averbadas no fólio real. É dizer: aquilo que não consta do livro imobiliário, não pode prejudicar terceiros de boa-fé. Na prática cartorária, diz-se que a lei 13.097/15 reconheceu expressamente o princípio da concentração dos atos na matrícula.

O referido dispositivo de lei prescreve, aliás, de forma literal, que as "indisponibilidades" não têm precedência sobre os títulos protocolados, salvo se averbadas anteriormente na matrícula.

Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:

III - averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e

Assim, não são eficazes contra terceiros de boa-fé quaisquer atos jurídicos contraditórios que sejam apresentados no Registro de Imóveis posteriormente ao protocolo de um título, ainda que aqueles tenham sido constituídos entre as partes antes deste, valendo, pois, a data da prenotação como marco temporal objetivo, termo legal para a eficácia do registro. Além do mais, tal regra não é extraída por analogia ou outra forma de integração do Direito, ela vale, expressamente, em relação à indisponibilidade de bens, por que está assim prevista literalmente no texto legal (art. 54, inc. III).

Outrossim, o § 1º do art. 54 reforça, ainda, que "Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no registro de imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel". O dispositivo em apreço ressalva as decisões no procedimento falimentar (arts. 129 e 130 da lei 11.101/05) e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel (por exemplo, nos casos de usucapião). O STJ ainda vislumbra uma terceira hipótese por força de previsão legal específica: os casos de dívidas tributárias inscritas em dívida ativa (art. 185 do CTN). A lei não ressalva as indisponibilidades, mas, ao contrário, como vimos, exige que estas respeitem o princípio da prioridade.

Ademais, conforme o § 2º do multicitado art. 54 (incluído pela lei 14.382, de 2022), "Para a validade ou eficácia dos negócios jurídicos a que se refere o caput deste artigo ou para a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente de imóvel ou beneficiário de direito real, não serão exigidas: [...] II - a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais". Em resumo, não há obrigatoriedade de apresentação das certidões de feitos ajuizados para realizar o registro de um título na matrícula, tendo em vista que quaisquer inscrições restritivas sobre o imóvel, para terem efeitos contra terceiros, dependem da sua averbação ou registro na própria matrícula. Logo, é descabido exigir que o adquirente de um imóvel solicite certidões judiciais para verificar se existem ações ou restrições no imóvel, haja vista que compete aos interessados (autores de ações judiciais, exequentes etc.) promover a respectiva averbação no Registro de Imóveis ou, quando for o caso, essa inscrição é de responsabilidade do próprio Poder Judiciário, a exemplo das indisponibilidades genéricas ou específicas de bens imóveis a serem incluídas na CNIB.

Neste sentido, a LRP é clara ao estabelecer que, observada a "forma prevista na lei", a declaração de indisponibilidade deve ser objeto de averbação na matrícula imobiliária ("Averbar-se-á, também, na matrícula, a declaração de indisponibilidade de bens, na forma prevista na lei"). A "lei", como vimos, prevê expressamente que a indisponibilidade não tem precedência sobre títulos anteriormente protocolados. Muito pelo contrário, a averbação de indisponibilidade é ineficaz em relação aos atos e negócios jurídicos protocolados anteriormente à sua decretação e prenotação no registro imobiliário, não podendo ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula (art. 54, inc. III e §§ 1º e 2º, da lei 13.097/15).

Eventual aplicabilidade da infeliz redação do § 3º do art. 320-I do CNN ocasionaria total falta de segurança jurídica no Registro de Imóveis, criando uma verdadeira "loteria" entre os usuários do serviço. Eventualmente, também poderia ensejar discussão acerca da responsabilidade do registrador de imóveis que deixasse para registrar um título no último dia do prazo, coincidindo com o ingresso de uma ordem de indisponibilidade.

Pense-se na seguinte situação hipotética: protocolado no Registro de Imóveis determinada escritura pública de compra e venda do imóvel X, cujo prazo fosse de 10 dias úteis para a realização do registro. Imaginando que o protocolo ocorreu em uma segunda-feira, dia 1 do mês, e que não se tenha nenhum feriado e todas as exigências legais estejam cumpridas, o prazo para registro se encerraria no dia 15 do mesmo mês (aplicação do art. 188 da LRP). Se no mesmo dia 15 houvesse a inclusão na CNIB de uma ordem de indisponibilidade sobre o imóvel e a materialização do registro (digitação, impressão e assinatura) ainda não estivesse concluída, em tese, aplicando o regulamento do CNJ, o Registrador de Imóveis deveria realizar antes a averbação de indisponibilidade e indeferir o registro da escritura. No entanto, se tivesse realizado a materialização do registro no dia 2, 3, 4, ou mesmo no dia 14, ou até mesmo no dia 15, um pouco antes da ordem de indisponibilidade constar do sistema, o usuário teria sua escritura registrada. Ou seja, o usuário ficaria a mercê de um fato estranho ao ato jurídico que praticou, estranho a sua manifestação de vontade e que dependeria do acaso.

A situação é tão absurda que enseja uma importante reflexão! Se aplicado o regulamento do CNJ (em detrimento ao que prevê a lei), o direito material do adquirente do imóvel não dependeria mais tão somente do cumprimento dos requisitos legais e apresentação em primeiro lugar no protocolo do registro de imóveis, mas sim do tempo para a realização do registro no Registro de Imóveis a que foi apresentada a escritura, situação que em nada diz respeito ao direito subjetivo dos usuários do serviço.

O Registrador que realiza o registro no último dia do prazo, por óbvio, não comete nenhum ato infracional, tendo em vista que concluído o ato registral dentro do respectivo prazo legal. No entanto, ao aplicar o regulamento do CNJ, os efeitos do ato poderiam mudar por mera situação contingente, isto é, de acordo com situações aleatórias, como, por exemplo, a escolha pelo escrevente do cartório de quais os títulos serão registrados naquele dia, o que poderia mudar até mesmo por férias dos colaboradores do cartório, doença etc. Assim, se o cartório, casualmente, não conseguir concluir no 1º ou no 2º dia o registro, ou mesmo no 9º dia, esse simples fato ocasionaria - paradoxalmente - uma mudança no direito subjetivo do comprador, que veria sua escritura ser registrada ou não, a depender da pilha de processos escolhida pelo escrevente para materializar os registros, ou de acordo com quaisquer outros motivos esporádicos que possam acelerar ou atrasar a mera materialização do ato registral.

Na prática, a aplicabilidade do dispositivo sob análise, constante do regulamento do CNJ, ocasionaria tamanho entrave na segurança jurídica dos negócios imobiliários que ainda poderia fomentar situações de possíveis corrupções utilizando-se do próprio sistema, como "solicitações informais" de um credor de que não se realize o registro nos primeiros dias do protocolo para "dar tempo" de se incluir uma ordem de indisponibilidade na CNIB. Assim, ao invés de contribuir para que haja diligência por parte dos interessados em inscrever as ordens judiciais no Registro de Imóveis, o efeito do regulamento do CNJ passaria a ser a "premiação" do credor não-diligente em desfavor dos terceiros de boa-fé, com, senão a destruição, grave mitigação da segurança jurídica no âmbito do registro imobiliário.

Nada obstante, o regulamento do CNJ não tem atribuição para alterar o direito material, o que depende de lei em sentido estrito. Embora as normas administrativas do CNJ regulamentem os procedimentos a serem realizados nas serventias extrajudiciais, como ocorre com o provimento CNJ 188/24, elas devem ser interpretadas sistematicamente, em conjunto com a Constituição Federal e as leis em vigor. Notários e Registradores, portanto, devem observar as normas técnicas atinentes a sua atividade em conjunto com as demais normas do ordenamento jurídico.

Os Tabeliães e Registradores, na qualidade de profissionais do Direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro (art. 236 da CF e art. 3º da lei 8.935/94), gozam de autonomia jurídica para interpretar a legislação no âmbito de seu exercício funcional. Ademais, sua atuação deve ser pautada em dar segurança, autenticidade, eficácia e publicidade aos atos e negócios jurídicos (art. 1º da LRP e art. 1º da lei 8.935/94), devendo respeitar, dentre outros, o princípio constitucional da legalidade (art. 37, inc. I, CF).

Neste sentido, cotejando a legislação posta (leis stricto sensu, com natureza de normas primárias) e o regulamento do CNJ (ato administrativo, com natureza de norma secundária), é de se reconhecer que ao Registrador compete aplicar a legislação, fundamentadamente, de acordo com o referido princípio da legalidade, caso em que, a interpretação das normas jurídicas dão conta de que o Código Civil, a lei de Registros Públicos e a lei 13.097/15 são absolutamente contrários àquilo que ficou estipulado no § 3º do art. 320-I do CNN.

Havendo, pois, uma antinomia jurídica entre as normas, deve-se valer dos respectivos critérios de solução: cronológico, de especialidade ou hierárquico. Conquanto o regulamento do CNJ seja mais recente e também trate de matéria específica, ele é hierarquicamente inferior às leis em sentido estrito acima destacadas e, portanto, no ponto sob análise, por todo o estudado, é elas que são válidas e eficazes, afastando qualquer efeito, neste ponto, do regulamento do órgão regulador.

O regulamento do CNJ, de forma descabida, altera o direito material e subjetivo reconhecido em lei aos adquirentes e credores de bens imóveis e, inclusive, inverte a lógica do sistema registral, estabelecendo que a indisponibilidade tem precedência sobre outros direitos, "salvo exista na ordem judicial previsão em contrário". Em verdade, por força de lei, o que tem precedência é o título protocolado antecedentemente, sem prejuízo de que essa precedência seja afastada pelo Poder Judiciário mediante decisão específica, desde que haja ordem judicial assim estabelecendo, caso em que se exige dos magistrados a devida fundamentação (aplicação do art. 5º, XXXV c/c art. 93, inc. IX, da CF).

Podemos dizer, pois, que se algum ato ou fato jurídico não estiver noticiado na matrícula - inclusive no caso das indisponibilidades de bens (art. 54, III e § 1º, lei 13.097/15) -, este ato ou fato não poderá obstar o registro do título protocolado, seja porque o registro considera-se realizado na data do protocolo (art. 1.246 do Código Civil), seja porque o protocolo é que determina a precedência dos direitos levados ao registro imobiliário (art. 186 da LRP). Por esse motivo, o disposto no § 3º do art. 320-I do CNN constitui regulamentação inválida e ineficaz.

Fonte: Migalhas