Background

Artigo – Lacunas e desafios jurídicos da herança digital – Por Sandro Schulze

Atualmente, o Código Civil brasileiro não aborda especificamente a questão da herança digital. E as leis relacionadas, como a LGPD e o Marco Civil da Internet, também não oferecem diretrizes claras sobre o assunto. Essa lacuna legal tem criado desafios significativos o tratamento da herança digital.

Dada a ausência de regulamentação específica, torna-se altamente recomendável o uso de um testamento digital para estabelecer de forma clara e legal como os ativos digitais devem ser tratados após o falecimento. No entanto, é importante ressaltar que, mesmo com a existência de um testamento, as plataformas que hospedam essas informações digitais muitas vezes possuem políticas próprias sobre a gestão desses bens.

A herança digital refere-se ao conjunto de ativos digitais que podem ser transmitidos após a morte de uma pessoa. Estes ativos podem incluir desde contas em redes sociais até dados financeiros e arquivos digitais diversos. No entanto, a extensão exata dessa herança ainda é objeto de debate no meio jurídico.

Alguns adotam uma interpretação restritiva, considerando apenas as relações patrimoniais como passíveis de transmissão. Por outro lado, há quem argumente que tanto os bens relacionados a relações jurídicas de natureza patrimonial quanto os aspectos existenciais podem ser transferidos, contanto que sejam passíveis de avaliação econômica.

No que diz respeito às mensagens privadas, segundo entendimento majoritário, quando se tratar de dados e informações pessoais que não envolvem questões financeiras deve ser respeitada a privacidade da pessoa falecida. Destaque-se que na grande maioria dos casos revelar o conteúdo de conversas e dados de natureza pessoal poderia também invadir a privacidade de terceiros. Portanto, as informações personalíssimas só devem ser acessadas ??pelos herdeiros em casos excepcionais, nos quais há uma razão específica que seja mais importante do que manter a privacidade e a intimidade da pessoa que faleceu.

A transferência de milhas aéreas após a morte do titular também é uma questão complexa. Alguns programas de milhagens já estabelecem, desde logo, a extinção da conta após o falecimento do titular, não sendo possível a transmissão das milhas.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, em outubro de 2022, que os pontos obtidos de forma gratuita, como recompensa pela fidelidade do cliente ao comprar produtos ou serviços, podem ser excluídos pela cia aérea.

De acordo com a decisão:

(1) o consumidor nunca foi obrigado a se cadastrar no mencionado programa de benefícios e tal fato não o impede de se utilizar dos serviços, dentre eles o de transporte aéreo oferecidos pela TAM, ou seus parceiros; (2) quando se cadastrou, de livre e espontânea vontade, era sabedor das regras benéficas que, diga-se de passagem, são claras em relações aos direitos, obrigações e limitações; e, (3) como benefício por ele concedido nada paga e nem sequer assume deveres em face de outros, não há mesmo como se admitir o reconhecimento de abusividade da cláusula que impede a transferência dos pontos bônus após a morte do seu titular.” (REsp n. 1.878.651/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 4/10/2022, DJe de 7/10/2022.)

As políticas das redes sociais variam em relação ao que acontece com os perfis de usuários falecidos. O Instagram, por exemplo, permite que os familiares solicitem a remoção do perfil, sendo possível, ainda, requerer que a conta seja transformada em memorial.

Atualmente, está tramitando no Senado a atualização do Código Civil, que inclui normas específicas sobre herança digital, regulando, de forma expressa, diversas questões que hoje são discutidas no meio jurídico, como:

1. conceituação de bens digitais, abrangendo, “entre outros, senhas, dados financeiros, perfis de redes sociais, contas, arquivos de conversas, vídeos e fotos, arquivos de outra natureza, pontuação em programas de recompensa ou incentivo e qualquer conteúdo de natureza econômica, armazenado ou acumulado em ambiente virtual, de titularidade do autor da herança”;
2. serem “nulas de pleno direito quaisquer cláusulas contratuais voltadas a restringir os poderes da pessoa voltadas a restringir os poderes da pessoa de dispor sobre os próprios dados, salvo aqueles que, por sua natureza, estrutura e função tiverem limites de uso, de fruição ou de disposição”;
3. “salvo expressa disposição de última vontade e preservado o sigilo das comunicações, as mensagens privadas do autor da herança difundidas ou armazenadas em ambiente virtual não podem ser acessadas por seus herdeiros”.

O relatório diz, ainda, que “o compartilhamento de senhas, ou de outras formas para acesso a contas pessoais, serão equiparados a disposições negociais ou de última vontade, para fins de acesso dos sucessores do autor da herança”, sendo possível que o herdeiro, mediante autorização judicial, acesse “as mensagens privadas do autor da herança, quando demonstrar que, por seu conteúdo, tem interesse próprio, pessoal ou econômico de conhecê-las”.

O trabalho de revisão está a cargo de uma comissão de juristas criada pelo Senado e presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça. Essas propostas visam preencher a lacuna legal existente e fornecer orientações claras sobre como lidar com a herança digital no Brasil.

A herança digital é um desafio crescente no mundo jurídico, exigindo uma resposta legislativa adequada para garantir a proteção dos direitos das partes envolvidas. Embora o atual Código Civil não trate especificamente desse assunto, o anteprojeto oferece uma base promissora para abordar essas questões de forma mais abrangente e clara.

Fonte: Consultor Jurídico (ConJur)