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Artigo – As discussões sobre o marco temporal dos direitos dos indígenas sobre a terra nos Poderes Judiciário e Legislativo – Maria Clara Rodrigues Alves Gomes, Henrique Aleksi Bratfisch Aguiar dos Santos e Camila Schlodtmann

Fato é que a discussão sobre o marco temporal dos direitos dos indígenas sobre a terra ainda deverá se estender entre os três poderes, cabendo a nós acompanharmos todos os desdobramentos e os seus impactos sobre a população indígena, os proprietários da terra e a sociedade civil no geral.

O país acompanha com atenção o julgamento do RE 1.017.365 pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do qual foi reconhecida a repercussão geral diante da necessidade de examinar o mérito da questão constitucional no que concerne à violação do disposto no artigo 231, caput e §§ 1º ao 6º da CF/1988, e a definição de um marco temporal para a demarcação de terras indígenas.

O caso que originou o recurso está relacionado a uma Ação de Reintegração de Posse ajuizada pela FATMA (atual IMA/SC) em face da FUNAI, da União e de indígenas, em razão da ocupação, em janeiro de 2009, por aproximadamente 100 (cem) indígenas, em área situada na Reserva Biológica Estadual – REBIO Sassafrás, no Estado de Santa Catarina. No recurso, a FUNAI contesta a decisão do Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4) com o entendimento de que não teria sido demonstrado que as terras seriam tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, determinando a reforma da sentença no sentido de que houvesse a reintegração da posse por parte da Autora.

Cumpre ressaltar que o STF julgou a PET 3.388, o conhecido caso envolvendo a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, tendo estabelecido a data da promulgação da CF/1988 como o marco temporal para o reconhecimento dos direitos dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Todavia, a PET não possui caráter vinculante e não incide automaticamente sobre as demais demarcações de áreas de ocupação tradicional indígena no país. Desse modo, reconheceu-se a repercussão geral do referido recurso.

O julgamento do RE 1.017.365, de relatoria do ministro Edson Fachin, teve início em agosto de 2021 e se estendeu por 11 sessões. Em setembro de 2023, o STF alterou seu entendimento em relação à tese do marco temporal para a demarcação das terras indígenas, por nove votos a dois.

O ministro relator Edson Fachin proferiu seu voto, em síntese, no sentido de não manter como marco temporal a promulgação da CF/1988. Entre os ministros que votaram a favor do marco temporal estão o ministro Nunes Marques e o ministro André Mendonça. Quem votou por último foi a presidente do STF, a ministra Rosa Weber, que afastou a tese do marco temporal ao afirmar que o instituto da posse de terras pelos povos indígenas está relacionado com tradição e não com a posse imemorial, portanto, esses direitos garantidos constitucionalmente não podem ser mitigados.

Em seguida, foi fixada a tese que servirá de parâmetro para a resolução de aproximadamente 226 casos semelhantes que estão suspensos. Em síntese, ficou definido que nos casos em que a demarcação envolver a retirada de não indígenas que ocupem a área de boa-fé caberá indenização das benfeitorias e do valor da terra nua, calculado em processo paralelo ao demarcatório, garantindo o direito de retenção até o pagamento do valor incontroverso. Em contrapartida, nos casos pacificados em que as terras indígenas já estiverem reconhecidas e declaradas em procedimento demarcatório, não caberá indenização, com exceção dos casos judicializados em andamento.

Assim, o recurso foi provido, sendo, portanto, anulada a decisão de origem que não considerou a preexistência do direito originário sobre as terras e deu validade ao título e domínio sobre a área debatida.

Em paralelo à discussão ainda em curso no STF, o Poder Legislativo seguiu com a aprovação tanto na Câmara dos Deputados como do Senado, do PL 2.903/23, que versa sobre a regulamentação do art. 231 da Constituição Federal e visa a instituir o chamado marco temporal para definição dos direitos dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam.

O Projeto aprovado no Senado e encaminhado para o chamado veto presidencial define em seu artigo 4º critérios objetivos que deveriam ser observados na data da promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988, para que possam ser caracterizadas como terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas.

Quanto à promulgação do Projeto de Lei, o presidente da República decidiu vetar parcialmente o texto aprovado no Legislativo, sob o argumento de que a norma seria contrária ao interesse público e inconstitucional, em especial o art. 4º, que, como explicado, estabelecia os critérios objetivos e o marco temporal em si, tendo como ponto de partida a própria votação do mencionado RE 1.017.365.

O veto presidencial deverá ser apreciado nos próximos dias em sessão conjunta do Senado e da Câmara dos Deputados, podendo ser derrubado integralmente ou em parte, o que não afasta a possibilidade de uma nova revisão por parte do Supremo Tribunal Federal em exercício do seu poder de controle constitucional das normas aprovadas.

Fato é que a discussão sobre o marco temporal dos direitos dos indígenas sobre a terra ainda deverá se estender entre os três poderes, cabendo a nós acompanharmos todos os desdobramentos e os seus impactos sobre a população indígena, os proprietários da terra e a sociedade civil no geral.

Fonte: Migalhas