A questão das modalidades de assinatura eletrônica admitidas no registro de imóveis é, ainda, um tema inseguro, assentado sobre um terreno doutrinário movediço, um microssistema em que se mesclam aspectos tecnológicos e jurídicos. Muito já se escreveu e falou sobre as mudanças advindas no bojo da onda reformista representada pela lei 14.382/22 e seus consectários legais e regulamentares. Muitos dispositivos, ainda pendentes de regulamentação, não oferecem um senso de direção, nem um ambiente seguro e livre de controvérsias, base para a atuação diuturna dos registradores.
Tive ocasião de enfrentar um caso prático que nesta coluna oficinal trago à consideração dos leitores do Migalhas Notariais e Registrais. Foi-nos apresentado requerimento formulado por grande instituição financeira, firmado por seus representantes legais, em que se autorizava o cancelamento de "ônus" averbados na Matrícula X (na realidade, averbação-notícia de hipotecas registradas e transpostas nos termos do art. 230 da LRP.
A dita averbação se referia a três hipotecas (de 1º, 2º e 3º graus) que gravavam várias unidades de um condomínio edilício. Prenotado regularmente, o título fora posto em devolução com exigências, contra as quais os interessados se insurgiram solicitando a "suscitação de dúvida". Sobrestamos o protocolo e processamos o pleito como pedido de providências. Ao final deste estudo, o leitor poderá acessar a decisão proferida pela magistrada.
Disclaimer
Antes de prosseguirmos, deixe-me fazer um alerta. Apesar de o pleito ter sido indeferido, a lei faculta ao interessado recorrer à Eg. Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo, podendo ocorrer (ou não) a reforma da sentença, razão deste aviso.
Penso que, apesar disso, o tema merece ser explorado e discutido, motivo pelo qual o divulgo nestas páginas. Tenho perfeita consciência de que, consentaneamente com a viragem (de)formalista provocada pela reforma legal - igualmente no que diz respeito às assinaturas eletrônicas - , pode estar em curso um processo de substituição progressiva da segurança jurídica - representada pelo rigor formal no acesso dos títulos ao registro (lembrem-se: Autenticidade, autoria, integridade e notarização) - pela segurança econômica e/ou tecnológica.
Estes são temas atuais, e, por isso mesmo, merecem profunda reflexão dos registradores e notários brasileiros.
Objeções ao ingresso do título
As exigências formuladas pelo Registro de Imóveis cingiram-se a um único ponto: O documento foi apresentado fisicamente, cópia simples, extraída de típico documento eletrônico. Por esse motivo, entendeu-se que ele não atenderia às exigências de cumprimento de formalidades legais. Como se sabe, exige-se, para o cancelamento de hipotecas, documento original, datado, assinado, firmas reconhecidas dos subscritores, representantes do credor hipotecário. Na réplica que ensejou o pedido de reconsideração, os interessados agitaram os seguintes argumentos:
a. Haveria expressa referência normativa para acessar o Portal de Assinaturas da instituição financeira, nos termos dos itens 365 e 374 das NSCGJSP - Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça.
b. O termo de quitação fora formado obedecendo-se aos requisitos da ICP-Brasil, sem que se promovesse a distinção entre assinatura avançada e qualificada.
c. Verificação de autenticidade no site do ITI - Instituto de Tecnologia da Informação.
d. Apresentação de pen-drive com o "documento original" para fins de validação das assinaturas. Envio do título por e-mail.
Enfrentamos, respeitosamente, os argumentos do advogado, com nossas objeções submetidas à apreciação do juízo competente.
Assinatura ICP-Brasil (itens 365 e 374 das NSCGJSP)
De todos os itens que compõem a série indicada pelos interessados, destaco do Capítulo XX das NSCGJSP o seguinte:
366.1. É permitida a recepção para registro de imagens de documentos, preferencialmente no formato PDF, ou padrão mais atual a ser definido pela Central Registradores e autorizado pela Corregedoria Geral da Justiça, desde que o acesso ao original nato digital possa ser realizado para conferência através de sites confiáveis.
As alterações das ditas NSCGJSP foram consagradas por meio do Provimento CG 56/19, de 11/12/19, baixado pelo então Corregedor Geral de Justiça, des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco. Os estudos que embasaram a reedição das Normas de Serviço naquela ocasião foram compilados no bojo do Processo CG 81.973/18.1 Portanto, o ato normativo foi baixado em data anterior às sucessivas alterações legislativas que inovaram o panorama das chamadas assinaturas eletrônicas e para a autenticação e verificação de autoria e integridade dos documentos digitalizados que acedem o registro imobiliário. Citem-se, especialmente:
a) Lei 14.063, de 23/9/20, que estabeleceu que, "nos atos de transferência e de registro de bens imóveis, será necessária a assinatura eletrônica qualificada" (inc. IV, § 2º, art. 5º).
b) Lei 14.382/22, de 27/6/22. Essa lei alterou as leis 6.015/73 e 11.977/09, entre outras, conforme segue:
Como vimos, os itens das NSCGJSP foram editados anteriormente às leis supervenientes. A sua exegese deve ser iluminada pelo quadro legal atualmente em vigor. A utilização da assinatura eletrônica avançada, de cuja espécie é a utilizada no documento apresentado pelos interessados (§ 2º do art. 10 da MP 2.200-2/01), acha-se pendente de regulamentação pela E. Corregedoria Nacional de Justiça, nos termos das leis citadas.
Em suma: Para o cancelamento de hipotecas - inscrições constitutivas negativas - liberando o imóvel dos direitos reais de garantia, todo o rigor deve ser observado. Para tanto, os requerimentos firmados pelo credor devem ser autenticados pelo notário (inc. II do art. 221 da LRP c.c. inc. I do art. 251 da LRP) ou devem ser firmados pelo credor com assinaturas eletrônicas qualificadas (ICP-Br - § 1º do art. 10 da MP 2.200-2/01).
Distinção entre assinatura eletrônica avançada e qualificada
O requerimento apresentado a registro foi firmado com típica assinatura eletrônica avançada, embora traga no seu frontispício o logo da ICP-Brasil. A espécie molda-se ao tipo estabelecido no inciso II do art. 4º da lei 14.063/20:
Assinatura eletrônica avançada: A que utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou outro meio de comprovação da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento, com as seguintes características:
está associada ao signatário de maneira unívoca;
utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo;
está relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável.
A modalidade da assinatura avançada vem delineada igualmente na própria MP 2.200-2/01, no § 2º do art. 10:
O disposto nesta MP não obsta a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento.
Admite-se o uso da assinatura avançada desde que as partes consintam que o documento firmado é "válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento" (Inc. II do art. 4º da lei das assinaturas eletrônicas). Ou seja, o seu uso decorre de um acordo prévio de vontades que envolve não só os firmantes, mas integra, no seu plexo eficacial, aqueles em face de quem o documento produzirá seus efeitos. O registro de imóveis produz efeitos erga omnes; somente a assinatura qualificada supre as exigências de garantia de autoria, autenticidade e integridade dos documentos apresentados a registro, repercutindo os seus efeitos em face de todos os terceiros (além das próprias partes firmantes do instrumento). Tais presunções de autenticidade, autoria, integridade decorrem diretamente da lei, não dependem de qualquer aceitação das contrapartes ou de terceiros. Diz o § 1º do art. 4º da lei 14.063/20: "a assinatura eletrônica qualificada é a que possui nível mais elevado de confiabilidade a partir de suas normas, de seus padrões e de seus procedimentos específicos".
Não será mero acaso que a recente reforma legislativa espanhola - lei 11/23, de 8/52 - que transpôs parte das diretivas da UE em matéria de digitalização de atos notariais e registrais, reformando a lei do notariado de 28/5/1862, o Código de Comércio (real decreto de 22/8/1885) e a lei hipotecária, aprovada pelo decreto de 8/2/19463, consagrasse o uso de assinaturas eletrônicas qualificadas.4
A reforma da lei 14.620/23 e a eficácia contida da norma
O interessado poderia agitar em seu favor a recente alteração da lei 14.063/20 que em seu art. 17-A dispôs:
As instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública e os partícipes dos contratos correspondentes poderão fazer uso das assinaturas eletrônicas nas modalidades avançada e qualificada de que trata esta lei.
De fato, a lei faculta às entidades financeiras do crédito imobiliário o uso da modalidade avançada ou qualificada de assinaturas eletrônicas - como equiparou seus instrumentos a alguns dos efeitos da escritura pública. Entretanto, é preciso verificar que a eficácia deste dispositivo - especificamente no que se refere aos efeitos que poderão produzir nos registros públicos - acha-se na dependência da regulamentação do SERP - Sistema de Eletrônico de Registros Públicos pela Corregedoria Nacional de Justiça, que haverá de estabelecer os requisitos e padrões de segurança e interoperabilidade de todo o sistema. Ou seja, será o Poder Judiciário, por seus órgãos, que definirá qual modalidade de assinatura eletrônica será utilizada em cada ato específico, seja de mera averbação ou de registro. Diz o art. 38 da lei 11.977/09:
Os documentos eletrônicos apresentados aos serviços de registros públicos ou por eles expedidos deverão atender aos requisitos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ, com a utilização de assinatura eletrônica avançada ou qualificada, conforme definido no art. 4º da lei 14.063, de 23/9/20.
As entidades poderão, de fato, utilizar as assinaturas eletrônicas "nas modalidades avançada e qualificada de que trata esta lei", vale dizer: Para todas as modalidades de operações que realizem, exceto aquelas que haverão de produzir efeitos jurídicos constitutivos ou declarativos no registro de imóveis e que se acham pendentes de regulamentação.5 Além disso, vale repisar: O uso da assinatura avançada somente se legitimará quando for expressamente admitida "pelas partes como válido ou aceita pela pessoa a quem for oposto o documento" (inc. II do art. 4º da lei das assinaturas eletrônicas). No caso dos termos de liberação de garantia hipotecária, trata-se de documento firmado unilateralmente pelo credor e os efeitos que se originarão de seu ingresso no fólio hão de projetar-se erga omnes - inclusive contra o próprio registrador, que poderá ser responsabilizado pela admissibilidade de documentos inidôneos ou fraudados.6
A regulamentação, pelo CNJ, solverá as contradições e desconformidades entre as várias disposições legais.
ITI - Verificação de autenticidade
O documento apresentado a registro não foi reconhecido pelo ITI do Governo Federal. Todavia, o sistema do próprio banco reconheceu a assinatura do subscritor. Nesse passo, é preciso observar que a autenticação da assinatura não se acha indissoluvelmente ligada à integridade do próprio documento, pois a autenticação se faz por meio de um simples QR-code e pelo código de verificação (hash) que revelam, unicamente, a autenticidade do firmante, não a integridade do documento sobre o qual a assinatura incide. Tampouco se verifica uma vinculação indissolúvel entre uma e outro. Basta pensar na possibilidade de se substituir o conteúdo do documento, mantendo-se a observação lateral e os códigos de verificação (hash e QR-code). O documento poderá servir muito facilmente a todo tipo de fraude.
Apresentação de pen-drive com o "documento original" para fins de validação das assinaturas. Envio pelo e-mail
O pen-drive não revelava outro arquivo que não o mesmo enviado pelas plataformas eletrônicas. Nada se pode acrescentar além do que foi dito acima. Ao documento portado pelo pen-drive se aplicam as considerações acima dispendidas. Ademais, não se admite o envio de títulos a registro por intermédio de e-mail do interessado, nos termos do item 368.4 das NSCGJSP:
O título eletrônico poderá também ser apresentado direta e pessoalmente na serventia registral em dispositivo de armazenamento portátil (CD, DVD, cartão de memória, pen-drive etc.), vedada a recepção por correio eletrônico (e-mail), serviços postais especiais (SEDEX e assemelhados) ou download em qualquer outro site.
Continuação...
Vamos na parte II deste pequeno artigo de prática registral - puro suco de direito registral, como tenho dito - apresentar a mais recente jurisprudência acerca do tema.
É provável que o cenário se modifique radicalmente com o advento de novas disposições legais, normativas e regulamentares. Estamos em pleno campo movediço.
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1 Processo CG 81.973/2018, São Paulo, J. 11/12/2019, Dje 16/12/2019, Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco. Disponível aqui.
2 Boletim Oficial do Estado nº 110, de 9 maio 2023 - edição especial.
3 Transposição da Diretiva (UE) 2019/1151 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, que altera a Diretiva (UE) 2017/1.132.
4 No âmbito da União Europeia são utilizadas as assinaturas simples, avançadas e qualificadas, nos termos do Regulamento (UE) 910/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de julho de 2014. As assinaturas eletrônicas qualificadas produzem efeitos jurídicos e legais equivalentes ao de uma assinatura manuscrita (art. 25, n. 2), desde que sejam criadas observando-se os requisitos previstos no Regulamento. Para efeitos de simplificação, é possível estabelecer uma equivalência entre as assinaturas qualificadas (EQS) previstas no regulamento europeu e na Lei nº 14.063/2020 e MP nº 2.200-2/2002.
5 Já tive ocasião de demonstrar que a reforma da reforma da reforma (que redundou na Lei nº 14.620, de 2023) é uma perfeita inutilidade. Basta pensarmos que os títulos constitutivos de direitos de garantia, oriundos do SFI e do SFH (instituições do crédito imobiliário), apresentados há décadas nos balcões do Registro de Imóveis, nunca foram autenticados pelos notários, sendo apresentados com a simples assinatura das partes, sem qualquer tipo de reconhecimento. Vide JACOMINO. Sérgio. MP 1.162/2023 - a reforma da reforma da reforma. In: NALINI. José Renato. Sistema eletrônico de registros públicos. Comentado por notários, registradores, magistrados e profissionais. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 380. JACOMINO, Sérgio. Instrumentos particulares, títulos digitalizados - requisitos técnicos. As reformas sucessivas da Lei 14.382/2022. São Paulo: Observatório do Registro, 23 set. 2023. Disponível aqui.
6 Não custa relembrar o cenário periclitante que surgiu no auge da pandemia pelos atos normativos então baixados pelo CNJ - especialmente em termos de responsabilidade civil. O art. 208 da Código Nacional de Normas do CNJ (Provimento 149/2023), reza: "os oficiais de registro e os tabeliães, a seu prudente critério, e sob sua responsabilidade, poderão recepcionar diretamente títulos e documentos em forma eletrônica, por outros meios que comprovem a autoria e integridade do arquivo (consoante o disposto no art. 10, § 2º, da Medida Provisória 2.200-2/2001)". Parece-nos que o "prudente critério" recomenda exigir, sempre, documentos notarizados ou assinados com certificados emitidos pela ICP-Brasil, deixando as modalidades de assinaturas avançadas (ou mesmo as simples) para pleitos que não inovem a situação jurídica da matrícula. A preocupação não é cerebrina. Há notícia de indícios de crime de falsificação de documentos públicos envolvendo contratos particulares com força de escritura pública da Caixa Econômica Federal (Comunicação de Interesse Geral n. 0048674-67.2023.8.24.0710 do Núcleo IV - Extrajudicial do Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina).
Fonte: Migalhas