Background

A incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge nos regimes de comunhão

1. Introdução Com o advento do Código Civil de 2002, surgiram expectativas de uma remodelação ideológica e principiológica relativas ao seu campo de atuação, partindo-se do pressuposto de que as determinações legais introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro, após a Constituição Federal de 1988, preconizariam uma visão muito mais antropocêntrica e condizente com a nova era jurídica de contemplação a preceitos que visem respeitar e garantir direitos fundamentais, bem como preservar o finalismo jurídico, desatrelando-se de regras positivas engessadoras para atender ao espírito e à real finalidade do que preceitua um determinado dispositivo legal. Entretanto, o Código Civil vigente, em alguns pontos específicos, desconsidera os axiomas atuais e deixa ainda transparecer a velha e tradicional preponderância da proteção patrimonial a determinadas situações que se destina a disciplinar em detrimento de outros valores, ocasionando polêmicas e os mais diversos questionamentos acerca de suas determinações. Isso não é diferente quando o assunto em voga diz respeito à destinação dos proventos pessoais do trabalho de cada cônjuge nos regimes de comunhão parcial e universal de bens. Numa análise prematura dos artigos 1.659, VI e 1.668, V, do Diploma Civil vigente, tem-se por certo que as verbas trabalhistas de cada cônjuge, que concretizou sua união nos moldes da comunhão parcial e universal de bens, não se comunicam ao casal, pertencendo única e exclusivamente ao nubente que as auferiu. Essa determinação tem ensejado reflexos jurídicos de toda ordem por diversos doutrinadores, a fim de assentar a polêmica e definir a melhor forma de aplicação do dispositivo em estudo a cada caso concreto. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por inúmeras vezes, tem decidido com base na interpretação literal do dispositivo em pauta, ou seja, conduz à linha de raciocínio de que os proventos do labor pessoal de cada cônjuge não se comunicam. Tomando como base o contexto da sociedade contemporânea, no qual a pluralidade das pessoas possui patrimônio exclusivamente auferido dos frutos de sua atividade laboral, pode-se concluir que muitos doutrinadores entendem que a aplicação literal dos dispositivos em tela importaria na ausência total de patrimônio comum entre os consortes, mesmo nos regimes de comunhão. A importância da proposição desta pesquisa está consubstanciada na relevância para as ciências jurídicas em assentar a celeuma da incomunicabilidade dos proventos, buscando uma maior segurança jurídica, bem como a certeza dos efeitos patrimoniais que a união marital implicará na vida dos consortes. Ressalta-se, também, que a grande maioria dos matrimônios realizados no nosso País possui como norteadores para disciplinar os aspectos patrimoniais dessa união os regimes de comunhão. Com a ocorrência de tais circunstâncias, ganha especial relevo a preocupação em não confundir o patrimônio exclusivo, normalmente aquele trazido à nova união, com o acréscimo decorrente do crescimento patrimonial pela conjugação de esforços na realização plena da vida em comum dos nubentes. Para o desenvolvimento da presente pesquisa, utilizar-se-á o método dialético e, como embasamento teórico, os princípios da isonomia entre os cônjuges, da liberdade e da razoabilidade e proporcionalidade, sua aplicação no direito de família e nos regimes de bens, e também a sua íntima ligação em diversos aspectos com o tema proposto. Em seguida, buscar-se-á um maior aprofundamento do conteúdo dos artigos do Código Civil que dispõem sobre os regimes de bens, apresentando-se todas as suas distinções, peculiaridades e conseqüências advindas de sua adoção na união conjugal. Ainda, realizar-se-á o levantamento das posições jurisprudenciais do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e doutrinárias no que concernem à incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge nos regimes de comunhão, e também apontamentos sobre os principais aspectos das argumentações em defesa de um ou outro ponto de vista, bem como o confronto de suas idéias, buscando assentar a celeuma jurídica que permeia as mesas de discussões relacionadas ao assunto tratado. Por fim, importante ressaltar que, diante da complexidade envolvida no tema proposto, não nos é conveniente a pretensão de esgotamento do assunto, e sim apenas a exposição do problema, com todas as suas peculiaridades, e da necessidade de buscar uma solução adequada. 2. Princípios jurídicos aplicáveis aos regimes de bens 2.1. Princípio da isonomia entre os cônjuges Em decorrência de uma abrupta evolução cultural a partir do século XIX, inúmeros paradigmas, nos mais variados âmbitos societários, vêm demonstrando-se obsoletos e merecedores de reformulações, que por si só já ocorrem à medida que vão sendo incorporados novos padrões comportamentais à sociedade contemporânea. No direito de família se vislumbram claramente essas mudanças, especialmente no que concerne ao tratamento jurídico dispensado aos cônjuges, que estabeleceu com afinco uma isonomia de tratamento de forma a reconhecer a importância e a capacidade de ambos os consortes na mantença da sociedade conjugal em todos os seus aspectos, desde a educação da prole até o suporte financeiro. Isso se deve em grande parte a uma nova postura feminina frente à sociedade marital, encarando juntamente com o cônjuge varão a árdua incumbência na busca do sustento da família ou, como em muitas oportunidades, chamando para si a responsabilidade do sustento do lar em decorrência do abandono do marido ou até mesmo do desemprego deste, em virtude das instabilidades na conjuntura econômica nacional. A independência econômica da mulher se revela como o fator determinante de suas conquistas, traduzindo-se o seu poder aquisitivo num poderoso instrumento capaz de fazer valer suas opiniões e reivindicações perante todos em caráter definitivo e principalmente perante seu cônjuge, assumindo no seio familiar uma posição até então inédita, participativa e colaborativa, em detrimento do antigo comportamento impregnado de submissões. Atento a essa silenciosa revolução, o legislador constitucional somente fez coroar a mulher moderna oficialmente com a recepção pela Carta Magna de alguns artigos alusivos a essa isonomia, pois, factualmente, as suas conquistas já haviam sido mais do que acatadas, reconhecidas e festejadas pela sociedade, consagrando a superação do caráter patriarcal do Direito de Família. É o que refere Cristiano Chaves de Farias: A Constituição Federal consagrou no caput do art. 5º (ao cuidar dos direitos e garantias individuais) que todos são iguais perante a lei, indicando o caminho a ser percorrido pela ordem jurídica. Já no inciso I do referido artigo resolve acentuar as cores da isonomia, explicitando que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações". E mais, ao cuidar da proteção jurídica da família, no art. 226, volta a tratar da igualdade entre homem e mulher, deliberando que, "os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher". (2006, p. 66). Ao passo em que ganhou terreno na seara familiar, a mulher atrai para si, como conseqüência natural dessa revolução comportamental, o dever recíproco de direção do lar e de suporte financeiro da família, obrigações anteriormente atribuídas exclusivamente ao marido. Entretanto, ao contrário do que possa parecer, essas atribuições conferidas à mulher não foram encaradas como uma obrigação imposta, e sim como uma oportunidade de demonstrar sua real e irrefutável capacidade de assumir a direção do lar conjuntamente e de maneira igualitária com seu companheiro, afastando de modo irreversível um tempo discriminatório e de submissão, aliando a igualdade e a liberdade com responsabilidade. Como ressalta Maria Berenice Dias (2006, p. 55) "a organização e a própria direção da família repousam no princípio da igualdade de direitos e deveres dos cônjuges (cc1511) tanto que compete a ambos a direção da sociedade conjugal em mútua colaboração (cc1567). São estabelecidos deveres recíprocos e atribuídos igualitariamente tanto ao marido quanto à mulher (cc1566)". Outro aspecto merecedor de destaque, ao se referir sobre o princípio em tela, encontra-se no inciso II, do artigo 1.641, do Código Civil de 2002, que diz que "é obrigatório o regime da separação de bens no casamento da pessoa maior de sessenta anos". Nas palavras de Washington de Barros Monteiro (2004, p. 216) "a principal modificação advinda do Código Civil de 2002 quanto às causas da imposição legal desse regime consistiu em igualar o limite de idade do homem e da mulher, em sessenta anos, em acatamento ao princípio constitucional da plena igualdade (Constituição Federal, art.5º, n. I, e art. 226, § 5º)". Pode-se vislumbrar que o que traz o referido dispositivo em seu contexto diz respeito à equiparação dos sexos quando estabelece a igualdade quanto ao aspecto cronológico relacionado à imposição do regime de separação obrigatória de bens, mais uma vez revestindo o princípio da igualdade dos cônjuges com um conteúdo material e concreto capaz de modificar as relações, atribuindo-lhes efeitos jurídicos diversos. 2.2 Princípio da liberdade Como preceito de grande relevância e fundamento básico para a formação da sociedade conjugal, a "liberdade é o poder do homem para agir numa sociedade político-organizada por determinação própria, dentro dos limites legais e sem ofensa a direitos alheios". (DINIZ, 1998, p.118 e 119). Considerando juridicamente, tem-se a liberdade como um direito fundamental garantido pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, que diz que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". (BRASIL, 2005). Nessa roupagem, consubstancia-se a liberdade como cláusula pétrea constitucional e, por conseguinte, impossível de modificação, inerente a todo e qualquer cidadão. Como afirma Maria Berenice Dias (2006, p.53) "a liberdade e a igualdade, correlacionadas entre si, foram os primeiros a serem reconhecidos como direitos humanos fundamentais, integrando a primeira geração de direitos a garantir o respeito à dignidade da pessoa humana". O casamento, como toda a sociedade, provoca conseqüências jurídicas. E ainda que não deva esse instituto possuir um cunho predominantemente patrimonial, faz-se necessário organizar as relações de bens entre os casais, visto que, principalmente após o desfazimento dessa sociedade, advém indefectivelmente conseqüências jurídicas concernentes ao patrimônio dos consortes. O Código Civil vigente traz em seus dispositivos quatro modalidades de regimes patrimoniais. São eles: comunhão parcial de bens, comunhão universal, participação final nos aqüestos e separação de bens, suprimindo o regime dotal, hoje obsoleto no país, e incluindo o da participação final nos aqüestos. Os regimes não estão dispostos taxativamente no código civil, podendo as partes optar ou não por tais regimes, caracterizando sua disposição como meramente exemplificativa. Importante ressaltar aqui a limitação da intervenção estatal, cabendo-lhe somente atribuir o regime da comunhão parcial de bens em caráter supletivo aos casais que, na ocasião de sua habilitação, silenciaram no que diz respeito ao regime patrimonial. Entretanto, a faculdade de se contratar livremente quanto ao regime de bens não é de toda absoluta, devendo-se observar os limites da lei quando da realização do contrato, sendo proibidas cláusulas que se contraponham à norma legal, sob pena de nulidade dessas cláusulas ou, dependendo do caso, nulidade do pacto antenupcial. Como ressalta Carlos Roberto Gonçalves (2002, p. 116) "a livre estipulação deferida aos cônjuges também não é absoluta, pois o artigo 1655 do referido diploma declara nula a convenção ou cláusula dela que controvenha disposição em lei". Reputam-se da mesma forma inválidas cláusulas que configurem afronta à moral, dispensa a elementos essenciais ao matrimônio, imposição de comportamento ou restrição de direitos a qualquer dos nubentes. Em corroboração a essa assertiva, Arnoldo Wald (2002, p. 108 e 109) escreve que "nos pactos antenupciais, as partes têm a mais ampla liberdade para incluir as cláusulas e condições que desejarem, desde que não atentem contra disposições legais imperativas e não prejudiquem direitos inerentes à situação ocupada pelas partes na família, como marido, mulher, ou como pais da prole comum". Outra ressalva a essa liberdade de escolha está no artigo 1.641 e seus incisos, do Código Civil, que dizem ser obrigatório o regime da separação de bens no casamento das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento, da pessoa maior de sessenta anos e de todos que dependerem, para casar, de suprimento judicial. Essa imposição tem por escopo evitar eventuais prejuízos que possam ser ocasionados a uma das partes ou a terceiros em virtude do casamento. Tal dimensionamento jurídico, que coíbe certos atos, não incorre de forma alguma em abalo ao lume de que se reveste o princípio da liberdade. Essas coibições apenas afastam a prática de abusos, que porventura possam ser cometidos a pretexto desse direito, em nome de uma segurança jurídica garantidora dos objetivos e da natureza da união conjugal. No que diz respeito à mutabilidade do regime de bens na constância do casamento, consubstancia-se esta mais uma inovação do Código Civil vigente em contraponto à legislação de 1916, na qual vigoravam os preceitos da imutabilidade de regime patrimonial após a realização do casamento, a fim de resguardar interesses de uma das partes que pudesse sofrer prejuízo, tendo em vista ser considerada mais frágil na relação conjugal, e evitar o locupletamento da outra parte. Hodiernamente, visto estar afastada a idéia de fragilidade em virtude do sexo dos nubentes e ser a igualdade conjugal uma realidade fática, a legislação contempla a idéia da mutabilidade justificada, que consiste na possibilidade de os nubentes, em mútuo consentimento, na constância do matrimônio e sob o controle jurisdicional, modificarem seu regime de bens de acordo com seus interesses, ressalvados os interesses de terceiros interessados. Defensor ferrenho da idéia da mutabilidade dos regimes de bens, Rolf Madaleno acentua: Considerando a igualdade dos cônjuges e dos sexos, consagrada pela Carta Política de 1988, soaria sobremaneira herege aduzir que em plena era de globalização, com absoluta identidade de capacidade e de compreensão dos casais, ainda pudesse um dos consortes, apenas por seu gênero sexual, ser considerado mais frágil, mais ingênuo e com menor tirocínio mental que o seu parceiro conjugal. Sob esse prisma desacolhe a moderna doutrina a defesa intransigente da imutabilidade do regime de bens, pois homem e mulher devem gozar da livre autonomia de vontade para decidirem refletir acerca da mudança incidental do seu regime patrimonial de bens, sem que o legislador possa seguir presumindo que um deles possa abusar da fraqueza do outro. (2001, p. 173). São, também, pertinentes estas considerações acerca da liberdade dos cônjuges: tal faculdade acarreta, em inúmeras oportunidades, a total independência para qualquer dos nubentes no trato com questões patrimoniais que dizem respeito ao interesse de toda a família. Portanto, adverte-se que esses atos, por não se referirem apenas a direitos próprios, devem ser eivados de boa fé e responsabilidade sob o risco de se ocasionar graves e irreversíveis prejuízos que podem comprometer totalmente a estrutura financeira da sociedade familiar. 2.3 Princípio da razoabilidade e da proporcionalidade A razoabilidade e a proporcionalid