Ao final de 2023, a imprensa festejava a decisão do STF na ADO 20, onde se discutia o direito à licença paternidade. A polêmica decorria da circunstância de que o referido benefício previsto no texto original da Constituição de 1988 em seu artigo 7º, XIX, remetida a delimitação de seu conteúdo a norma legal superveniente, com o uso da clássica enunciação, “nos termos fixados em lei”. É ainda do texto original a regra de trânsito enunciada pelo artigo 10, § 1º do ADCT, fixando o interstício de cinco dias, até a edição na norma reclamada pelo corpo permanente.
Não obstante o transcurso de mais de três décadas de vigência da Constituição de 1988, e o registro no sítio da Câmara dos Deputados de 358 proposições em andamento envolvendo a regulação da matéria [1], fato é que seguia em aplicação o intervalo previsto pelo ADCT de cinco dias, o que oportunizou o exercício do controle concentrado por omissão, manejado pela CNTS (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde). Buscava-se a concretização da promessa constitucional pela enunciação legislativa das balizas desta política pública.
Proposta a demanda em 17/8/2012, a primeira inclusão em pauta para julgamento em plenário virtual se dá em 30/10/2020, interrompido o julgamento pelo pedido de vista articulado pelo ministro Roberto Barroso. A matéria retorna à consideração da Corte em 7/8/2023, interrompida uma vez mais a deliberação, agora por força de pedido de vista da então ministra Rosa Weber. Restituídos os autos em 29/09/2023, sobrevém pedido de destaque articulado pelo ministro Roberto Barroso, do qual resulta a submissão ao Plenário físico em 8/11/2023, com sustentações orais.
A deliberação dos julgadores só é retomada em 14/12/2023, com decisão por maioria pela procedência do pedido, fixando-se a seguinte tese:
“1. Existe omissão inconstitucional relativamente à edição da lei regulamentadora da licença-paternidade, prevista no art. 7º, XIX, da Constituição. 2. Fica estabelecido o prazo de 18 meses para o Congresso Nacional sanar a omissão apontada, contados da publicação da ata de julgamento. 3. Não sobrevindo a lei regulamentadora no prazo acima estabelecido, caberá a este Tribunal fixar o período da licença paternidade.”
O histórico da tramitação da demanda revela componentes interessantes. O controle concentrado da omissão legislativa de há muito desafia a Corte em relação a quais sejam os limites possíveis de sua atuação sindicante [2]. Na perspectiva estritamente jurídica, suprir a inércia do Parlamento sem que se tenha violação ao equilíbrio e harmonia entre poderes foi sempre um repto ao STF. Na perspectiva de uma estrutura de poder que aplica, como última instância, um documento político como o é a Constituição, não passavam em branco as implicações de se formular uma opção regulatória que tem reflexos em diversas relações — de trabalho, previdenciárias, de parentalidade, sociais, etc.
Outro aspecto interessante da referida tramitação está no uso estratégico do pedido de destaque formulado pelo Ministro Barroso, que evidentemente se destinava a buscar uma construção colegiada de solução, eis que o somatório puro e simples dos votos lançados em Plenário Virtual não indicava qual pudesse ser o clássico voto médio. Essa impressão se tem por reforçada quando se verifica a velocidade com que o destaque resultou em apreciação pelo Plenário físico — resultado que não se observa em outras hipóteses de uso estratégico do pedido de destaque.
Sobre a possibilidade em tese de resultar da procedência de uma ADO a proclamação de que haja efetivamente mora legislativa, não se verifica propriamente na decisão comentada nenhuma novidade. Afinal, já o artigo 12-H da Lei 9868/99 previa essa declaração, aludindo ainda e no ponto, replicando o preceituado pelo artigo 103, § 2º da CF — à ciência ao Poder omisso para a adoção das “providências necessárias”.
A questão sensível reside (ainda) em saber se possível à Corte avançar em relação à fixação de prazo para a deliberação legislativa; de parâmetros orientadores desta mesma regulação parlamentar ou ainda da superação em concreto da eventual persistência, mesmo depois da intimação, da inércia reguladora.
A conclusão da Corte, conforme antecipado pela transcrição da tese aprovada, foi no sentido da fixação de prazo para o regramento pelo Legislativo, sem a enunciação de eventual regra transitória caso subsistente a inércia deliberativa — a matéria haveria de ser uma vez mais submetida à Corte para esta determinação.
É de se apontar que a continuidade do julgamento conferiu uma relevância maior à matéria, com a criação inclusive de um Grupo de Trabalho junto à Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados [3], que já apresentou Relatório Preliminar [4] destinado a municiar a pretendida regulação legislativa. Refere-se o Ministro Barroso, na sessão de julgamento de 13/12/2023, a um exercício de diálogo institucional, eis que o Legislativo já indicara a priorização do tema na sua agenda.
A crítica que aqui se apresenta à decisão diz respeito a uma perspectiva em boa medida reducionista, veiculada em especial no item 3 da tese fixada, que resume a regulação pretendida à cogitação quanto ao prazo de afastamento a ser assegurado ao pai. Nos debates orais em Plenário, para fins de fixação da tese de julgamento, alvitrou-se ainda dos efeitos financeiros da decisão — mas a conclusão da Corte encaminhou-se para uma espécie de “voto de confiança” em favor do Legislativo, que segundo os julgadores, disso “decerto” cogitaria.
Uma vez mais tem-se a Corte, data máxima vênia, arriscando-se na seara do controle constitucional de políticas públicas — porque disso se cuida quando se exige a regulação do afastamento a ser assegurado aos pais — sem a perspectiva ampla que a matéria requer.
É certo que em abstrato, a fixação de intervalo de licença paternidade pode contribuir para o prestígio a valores constitucionalmente assegurados referidos pelos Ministros, como a igualdade como reconhecimento (em favor dos pais) e do melhor interesse da criança. Não menos certo, todavia, é que essa mesma regulação deita efeitos não só sobre o financiamento do referido afastamento em regimes públicos e privados de previdência, mas igualmente em outros segmentos objeto de políticas públicas específicas como por exemplo, igualdade de gênero e empregabilidade. Numa perspectiva que compreenda efeitos reflexos, é possível considerar ainda repercussão em temas como o do acesso a creche, violência contra a mulher, e outros tantos.
A par disso, a institucionalização do benefício em favor de trabalhadores regulares, detentores de vínculo laboral público ou privado não pode deixar de considerar como se haveria de prestigiar os mesmos valores constitucionais originalmente considerados (igualdade e melhor interesse da criança) em situações em que não se tenha o referido pressuposto. Importante visitar os números. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, o Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) registra cerca de 44 milhões de trabalhadores formais [5]. Informa o IBGE, em dados de setembro/2023 serem cerca de 39 milhões os trabalhadores informais no Brasil [6].
Não se está com os apontamentos aqui lançados, sustentando seja de se desconsiderar a omissão inconstitucional na regulação da matéria. O que se busca destacar é que uma medida como a regulação de garantia de direito do trabalhador é de se compreendida no contexto de políticas públicas orientadas especificamente a esse segmento — do que resulta que não se pode desconsiderar a manifestação mais patológica da proteção insuficiente, que é a existência de trabalhadores informais, não alcançados justamente pela rede de proteção social que a Constituição também a eles quis estender.
A tese de julgamento como enunciada, revela um persistente olhar de túnel mantido pela Corte mesmo quando se dedica ao controle de políticas públicas. Na tese veiculada na decisão da ADO 20, identifica-se como vetor principal do problema a fixação de um número de dias de afastamento — e essa perspectiva estreita é a antítese da aproximação a ser mantida quando se cuida da construção de políticas públicas. Afinal, a simples fixação do número de dias não permitiria construção de estratégias de potencialização de efeitos positivos ou mitigação de resultados adversos do afastamento institucionalizado.
Vale ainda dizer que uma das cogitações iniciais de solução era a simples determinação de que se aplicasse à licença paternidade o regramento da licença gestante, “no que couber” [7]. Nesta proposição tem-se o velho cacoete de comodamente estender-se uma regulação pré-existente, sem maiores cogitações em relação a seu potencial de efetivamente concorrer para a solução do problema público a ser enfrentado pelo programa de ação cogitado.
A lógica jurisdicional, mesmo em sede de judicial review, opera a partir da premissa de que uma vez compreendido o problema, a solução é única, delimitada por parâmetros constitucionais. Com isso, a exploração de alternativas diversas de solução, e o prognóstico em relação e seus potenciais efeitos não é tida como relevante. O consequencialismo preconizado pela Lindb como atributo exigível inclusive da decisão judicial não se revelou suficiente a modificar essa representação no imaginário dos julgadores de qual deva ser seu papel. Ocorre que não é de se aludir a controle de política pública sem essa cogitação. Programas de ação governamentais são vocacionados a produzir resultados — e para tanto, a análise não pode se cingir ao problema em si, havendo de compreender os possíveis efeitos de várias estratégias que podem inclusive coexistir.
Há ainda um traço de ingenuidade na desconsideração de um relevante dado cultural que permeia a discussão da repartição de encargos entre homens e mulheres na criação de filhos. Também aqui se beneficiaria a Corte de uma compreensão maior do tema das políticas públicas, onde o potencial transformador da ação indutora é tão ou mais valorizado do que o comando fechado de ordenação de uma determinada conduta.
Internalizar o controle de políticas públicas é uma afirmação que amplia expressivamente o espaço de decisão de uma Corte Constitucional. O problema está em saber se essa reivindicação se tem por comprometida com resultados — e não com a afirmação tão-somente retórica de prestígio a esse ou aquele valor constitucional.
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[1] BRASIL. Câmara dos Deputados. Atividade Legislativa. Disponível em https://www.camara.leg.br/busca-portal?contextoBusca=BuscaProposicoes&pagina=28&order=data&abaEspecifica=true&q=licen%C3%A7a-paternidade, acesso em 3 de janeiro de 2024.
[2] Na matéria, consulte-se VALLE, Vanice Regina Lírio do. Sindicar a omissão legislativa: real desafio à harmonia entre poderes. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007.
[3] O referido Grupo de Trabalho foi institucionalizado pela Portaria nº 1 da Câmara dos Deputados, de 20/03/2023, disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/int/portar/2023/portaria-1-20-marco-2023-793929-norma-cd-cdm.html, acesso em 3 de janeiro de 2024.
[4] BRASIL. Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados. Relatório preliminar do grupo de trabalho de regulamentação e ampliação da licença-paternidade. Disponível em https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/secretarias/secretaria-da-mulher/relatorio-preliminar/view, acesso em 3 de janeiro de 2024.
[5] BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Novo Caged: Brasil registra 130.097 postos de trabalho com carteira assinada em novembro. Em 28/12/2023. Disponível em https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/noticias-e-conteudo/2023/dezembro/novo-caged-brasil-registra-130-097-postos-de-trabalho-com-carteira-assinada-em-novembro#:~:text=Segundo%20dados%20do%20Novo%20Caged,e%20no%20Com%C3%A9rcio%20(88.706)., acesso em 3 de janeiro de 2024.
[6] CNN Brasil. Quase 39 milhões de brasileiros estão na informalidade, aponta IBGE. Daniela Amorim, em 29/09/2023. Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/economia/quase-39-milhoes-de-brasileiros-estao-na-informalidade-aponta-ibge/#:~:text=Quase%2039%20milh%C3%B5es%20de%20brasileiros%20est%C3%A3o%20na%20informalidade%2C%20aponta%20IBGE,-Segundo%20IBGE%2C%20pa%C3%ADs, acesso em 3 de janeiro de 2024.
[7] Esta era a alternativa de tese apresentada pelo Ministro Roberto Barroso na sessão de julgamento de 13 de dezembro de 2023.
Fonte: Consultor Jurídico (ConJur)