No período eleitoral é comum surgirem diversos questionamentos acerca da possibilidade de os entes públicos promoverem quaisquer ações que envolvam tradição de bens, valores ou até reconhecimento de benefícios em prol de terceiros.
Geralmente essas dúvidas decorrem dos comandos trazidos pela Lei Federal nº 9.504/1997 (Lei das Eleições), que estabeleceu uma série de condutas vedadas aos agentes públicos durante o ano em que o pleito eleitoral acontece.
Um exemplo disso é a proibição expressa de serem distribuídos gratuitamente bens, valores ou benefícios pela administração pública no ano das eleições, salvo nos casos de calamidade pública, estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e em execução orçamentária no exercício anterior (artigo 73, §10, Lei nº 9.504/97).
É notório que, com tal restrição, a mens legis pretendeu coibir eventuais abusos de poder praticados pelos agentes políticos no exercício do seu múnus publico, uma vez que certas ações realizadas pela administração em período eleitoral, no intuito de beneficiar desoneradamente terceiros, podem facilmente comprometer a imparcialidade e legitimidade do pleito, por serem comumente associadas à captação ilícita de sufrágio.
Reurb-S em ano eleitoral
Mas será que a realização dos procedimentos relativos à Regularização Fundiária Urbana de Interesse Social (Reurb-S), descritos na Lei Federal nº 13.465/2017, em ano eleitoral, poderia ser enquadrada na referida conduta vedada pelo artigo 73, §10 da Lei Eleitoral?
Antes de responder a essa indagação, convém explanar, de forma sucinta, o conceito legal da Reurb, bem como as suas principais modalidades, instrumentos e implicações.
De acordo com o artigo 9º da Lei Federal 13.465/2017, a Regularização Fundiária Urbana (Reurb) consiste numa série de “medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes”.
Cabe destacar que o processamento, análise, classificação da Reurb e, ao final, a emissão do documento que certifique a sua conclusão, com o posterior reconhecimento do direito real em favor do beneficiário, são atos cuja realização compete exclusivamente ao município em que estiverem localizados os núcleos urbanos informais a serem regularizados, conforme determina o artigo 30 da Lei Federal 13.465/2017.
Interesse social e dispensa do pagamento de despesas
Para o processamento da Reurb, a referida lei traz duas modalidades: a Reurb de Interesse Social (Reurb-S), aplicável aos núcleos urbanos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda, assim declarados em ato do Poder Executivo municipal, e a Reurb de Interesse Específico (Reurb-E), aplicada aos núcleos urbanos informais ocupados por população não qualificada na Reurb–S (artigo 13 da Lei Federal nº 13.465/17).
As principais implicações advindas dessa diferenciação de modalidades são relacionadas às medidas que deverão ser adotadas para a regularização, uma vez que, autuado o procedimento na modalidade “Reurb-S”, os beneficiários classificados como população de baixa renda não arcarão com quaisquer custos relativos à implementação das melhorias de infraestrutura essencial no núcleo, bem como as custas, emolumentos, dentre outros atos registrais e notariais necessários para a conclusão do procedimento (artigo 13, §5º da Lei da Reurb).
Logo, na Reurb-S, por ser direcionada a pessoas hipossuficientes, existe uma dispensa legal do pagamento das despesas necessárias para a obtenção do reconhecimento dos direitos sobre os imóveis ocupados.
E é justamente neste ponto que surgem os questionamentos de cunho eleitoral que originaram a realização deste trabalho. Como foi dito, o município possui competência exclusiva para processar a regularização fundiária urbana local.
Se em ano eleitoral for requerido o processamento de Reurb-S, independentemente do instrumento escolhido (artigo 15 da Lei 13.465/17), ao final do procedimento, quando houver o reconhecimento do direito real ao ocupante de baixa renda, o Ente Público estaria concedendo gratuitamente benefícios em prol de particulares, conduta que, em tese, é vedada pelo artigo 73, §10, da Lei nº 9.504/1997.
Sem adentrar nas especificidades do procedimento, segue exemplo de situação hipotética que pode ilustrar muito bem os imbróglios envolvendo a Reurb-S e a vedação eleitoral: ao final do processamento de uma Reurb-S, para a demarcação urbanística e a titulação dos ocupantes do núcleo informal, o município entregará aos beneficiários, considerados de baixa renda, título registrado no cartório imobiliário, sem custo algum ao particular.
Considerando, portanto, que esta ação é de natureza gratuita, se for promovida em ano eleitoral, pode vir a ser enquadrada na vedação do 73, §10, da Lei nº 9.504/1997.
Para solucionar esse aparente problema, volta-se à análise da Lei Eleitoral.
Casos de calamidade pública e emergência
Observa-se que a proibição contida no artigo 73, §10 da Lei 9.504/1997 não possui caráter absoluto. O próprio dispositivo elenca, de forma taxativa, as situações em que a disposição gratuita de bens pela administração é admitida em anos eleitorais, a saber: casos de calamidade pública, estados de emergência e quando for programa social, estabelecido em lei, e em execução orçamentária no ano anterior ao da eleição.
Os estados de calamidade pública e de emergência, por exemplo, são ocasiões que fogem da normalidade e que podem comprometer sobremaneira a atuação do poder público no tocante à prestação de serviços essenciais. Sendo decretadas, eventuais medidas que, inicialmente, não seriam admitidas, podem ser adotadas pelo poder público para a promoção da manutenção da ordem pública durante as situações sui generis.
Concernente à exceção relacionada aos programas sociais autorizados por lei e em execução orçamentária no exercício anterior, cabe destacar que tais iniciativas, para serem legitimas, devem apresentar (1) caráter assistencial, no intuito de proteger ou alcançar os direitos sociais elencados pela Constituição; (2) não devem possuir conotação eleitoral; (3) as despesas decorrentes das atividades do programa precisam estar previstas na lei orçamentária do ente e (4) devem ter sido iniciadas em anos anteriores, para caracterizar a continuidade das políticas públicas já desenvolvidas pelo Estado.
A existência concomitante desses requisitos tem o condão de afastar eventuais indagações acerca da legitimidade dos programas sociais, pois subentende-se que os projetos com essas características são comprometidos com o interesse público e bem-estar social, e não com meros anseios políticos, de caráter eleitoreiro, sabiamente condenados pela Lei 9.504/1997.
Enquadramento da Reurb, objetivos e jurisprudência
No que tange ao conjunto de medidas relativas à Reurb, pode-se facilmente enquadra-las como sendo programa social de cunho habitacional, conforme posicionamento do TRE de Minas Gerais, nos anos de 2017 [1] e 2018 [2].
A Regularização Fundiária Urbana, dentre seus diversos objetivos, visa promover a integração social, a geração de emprego e renda, o direito social à moradia digna, às condições de vida adequadas, garantir a efetivação da função social da propriedade, enfim, sendo, portanto, um programa que permite a satisfação de muitos dos direitos sociais arrolados no artigo 6º da Constituição da República.
Tais direitos sociais, materializados nas políticas públicas desenvolvidas no âmbito de programas sociais, a exemplo das medidas visualizadas no transcurso da Reurb, devem ser promovidos à comunidade, independentemente de ser ou não ano eleitoral.
Portanto, as condutas vedadas pela legislação eleitoral não devem ser interpretadas a ponto de inviabilizar o bom funcionamento da administração pública, conforme bem destaca a seguinte jurisprudência:
“ELEIÇÕES 2012 – RECURSO – CASSAÇÃO DE REGISTRO POR CONDUTA VEDADA – SANÇÃO DO CHEFE DO EXECUTIVO À LEI COMPLEMENTAR DO REFIS – NATUREZA OBRIGACIONAL DA ADESÃO AFASTA A DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE BENS, VALORES E BENEFÍCIOS (ART. 73, § 10, DA LEI DAS ELEIÇÕES) – NÃO RECONHECIMENTO DO ABUSO – POSSIBILIDADE DO LIVRE EXERCÍCIO DAS ATIVIDADES ADMINISTRATIVAS DO CHEFE DO EXECUTIVO/CANDIDATO, DESDE QUE NÃO HAJA O SEU DESVIRTUAMENTO E A CONDUTA NÃO ESTEJA DENTRE AS VEDADAS EXPRESSAMENTE NO ART. 73 DA LEI N. 9504/97 – A lei eleitoral, conquanto seja movida pela necessidade de preservação da igualdade, não pode estrangular o livre desempenho das funções estatais dos candidatos/prefeitos, mas movimentar-se com cautela nesta seara em busca do desvirtuamento e do abuso dessas legítimas competências legais e constitucionais em prol de determinada candidatura. DESPROVI MENTO DO RECURSO E MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. Precedente: Acórdão TRE/SC nº 23327, rel. Juiz Odson Cardoso, em 3 de dezembro de 2008” (Grifo do articulista).
Procedimento e legalidade
Considerando que a Reurb é um programa social, que visa entregar à comunidade direitos essenciais, e que, em razão disso, não pode ser suspenso pelo poder público, ainda que em ano eleitoral, deve-se ter em mente a melhor forma de os trâmites serem realizados.
Retomando a exceção apresentada pelo artigo 73, §10, da Lei 9.504/1997, a própria norma aponta o possível caminho a ser trilhado para resguardar a legitimidade dos procedimentos relacionados à Reurb-S em anos eleitorais: aprovar, em exercício anterior, lei tratando sobre o programa de regularização fundiária urbana, bem como seguir as demais recomendações relacionadas à execução orçamentária neste ano.
É cediço que a lei da Reurb prevê a desnecessidade da existência de qualquer lei ou decreto municipal para a regularização fundiária ser efetivada (artigo 28, parágrafo único da Lei 13.465/2017). Mesmo assim, visando resguardar eventual questionamento acerca da legalidade dos trâmites envolvendo a Reurb-S em ano eleitoral, recomenda-se que o ente público edite norma legal, no exercício anterior, aprovando o programa e demais ações da Reurb no município, e que insira quaisquer despesas decorrentes das atividades do programa na lei orçamentária vigente, com determinação de início imediato das ações.
Se ficar demonstrada a existência de um projeto sério, aprovado por lei em ano diverso do defeso, e que eventuais custos tenham sido previstos no exercício financeiro anterior, em tese, estaria amparada pela exceção trazida pela lei eleitoral.
Por fim, convém ressaltar que os programas sociais, por serem ações de caráter essencial, devem ser executados sem qualquer viés eleitoreiro, principalmente nas proximidades do pleito, no intuito de se resguardar a paridade de oportunidades entre os candidatos e evitar que o agente político utilize a “máquina pública” em prol de determinada candidatura.
Com o programa da Reurb-S não poderia ser diferente. Inclusive, sugere-se que os seus procedimentos sejam realizados por meio de comissão, composta por, no mínimo, três servidores, preferencialmente do quadro efetivo, a fim de evitar que as medidas de regularização sejam associadas à determinada figura ou partido político.
Seguindo essas e outras recomendações cautelares, não haveria óbice legal para a continuidade do programa de regularização nos anos eleitorais, haja vista o cumprimento dos princípios da transparência e imparcialidade dos atos públicos durante o processo.
Demais premissas e entendimento do TSE
Vale salientar que existem outros fundamentos para legitimar a realização dos procedimentos de Regularização Fundiária Urbana em ano eleitoral.
Um deles afirma que os procedimentos da Reurb sequer poderiam ser enquadrados na proibição do artigo 73, §10 da Lei das Eleições, pois a regularização fundiária urbana visa promover o reconhecimento de situação fática, relacionada à outorga de direito real aos ocupantes, ao passo que a referida vedação eleitoral cinge na disposição gratuita de bens e benefícios à terceiros pela administração pública.
O TRE de Goiás já se manifestou nesse sentido [3], afirmando que a regularização fundiária em ano eleitoral, através da mera escrituração de imóveis que já se encontravam na posse de particulares, não implicaria ofensa à proibição do artigo 73, §10 da Lei 9.504/1997.
Outro posicionamento favorável à ideia de se proceder com a regularização imobiliária no período das eleições se funda na seguinte justificativa: se o artigo 73, §10 somente proíbe os atos de disposição gratuita de bens, benefícios e valores no ano eleitoral, as demais ações, que não envolvam essas características, seriam permitidas.
Partindo desse princípio, todos os procedimentos da Reurb poderiam ser praticados normalmente durante o período eleitoral, com exceção da etapa final, em que ocorre a entrega dos títulos aos ocupantes, pois tais ações poderiam ser questionadas com base no texto legal.
No ano de 2014 [4], o Tribunal Superior Eleitoral se manifestou nesse sentido, ao julgar caso de doação de lotes pelo poder público em ano eleitoral, determinando que, para caracterizar a infração descrita na Lei 9.504/1997, seria imprescindível a ocorrência da efetiva doação dos lotes durante o período defeso, consubstanciada na tradição dos imóveis, não sendo cabível qualquer interpretação extensiva para albergar situações semelhantes, a fim de caracterizar a conduta vedada.
Com esse entendimento, seria então possível promover praticamente todos os atos relacionados à Reurb-S nos anos eleitorais, salvo a entrega dos títulos aos particulares, medida que seria feita em momento posterior, a fim de evitar quaisquer questionamentos embasados nas proibições da Lei Federal nº 9.504/1997.
Conclusão
Nota-se, portanto, que a discussão envolvendo a Regularização Fundiária Urbana na modalidade social, em ano eleitoral, ainda não foi pacificada pelo Judiciário. Mesmo assim, é necessário reconhecer a importância do implemento da Reurb para o desenvolvimento dos municípios brasileiros.
Em verdade, a devida implementação das regras trazidas pela Lei Federal nº 13.465/2017 tem o condão de mudar a realidade municipal do Brasil, através de ações que vão além do simples ato de tradição e/ou titulação de imóveis em benefício de terceiros, envolvendo a regularização jurídica, imobiliária, ambiental e urbanística dos núcleos informais, independentemente da sua localização, da situação econômica dos beneficiários ou do momento em que as ações são realizadas.
[1] Recurso Eleitoral n 16866, Acórdão de 20/04/2017, Relator(aqwe) VIRGÍLIO DE ALMEIDA BARRETO, Relator(a) designado(a) CARLOS ROBERTO DE CARVALHO, Publicação: DJEMG – Diário de Justiça Eletrônico-TREMG, Data 08/05/2017;
[2] Recurso Eleitoral n 180, Acórdão de 10/10/2018, Relator(aqwe) PAULO ROGÉRIO DE SOUZA ABRANTES, Relator(a) designado(a) RICARDO MATOS DE OLIVEIRA, Publicação: DJEMG – Diário de Justiça Eletrônico-TREMG, Tomo 197, Data 25/10/2018.
[3] Recurso Eleitoral n 598-13.2016, Publicação: DJ – Diário de justiça, Tomo 063, Data 11/04/2018, Página 31/39
[4] Respe n° 14-29.2012.6.17.00831PE
Fonte: Consultor Jurídico (ConJur)