Este trabalho tem como proposta por luzes sobre o aparente paradoxo existente entre a publicidade obrigatória de que trata a Lei dos Registros Públicos e as restrições previstas na Lei Geral de Proteção de Dados.
Diante da globalização e do crescente uso da internet é possível, em questão de segundos com um mero toque na tela de um dispositivo tátil ou um clique no teclado de um computador, fazer que uma informação percorra o mundo. Os motores de busca na Internet permitem a todos seus usuários, incluindo a meros curiosos ou a mal-intencionados, encontrar essas informações de maneira quase imediata, o que pode expor dados pessoais que, por um motivo ou outro, circulam em matrículas, registros e certidões dos Registros de Imóveis, em prejuízo da privacidade e intimidade das pessoas referidas nesses documentos.
Dessa forma, torna-se necessário a rediscussão dos limites da publicidade oferecida pelo sistema de registro de imóveis brasileiro, tendo em consideração não apenas a lei 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos - LRP), mas também a lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD) e o Provimento n.149/2023-CNJ que instituiu o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra), que regulamenta os serviços notariais e de registro.
Com efeito, a lei 6.015/73, denominada Lei dos Registros Públicos, no capítulo IV do título I, ao tratar da publicidade dos atos concernentes aos registros públicos, prescreve no seu art. 17 que "(...) qualquer pessoa pode requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido (...)".
Essa norma, que entrou em vigor há mais de 45 anos, portanto, anterior à vigente Constituição da República, praticamente é transcrição do art. 20 do decreto 4.857/39, o qual estabelecia que toda pessoa poderia requerer certidão do registro, sem importar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse da solicitação, refletindo, ainda, o pensamento de uma época na qual predominava no Brasil uma sociedade ruralista, onde os deslocamentos aos centros urbanos em busca da instrumentalização de negócios jurídicos eram muito precários, justificando o regramento então vigente.
Entretanto, os tempos mudaram, os centros urbanos se desenvolveram, estradas deixaram de ser "caminhos" e foram pavimentadas, o País industrializou-se, tornando-se uma das maiores economias do mundo e, com isso, as pessoas passaram a se locomover com rapidez incomparável.
Some-se a isso, as mudanças sociais também ocorridas com o advento da Quarta Revolução Industrial englobando um amplo sistema de avançadas tecnologias (como inteligência artificial, robótica, internet das coisas, computação em nuvem etc.) que mudaram as formas de produção e os modelos dos negócios no mundo inteiro. Para que se tenha uma ideia da magnitude dessas mudanças, segundo pesquisa divulgada no site convergenciadigital.com.br, entre 2018 e 2019, o percentual de pessoas maiores de 10 anos possuidoras de telefone móvel cresceu de 79,3% para 81,0%; entre aquelas que tinham aparelho celular com acesso à internet, o percentual cresceu de 88% para 91% nesse mesmo período.
Confirma-se, assim, a existência, e a necessidade, de amplo acesso aos meios de informações.
Porém, no particular aspecto da publicidade, a Lei dos Registros Públicos manteve-se inalterada, como se a informação continuasse a ser obtida nos moldes do século XIX.
Ora, não se nega que a publicidade seja uma coluna do sistema de registro de imóveis brasileiro, sendo essencial à segurança das transações imobiliárias ao proteger a pessoa diligente que busca no registro informações antes de adquirir um imóvel.
E essa busca, tem se ancorado no princípio da confiança, comentado por João Pedro Leite Barros1 ao citar Menezes Cordeiro2, este para quem: "exige-se que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a crer na mantença de um certo estado de coisas. Ou seja, a pessoa que legitimamente tenha confiado em um certo estado de coisas não pode receber o tratamento igual se não o tivesse; seria tratar o diferente de modo igual".
Todavia, diante das mudanças ocorridas, não há como o Registro de Imóveis fechar os olhos para as transformações da sociedade e continuar a emitir certidões e dar informações a qualquer pessoa, como em épocas pretéritas, devendo fazer no mínimo um filtro para que se saiba qual a pessoa está interessada na obtenção das informações.
De fato, retomando a ideia de quando, no Brasil rural, a informação dos registros públicos demorava dias para ser prestada e quando mal utilizada, e não representava um perigo imediato àqueles a quem se referia, agora, com a rapidez trazida pelas novas tecnologias, o risco de causar danos no campo dos direitos à privacidade e à intimidade é muito grande.
Pois bem, se em épocas passadas a obtenção e divulgação de informações sobre a propriedade imobiliária não se propagava de forma tão rápida, isto é, ainda havia um tempo razoável para que o lesado desencadeasse uma contrarreação. Todavia, atualmente, essa conduta proativa do lesado torna-se praticamente impossível, razão pela qual os Registros de Imóveis devem acercar-se de meios que inibam ou restrinjam o fornecimento de informações a pessoas mal intencionadas, criando, no mínimo, um banco de dados com a identificação dessas pessoas, aliás, já exigido para fins de informações ao COAF - Conselho de Controle de Atividades Financeiras.
Logo, tendo-se em consideração a defasagem entre a legislação atual em relação às mudanças sociais ocorridas na era digital, é de se entender que o acesso às informações do Registro Imobiliário proporcionado pelo art. 17 da lei 6.015/73 deve ser lido com as modulações dadas pela Lei Geral de Proteção de Dados c/c o Provimento 149/2023-CNJ, sem adentrar na questão envolvendo a legitimidade da pessoa requerente, mas tomando-se o cuidado de documentar cuidadosamente o pedido, a fim de se fazer frente a eventual demanda.
Não se nega que parece um paradoxo impor critérios de identificação para a obtenção de certidões. Entretanto, não se deve esquecer que a LRP não proíbe esse tipo de prática, e o que se observa é a necessidade de identificação, em face do princípio da segurança jurídica.
Na verdade, a Lei de Registros Públicos e a Lei Geral de Proteção de Dados são normas distintas com impactos diferentes no campo da publicidade, daí a ideia de aparente paradoxo entre elas, mas que estabelecem, na essência, complementariedade em busca da informação e da proteção desta.
Nesse ponto, vale lembrar que a LRP estabelece as regras para o acesso e a publicidade dos documentos públicos, com o propósito de garantir a transparência e o acesso à informação por parte da sociedade como um todo. E essa norma determina, por exemplo, que certos documentos devem ser disponibilizados de forma pública.
Por outro lado, a LGPD tem como objetivo proteger os dados pessoais dos indivíduos, estabelecendo regras para a coleta, uso, armazenamento e compartilhamento dessas informações por parte de empresas e instituições. A LGPD foca em garantir a privacidade e a segurança das informações pessoais, dando aos indivíduos o controle sobre seus próprios dados.
No contexto da publicidade, a LGPD estabelece que o tratamento de dados pessoais deve ser feito de forma transparente e com o consentimento do titular dos dados. Isso significa que as empresas que utilizam dados pessoais para fins publicitários devem informar claramente aos usuários como esses dados serão utilizados e obter o consentimento explícito para essa finalidade.
Dessa forma, o que se tem é que a publicidade da Lei de Registros Públicos e da LGPD se relacionam, pois, ambas têm como objetivo garantir a transparência e o acesso à informação, porém a LGPD traz uma preocupação adicional com a proteção dos dados pessoais dos indivíduos, e em consonância com as novas perspectivas da sociedade, o que não se observava, nesse ponto, na LRP, esta que, como já mencionado inicialmente, entrou em vigor há mais de 45 anos.
Portanto, ao realizar a publicidade no registro de imóveis, é necessário considerar tanto as regras estabelecidas pela LRP quanto as restrições contidas pela LGPD, garantindo a conformidade com ambas as legislações, visando assegurar a transparência e a legalidade no processo de divulgação de informações sobre os imóveis e, também, proteger os dados pessoais dos titulares.
Tanto é verdade, que o já mencionado Provimento n.149/2023 - CNJ consagra essa ideia ao criar um título específico sobre proteção de dados pessoais, com referência expressa à LGPD, cuja interpretação, a toda evidência, é no sentido de alinhamento entre as normas.
Sendo assim, e diante desse relacionamento harmônico entre LRP e LGPD, como visto, pode-se concluir, com as vênias devidas, que o paradoxo entre elas não passa mesmo de aparente, e talvez se criou por uma ideia pouco ortodoxa de quem em algum momento duvidou daquilo que realmente buscou o legislador ordinário, bem como do que os novos tempos programam para o melhor convívio em sociedade.
Referências bibliográficas
BARROS, João Pedro Leite. Direito à informação repercussões no direito do consumidor. Indaiatuba, São Paulo: Editora Foco, 2022, p. 59.
CORDEIRO, António Menezes. Da Natureza civil do direito de consumo. Estudos em memória do Professor Doutor Antônio Marques dos Santos. Coimbra: Almedina, 2005. Confira também: CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2015, p. 1234-1251.
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1 BARROS, João Pedro Leite. Direito à informação repercussões no direito do consumidor. Indaiatuba, São Paulo: Editora Foco, 2022, p. 59.
2 Vide CORDEIRO, António Menezes. Da Natureza civil do direito de consumo. Estudos em memória do Professor Doutor Antônio Marques dos Santos. Coimbra: Almedina, 2005. Confira também: CORDEIRO, António Menezes. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2015, p. 1234-1251.
Fonte: Migalhas