O direito à moradia é reconhecido como direito fundamental em inúmeros tratados e convenções internacionais de direitos humanos, a exemplo da Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948; da Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965; da Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver, de 1976; e da Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, dentre outros.
No âmbito interno, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 2001), por meio de seu artigo 2º, reconhece às pessoas o direito fundamental a cidades sustentáveis, assim entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer.
Para a efetivação do direito à moradia, um dos principais instrumentos jurídicos colocados à disposição das autoridades é regularização fundiária, cujo objetivo, como o próprio nome está a indicar, é legalizar moradias, garantindo não só a regularização documental das habitações, mas principalmente propiciando melhoria nas condições de vida dos moradores.
Noutras palavras, a regularização fundiária tem a finalidade de legalizar ocupações de terra que ocorreram em desconformidade com a lei, permitindo o acesso da população local aos serviços públicos e resgatando, ao menos em parte, a dignidade das pessoas. Busca, em resumo, garantir o direito fundamental à moradia e, consequentemente, materializar o pleno desenvolvimento da função social da propriedade.
Doação de imóveis
A regularização fundiária pode ser levada a efeito por meio de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais. No que concerne ao plano dominial, os principais mecanismos previstos na legislação para a efetivação da regularização fundiária são a desapropriação, a usucapião, o direito de preempção, a compra e venda, a concessão de direito real de uso e a doação.
Neste ensaio, será abordado um instrumento que tem se mostrado bastante eficaz para a execução de regularizações fundiárias urbanas: a doação de imóveis pelo Incra aos municípios. Portanto, não se tratará aqui de outros mecanismos de regularização fundiária, nem sobre regularização fundiária de natureza rural. Será analisado, pois, o procedimento de doação de imóveis pelo Incra aos municípios, com o objetivo específico de os entes políticos executarem a regularização fundiária.
O Incra, que é uma autarquia federal com atuação em todo o país, possui suas competências estabelecidas na legislação agrária, com destaque para a realização do ordenamento territorial, a regularização fundiária, a regularização quilombola e a execução da política de reforma agrária.
Todavia, na hipótese em análise, cabe esclarecer, o ente público que executará a regularização fundiária não é o Incra, mas a municipalidade, pois trata-se de regularização fundiária de natureza urbana. Nesse cenário, o Incra efetua a doação de imóveis aos municípios, garantindo, por meio de cláusula expressa no termo de doação, que o bem será destinado para a regularização fundiária urbana, sendo ilegítima qualquer outra utilização, sob pena de desfazimento da doação.
Requisitos legais para a doação
A doação de bens públicos somente é possível quando cumpridos requisitos legais específicos. Sobre o tema, dispõe o artigo 37, XXI da Constituição de 1988 que ressalvados os casos especificados na legislação, as alienações serão contratadas mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes.
Regulamentando a Constituição, o Estatuto de Licitações e Contratos (Lei nº 14.133, de 2021) relaciona os requisitos para a alienação de bens públicos. Vejamos:
“Art. 76. A alienação de bens da Administração Pública, subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá às seguintes normas:
I – tratando-se de bens imóveis, inclusive os pertencentes às autarquias e às fundações, exigirá autorização legislativa e dependerá de licitação na modalidade leilão, dispensada a realização de licitação nos casos de:
(…)
b) doação, permitida exclusivamente para outro órgão ou entidade da Administração Pública, de qualquer esfera de governo, ressalvado o disposto nas alíneas ‘f’, ‘g’ e ‘h’ deste inciso;”
Em resumo, a teor do artigo 76 da Lei nº 14.133, de 2021, para efetuar a doação de bem imóvel a um município, o Incra deverá cumprir as seguintes exigências:
“a) comprovar que doação atende ao interesse público;
b) efetuar a avaliação prévia do bem a ser doado, de modo a, também, resguardar o interesse da coletividade;
c) obter haver autorização legislativa, por se tratar de bem imóvel.
Esclareça-se que a exigência de prévia licitação, prevista como regra geral no caput do art. 76, fica legalmente dispensada por se tratar de doação envolvendo duas pessoas jurídicas de direito público, a saber, o Incra, autarquia federal, e o Município.”
O reconhecimento do interesse público da doação, bem como a avaliação do bem a ser doado, são providências adotadas no âmbito do próprio Incra, no decorrer da instrução processual. O interesse público, vale dizer, “é o sentimento que exprime abstratamente os anseios da coletividade” [1]. Cabe à autoridade competente do Incra, com base no seu poder discricionário, aferir e declarar, no caso concreto, que a doação para regularização fundiária é medida necessária ao alcance do bem comum. A avaliação do bem, como já sinalizado, é realizada por meio de técnicos da autarquia agrária.
Previsão legal
Além dos requisitos já mencionados, o Estatuto de Licitações exige também que haja uma lei autorizando a alienação de bem imóvel. Quanto a isso, a autorização legislativa para a doação foi conferida pela Lei nº 13.001, de 20 de junho de 2014, que em seu artigo 22 estabelece que:
“Art. 22. Fica o Incra autorizado a doar áreas de sua propriedade, remanescentes de projetos de assentamento, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios e às entidades da administração pública indireta, independentemente de licitação, para a utilização de seus serviços ou para as atividades ou obras reconhecidas como de interesse público ou social, observado, no que couber, o disposto na Lei nº 9.636, de 15 de maio de 1998, desde: (Redação dada pela Lei nº 13.465, de 2017)
I – que tenham sido incorporadas à zona urbana; ou
II – que tenham sido destinadas à implantação de infraestrutura de interesse público ou social.”
Além dos requisitos genéricos acima mencionados, exigidos pelo Estatuto de Licitações, há outras imposições previstas na Lei nº 11.952/2009, no Decreto nº 7.341/2010 e na Instrução Normativa Incra nº 142, de 28 de maio de 2024.
A Lei nº 11.952/2009 disciplina a regularização fundiária de áreas urbanas e rurais inseridas em áreas de domínio da União no âmbito da Amazônia legal. Posteriormente, a Lei nº 13.465/2017 a alterou e estendeu sua aplicação para áreas de propriedade do Incra fora da Amazônia Legal, conforme a previsão do artigo 40-A da Lei nº 11.952/2009:
“Art. 40-A. Aplicam-se as disposições desta Lei, à exceção do disposto no art. 11, à regularização fundiária das ocupações fora da Amazônia Legal nas áreas urbanas e rurais do Incra, inclusive nas áreas remanescentes de projetos criados pelo Incra, dentro ou fora da Amazônia Legal, em data anterior a 10 de outubro de 1985 com características de colonização, conforme regulamento.” (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)
Por sua vez, o artigo 3º da Lei nº 11.952/2009 prevê a possibilidade de regularização fundiária de áreas de propriedade do Incra, senão vejamos:
“Art. 3o São passíveis de regularização fundiária nos termos desta Lei as ocupações incidentes em terras:
I – discriminadas, arrecadadas e registradas em nome da União com base no art. 1o do Decreto-Lei no 1.164, de 1o de abril de 1971;
II – abrangidas pelas exceções dispostas no parágrafo único do art. 1o do Decreto-Lei no 2.375, de 24 de novembro de 1987;
III – remanescentes de núcleos de colonização ou de projetos de reforma agrária que tiverem perdido a vocação agrícola e se destinem à utilização urbana;
IV – devolutas localizadas em faixa de fronteira; ou
V – registradas em nome do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, ou por ele administradas.”
Importante repetir que não é o Incra que fará a regularização fundiária urbana, mas o Município donatário. A propósito, o artigo 21 da Lei nº 11.952/09 dispõe que a regularização fundiária urbana será impulsionada por meio de doação ao município interessado, sob a condição de que sejam realizados pela municipalidade os atos necessários à regularização das áreas ocupadas.
Portanto, são condições para que seja efetivada a doação o aceite, pelo Município, do encargo legal de realizar os atos necessários à regularização fundiária das áreas ocupadas, bem como a adoção de providências para a realização de ordenamento territorial urbano que abranja a área a ser regularizada.
Regulamentação pelo Incra da doação para regularização fundiária urbana
No que concerne à regularização fundiária urbana, objeto deste ensaio, para além do que consta na Lei nº 11.952/2009 e no Decreto nº 7.341/2010, houve regulamentação no âmbito do Incra por meio da Instrução Normativa nº 142, de 28 de maio de 2024, que dispõe sobre os procedimentos necessários à regularização fundiária “de áreas urbanas consolidadas, de expansão urbana e de urbanização específica, incidentes em terras públicas federais do Incra, qualquer que seja sua localização, e da União, administradas pelo Incra na Amazônia Legal previstas no art. 3º da Lei nº 11.952, de 2009.”
Nesse emaranhado de normas, a Instrução Normativa Incra nº 142, de 2024, por meio de seu artigo 1º, explicita com clareza as áreas que podem ser doadas pelo Incra aos municípios, para fins de regularização fundiária:
“Art. 1º Esta Instrução Normativa estabelece os procedimentos necessários à regularização fundiária, mediante doação aos municípios, de áreas urbanas consolidadas, de expansão urbana e de urbanização específica.
Parágrafo Único. As áreas passíveis de doação são aquelas incidentes em terras públicas federais do Incra, qualquer que seja sua localização, e em terras da União administradas pelo Incra, situadas na Amazônia Legal.”
Por sua vez, o artigo 2º da referida Instrução Normativa define como áreas urbanas consolidadas aquelas que apresentam os seguintes elementos de difícil reversão: a) sistema viário implantado com vias de circulação, pavimentadas ou não, que configuram a área urbana em quadras e lotes; b) uso predominantemente urbano, caracterizado pela existência de instalações e edificações residenciais, comerciais, voltadas à prestação de serviços, industriais, institucionais ou mistas, bem como demais equipamentos públicos urbanos e comunitários.
Áreas de expansão urbana, conforme o mesmo dispositivo, são aquelas sem ocupação para fins urbanos já consolidados, destinadas ao crescimento ordenado das cidades, vilas e demais núcleos urbanos, contíguas ou não à área urbana consolidada, previstas, delimitadas e regulamentadas em plano diretor ou lei municipal específica de ordenamento territorial urbano, em consonância o Estatuto da Cidade.
Por fim, o artigo 2º da IN nº 142/2024 também define as áreas de urbanização específica, que são aquelas relacionadas a possibilidade de serem exercidas atividades tipicamente urbanas em determinada região territorial do município, contíguas ou não às demais áreas urbanas do município, inclusive na zona rural.
Portanto, sendo o bem requerido pela municipalidade enquadrado tecnicamente como área urbana consolidada, de expansão urbana ou de urbanização específica, poderá o Incra, à luz da discricionariedade administrativa e observados os demais requisitos previstos na legislação de regência (incluída a juntada da documentação prevista no artigo 6º da IN nº 142/2024), efetuar a doação ao município, para que realize a regularização fundiária urbana.
Além disso, para fins de controle, a minuta do termo de doação ao município deverá necessariamente conter a finalidade específica da doação, que é a realização, pela municipalidade, da regularização fundiária das ocupações existentes na área objeto da doação.
Mas não é só. Ainda como requisitos para a doação ao município, o artigo 14 da Instrução Normativa Incra nº 142/2024 exige a consulta sobre eventual interesse na área a ser doada aos seguintes órgãos e entidades: a) Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União (SPU); b) Fundação Nacional do Índio (Funai); c) Serviço Florestal Brasileiro (SFB); d) Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). No entanto, dispõe o § 3º do artigo 14 da referida Instrução Normativa que nas doações de áreas urbanas localizadas em Projetos de Assentamento do Incra criados após 10 de outubro de 1985, as consultas acima estarão dispensadas. Essas consultas, como é fácil notar, têm por objetivo evitar sobreposição de interesses em relação ao bem pretendido para doação.
Por fim, dispõe o artigo 15 da IN nº 142/2024 que o Incra encaminhará ofício ao Ministério das Cidades para análise e parecer quanto aos aspectos urbanísticos, acompanhado da comprovação das condições de ocupação da área pretendida para doação. Caso haja discordância por parte do Ministério das Cidades, o perímetro do bem poderá ser redimensionado, conforme o caso. Não sendo a discordância superada tecnicamente, o processo será extinto e a doação, ao menos no âmbito daquele processo, não será realizada.
Ultrapassadas eventuais pendências e finalizada a instrução, o Incra decidirá, fundamentadamente, acerca da doação ao município, sendo certo que, para além de tudo que foi dito, se a doação ocorrer em ano eleitoral, ainda haverá incidência das restrições impostas pela Lei nº 9.504, de 1997, que, no caso em análise e em apertada síntese, proíbem aos entes de esferas distintas de governo doações de bens nos três meses que antecedem o pleito (artigo 73, VI, “a”).
Mecanismo é essencial
Em conclusão, pode-se afirmar que o processo de doação de terra pública, pelo Incra, para fins de regularização fundiária, atende plenamente ao interesse da coletividade, à ideia de boa administração e aos princípios constitucionais da segurança jurídica e da função social da propriedade. A propósito, o cumprimento da função social da propriedade, é necessário dizer, não deve ser exigido apenas do particular, mas também do próprio Estado, quando esteja na condição de proprietário. Bem por isso, a regularização fundiária urbana é instrumento essencial para o cumprimento da função social da propriedade pelo próprio Estado, ao propiciar, a um só tempo, a efetivação do direito fundamental à moradia e o ordenamento territorial sustentável da área regularizada.
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[1] SANTOS, Mauro Sérgio dos. Curso de Direito Administrativo. 4ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 7.
Fonte: Consultor Jurídico (ConJur)