Background

Artigo – Nomeação de curador especial como instrumento de proteção patrimonial – Por Afonso Netto

Que o testamento no Brasil ainda é assunto que gera incômodo, isso muitos de nós já sabemos. A Covid-19 aproximou a população deste tema, descaracterizando o ato de uma espécie de “antecipação da morte” e destacando seu papel de meio eficaz para assegurar uma sucessão alinhada ao melhor interesse do testador, considerado atualmente como um dos elementos substanciais para desenvolvimento de um bom planejamento sucessório.

Não se pretende no presente artigo discorrer sobre todas as formas válidas de testar e suas particularidades, mas sim difundir uma cláusula menos conhecida, mas de aplicação prática de grande valia, consideradas as variáveis do arranjo familiar do testador: a indicação de curador especial para os bens deixados em favor de herdeiro menor de idade.

Impende destacar, entretanto, a segurança jurídica da qual se reveste o testamento público, que é aquele redigido e lavrado pelo profissional do direito dotado de fé pública, o tabelião de notas, com rito e solenidades que garantem a higidez do ato.

Zeno Veloso (2017), notável professor e notário, aduz que “no Brasil o testamento público é a forma mais utilizada pelos que resolvem fazer suas manifestações de última vontade” [1].

Na consecução do testamento público, o tabelião não apenas atesta a identificação do testador, o que abrange sua capacidade civil e discernimento para a prática do ato, mas também oferece aconselhamento imparcial, fornecendo ao interessado os elementos que podem integrar sua disposição de última vontade, de acordo com a realidade apresentada, sem que incorra em violação de qualquer dispositivo legal que possa limitar sua vontade de testar, mitigando — no máximo possível — o sucesso de eventual impugnação ou anulação.

A perenidade do ato notarial, preservado em acervo, indefinidamente sob a tutela do Estado, na pessoa do tabelião, assegura o seu efetivo cumprimento quando da abertura da sucessão (morte do testador), sem risco da sua destruição ou desaparecimento.

Apesar de ser denominado “público”, o conteúdo do testamento não é fornecido a terceiros enquanto vivo o testador. Outrossim, comprovado o evento morte do testador, por meio da respectiva certidão de óbito, o acesso se torna irrestrito, justamente a fim de se garantir o amplo conhecimento da vontade do testador. Em muitos estados, como São Paulo, foram editadas normas restritivas para a expedição de certidões de testamentos públicos [2]. Atualmente, por força do Provimento nº 149 de 30/08/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e advento do Código Nacional de Normas, a previsão passou a vincular em âmbito nacional, como consta da Seção XI, artigo 110: “Art. 110. A certidão de testamento somente poderá ser fornecida ao próprio testador ou mediante ordem judicial. Parágrafo único. Após o falecimento, a certidão de testamento poderá ser fornecida ao solicitante que apresentar a certidão de óbito”.

É então considerado público o testamento: por ser lavrado pelo tabelião — autoridade pública por delegação do Estado — e pelo acesso livre ao tabelionato de notas por todos aqueles maiores de 16 anos de idade.

Passando à análise da cláusula de curador especial, cumpre destacar a mutação de arranjos familiares que atualmente ocorrem na sociedade. Muitas pessoas se casam, têm a felicidade de se tornar pais e mães, mas nem todos esses casamentos perduram, seja pela infelicidade da morte precoce de um dos contraentes, seja pelo rompimento desejado — divórcio. Nesse último caso, nem todos acabam de maneira tranquila e amigável e com as relações de confiança mantidas.

Essa é uma das hipóteses em que pode surgir o seguinte questionamento: “E se eu falecer agora, com meu filho ainda menor de idade, meu ex-cônjuge vai administrar o patrimônio por mim amealhado com tanto esforço e deixado em proveito do meu filho?”. A resposta: não necessariamente.

Essa resposta vale tanto para o exemplo indicado quanto para qualquer outra hipótese em que o testador deixa patrimônio sucessível, mas não deseja que o genitor sobrevivente usufrua e administre o patrimônio arrecadado pelo herdeiro incapaz. Isso também pode ocorrer no seio de uma família em que o patrimônio de determinado lado daquela está concentrado em holdings familiares, cuja administração poderia ser afetada por interferência de um genitor sem conhecimento técnico suficiente para a melhor destinação daquelas quotas sociais e/ou seus pró-labores.

Essa resposta também é aplicável a qualquer outra pessoa que deseja instituir um menor (incapaz) seu herdeiro, mas que não deseja que qualquer dos pais faça uso ou administre os bens, preferindo que alguém de sua confiança e com conhecimento suficiente para tanto, o faça. Por exemplo, o avô ou o tio que deseja deixar um bem a um neto/sobrinho, mas não pretende que qualquer dos pais o administre, por não possuírem saúde financeira adequada.

É certo que no silêncio daquele que deixa bens e herdeiros incapazes, a administração desses mesmos bens será exercida por quem detiver o poder familiar, bem como a esse caberá o usufruto legal dos bens do filho incapaz, por imposição legal contida no artigo 1.689, incisos I e II do Código Civil Brasileiro de 2002 [3].

A boa notícia é que, para aqueles que não desejam essa aplicação, há na mesma lei civil as permissões legais para o seu afastamento. O artigo 1.693 dispõe que serão excluídos do usufruto e da administração dos pais: “III – os bens deixados ou doados ao filho, sob a condição de não serem usufruídos, ou administrados pelos pais”, que deve ser aplicado juntamente com o artigo 1.733, §2º, que assim dispõe: “Quem institui um menor herdeiro, ou legatário seu, poderá nomear-lhe curador especial para os bens deixados, ainda que o beneficiário se encontre sob o poder familiar, ou tutela” [4].

Assim, a nomeação de pessoa distinta do tutor/genitor do herdeiro incapaz é plenamente aceita e permitida pela legislação brasileira, dando-se à pessoa nomeada o título de curador especial.

Embora a lei não exija forma específica para essa nomeação, a considerar que o instrumento que institui um herdeiro — quando já não o é por decorrência da própria lei — é o testamento, nada mais aconselhável que fazer a referida nomeação utilizando-se do mesmo instrumento, mormente considerada também a segurança da qual é revestido, como sucintamente explanado no início deste texto.

Geralmente, atingida a maioridade civil do herdeiro, cessará a atuação do curador especial. Entretanto, poderá o testador, ainda, impor maiores regramentos para determinar o fim do exercício da curadoria. Se o herdeiro incapaz for herdeiro legítimo do autor da herança e testador, ao menos a metade do patrimônio herdado sairá da administração do curador especial, a fim de não violar o direito à herança legítima do herdeiro. A outra metade, ora chamada de parcela disponível, pode continuar sob a gestão do curador.

Não sendo o herdeiro incapaz, um herdeiro legítimo do testador, pode este estabelecer regras especiais para levantamento da curadoria sobre todo o patrimônio deixado, por exemplo, até que atinja a idade de 25 anos completos e/ou até que possua certificado de conclusão em curso de graduação devidamente reconhecido pelo MEC.

É possível, ainda, uma suspensão sistemática da curadoria, liberando percentuais do patrimônio conforme o herdeiro vá completando determinada idade.

As possibilidades são as mais diversas, então o ideal é que a parte interessada sempre se aconselhe com um profissional do direito de sua confiança. Lembrando que para a realização de um testamento, não se faz obrigatória a participação de advogado(a), ficando à livre conveniência do interessado(a).

Há até pouco tempo poderíamos dizer que essa espécie de cláusula não enfrenta barreiras para o seu cumprimento, entretanto, recentemente houve ação judicial que impugnou a referida nomeação, sendo acatada pelo juiz de 1° grau e confirmada por acordão do Tribunal de Justiça Bandeirante, que tornou sem efeito a disposição testamentária sob argumento de que não haveria “justificativa” para afastar o pai da administração dos bens deixados à co-herdeira incapaz, considerando que ambas as herdeiras necessárias também eram as únicas beneficiárias do testamento, não sendo aplicável a possibilidade de nomeação de curador especial.

Felizmente, as injustificáveis decisões foram derrubadas no Superior Tribunal de Justiça (STJ) pela 4ª Turma, que reconheceu a validade do testamento, não havendo razão para que não se preservasse a vontade expressa e manifestada pela testadora.

Para o relator no STJ, ministro Marco Buzzi, o fato de uma criança ocupar a posição de herdeira legítima e testamentária, simultaneamente, não afasta a possibilidade de ser instituída curadoria especial para administrar os bens a que tem direito, ainda que esteja sob poder familiar. De acordo com o ministro, a interpretação do artigo 1.733, parágrafo 2º, do Código Civil deve se guiar pela preservação da autonomia de vontade do testador. Ele explicou que o testamento é uma expressão da autonomia privada — ainda que limitado por regras da sucessão legítima — e representa a preservação da vontade da pessoa que, em vida, planejou a disposição de seu patrimônio para o momento posterior à morte, o que inclui o modo como os bens deixados serão administrados.

O relator ressaltou ainda que a instituição de curadoria especial não afasta o exercício do poder familiar por parte do pai da menor, já que o conjunto de obrigações inerentes ao poder familiar não é drasticamente afetado pela figura do curador especial, que se restringe ao aspecto patrimonial.

No entendimento de Marco Buzzi, não há no caso nenhum prejuízo aos interesses da co-herdeira incapaz, “porquanto a nomeação de sua irmã como curadora especial de patrimônio, relativamente aos bens integrantes da parcela disponível da autora da herança — genitora comum —, representa justamente um zelo adicional em relação à gestão patrimonial” [5].

Assim, conclui-se que a cláusula que nomeia curador especial para administração dos bens de herdeiro incapaz legal ou instituído, pode ser um instrumento eficaz para assegurar a autonomia da vontade do testador, de modo a garantir-lhe a tranquilidade da transmissão de seu patrimônio, quando da abertura da sucessão.

Com o aconselhamento adequado, o testamento pode atender às mais variadas necessidades do testador, seja restringindo o acesso ao patrimônio, constituindo cláusulas restritivas ou mesmo estabelecendo regras especiais e/ou percentuais distintos para pagamento dos quinhões de seus herdeiros, considerando ainda que havendo cláusula suscetível de interpretações diversas, deverá prevalecer aquela que melhor assegurar a vontade do testador, desde que respeitados os limites legais.

Fonte: Consultor Jurídico (ConJur)