A multipropriedade imobiliária, da forma como foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro, tem o potencial de agravar a precarização dos municípios litorâneos turísticos ao potencializar o abandono de imóveis.
A lei 13.777, de 20 de dezembro de 2018, alterou o Código Civil e a lei dos Registros Públicos de modo a introduzir em nosso ordenamento jurídico o instituto da multipropriedade imobiliária ("time-sharing") dentro do rol dos direitos reais. No Código Civil, as inovações foram alocadas nos arts. 1.358-B a 1.358-U, inseridos no título referente à propriedade (Título III do Livro III). Trata-se de uma nova subespécie de direito real de propriedade, tal como o condomínio edilício, o que justifica a ausência de alteração nos incisos do art. 1.225 do Código Civil.
O PL do Senado 54, de 2017, de autoria do Senador Wilder Morais (à época do PP/GO e atualmente do PL/GO), teve como justificação um ideal de dinamização do direito de propriedade que teria o potencial de dinamizar a economia ao aumentar a oferta e a procura por bens que, a partir do instituto da multipropriedade, poderão ser compartilhados por mais pessoas1. Nos pareceres das comissões responsáveis pela análise do projeto no Senado e na Câmara dos Deputados, concluiu-se que a ausência de reconhecimento da multipropriedade como um direito real dificultava a adoção do instituto pelo mercado imobiliário em razão da impossibilidade de registro e averbação dos títulos ou atos constitutivos no registro de imóveis2.
Logo, a tramitação do projeto que deu origem à lei 13.777/18 envolveu principalmente a discussão a respeito da importância de se conferir natureza de direito real à multipropriedade imobiliária, de modo a regular essa prática que já vinha sendo adotada pelo mercado em alguns empreendimentos.
Por mais que a legislação brasileira tenha consagrado a multipropriedade imobiliária no rol dos direitos reais, uma das principais aplicações desse contrato desafia essa classificação. A multipropriedade hoteleira apresenta características próprias de uma relação obrigacional se levarmos em consideração a possibilidade de conjugação do sistema da multipropriedade com os serviços de hotelaria e, principalmente, nos casos em que há opção de escolha do local onde será exercido o direito3.
O projeto de lei que instituiu no Brasil o instituto da multipropriedade imobiliária tinha a finalidade de trazer segurança jurídica a uma relação que já existia na prática, principalmente no mercado hoteleiro. Tendo isso em vista e em consideração às particularidades desse mercado, é possível questionar a opção adotada de inserção da multipropriedade no rol dos direitos reais. No entanto, tendo essa opção sido consagrada pelo legislador, deve-se buscar antever e solucionar os problemas que poderão surgir da realidade concreta dentro dos princípios aplicáveis aos direitos reais como um todo.
Renúncia à multipropriedade imobiliária
Como visto, os artigos que regulam a multipropriedade imobiliária foram inseridos no título do Código Civil referente à propriedade. Em razão da opção legislativa empregada, a multipropriedade não seria uma nova modalidade de direito real, mas sim uma subespécie do direito real de propriedade. Logo, a multipropriedade imobiliária está sujeita à incidência das regras gerais que regulam a propriedade na ausência de norma mais específica.
O art. 1.275 do Código Civil, que regula as causas de perda da propriedade, tem a seguinte redação:
Art. 1.275. Além das causas consideradas neste Código, perde-se a propriedade:
por alienação;
pela renúncia;
por abandono;
por perecimento da coisa;
por desapropriação.
Parágrafo único. Nos casos dos incisos I e II, os efeitos da perda da propriedade imóvel serão subordinados ao registro do título transmissivo ou do ato renunciativo no Registro de Imóveis.
A partir do disposto no inciso II e no parágrafo único do art. 1.275 pode-se concluir ser possível ao proprietário renunciar a seu direito, sendo os efeitos de sua renúncia subordinados ao registro do ato renunciativo no Registro de Imóveis.
No entanto, o art. 1.358-T, inserido no Código Civil pela lei 13.777/18 traz um regramento específico para a renúncia da multipropriedade imobiliária nos seguintes termos:
Art. 1.358-T. O multiproprietário somente poderá renunciar de forma translativa a seu direito de multipropriedade em favor do condomínio edilício.
Parágrafo único. A renúncia de que trata o caput deste artigo só é admitida se o multiproprietário estiver em dia com as contribuições condominiais, com os tributos imobiliários e, se houver, com o foro ou a taxa de ocupação.
Na análise desse artigo precisaremos considerar duas situações distintas: (i) a renúncia sobre a multipropriedade instituída sobre unidades autônomas em condomínios edilícios4; e, (ii) a renúncia sobre a multipropriedade alheia à regulação específica do condomínio edilício.
No primeiro caso encontramos a situação na qual a regra do art. 1.358-T tem aplicação, tanto pela literalidade da própria norma, quanto pela sua localização no Código Civil como integrante da Seção VI (disposições específicas relativas às unidades autônomas de condomínios edilícios) do Capítulo VII-A (do condomínio em multipropriedade). No entanto, há uma atecnicidade na redação desse artigo, que utilizou uma nomenclatura própria do direito das sucessões.
Tal como reconhece Carlos Eduardo Elias de Oliveira5, a renúncia translativa é uma forma de transmissão da propriedade em favor de um terceiro, não se confundindo com a renúncia do art. 1.275, II. Nesse sentido, a redação do art. 1.358-T não implica em qualquer limitação, pois não impede a renúncia abdicativa do direito, apenas cria uma forma de transmissão gratuita da propriedade aplicável especificamente à multipropriedade imobiliária denominada renúncia translativa. Essa forma de transmissão gratuita da propriedade só poderá, nos termos do art. 1.358-T, ser feita em favor do condomínio edilício. A renúncia abdicativa, por sua vez, não tem um beneficiário específico e poderá ser efetivada por meio do registro do ato renunciativo no registro de imóveis (art. 1.275, parágrafo único).
Diferentemente da renúncia translativa, que estando sujeita à disciplina específica do art. 1.358-T implica na obrigatoriedade de quitação das contribuições condominiais e tributos imobiliários, a renúncia abdicativa não requer a quitação de quaisquer dívidas. Nesse caso, se a lei condicionasse a renúncia abdicativa à quitação de dívidas de natureza propter rem, o multiproprietário teria sua situação de inadimplência agravada pela superveniência de novos fatos geradores relativos às mesmas obrigações6.
No segundo caso, referente às renúncias sobre a multipropriedade alheia a regulação específico dos condomínios edilícios, não há qualquer aplicação da norma constante no art. 1.358-T.
Nos Estados Unidos, onde o mercado de multipropriedade imobiliária já se encontra consolidado, há as chamadas "timeshare exit companies". Essas empresas são especializadas em auxiliar os adquirentes de um timeshare a se desfazer do negócio, em geral intermediando a transferência do timeshare para um terceiro. Um dos principais motivos que justificam a má fama internacional desse instituto está justamente na conhecida dificuldade em se desistir de uma multipropriedade imobiliária, que pode ser uma fonte constante de dívidas para os multiproprietários.
No Brasil, por mais que ainda haja dúvidas a respeito das limitações quanto à renúncia à multipropriedade imobiliária, a possibilidade de renúncia abdicativa não parece sofrer qualquer limitação. Entretanto, nesses casos os multiproprietários ainda poderão estar sujeitos a grandes prejuízos advindos da perda do valor gasto na compra de sua fração de multipropriedade.
Portanto, tal como conclui a maior parte da doutrina7, não é possível enxergar no art. 1.358-T do Código Civil qualquer vedação à renúncia abdicativa do direito de propriedade, sob pena de inconstitucionalidade. No entanto, a possibilidade dessa renúncia traz riscos relacionados ao seu potencial de agravar a precarização de municípios litorâneos turísticos, que já sofrem com o baixo número de residentes fixos e diversos problemas estruturais.
Riscos para os municípios litorâneos
A multipropriedade imobiliária, por mais que possa futuramente apresentar usos no meio corporativo, é um instituto ligado ao turismo. Por essa razão, os principais municípios que poderão ser impactados pelo aumento de multipropriedade são aqueles inseridos em regiões turísticas, principalmente as áreas litorâneas.
A euforia na compra de uma multipropriedade, muitas vezes associada à falta de informação sobre essa espécie de direito real e ao comportamento potencialmente abusivo de alguns vendedores, podem fazer com que os consumidores adquiram frações de multipropriedade sem o devido planejamento e consideração dos custos envolvidos8.
Partindo desse pressuposto, é possível cogitar alguns problemas que poderão surgir na prática. Imagine-se, por exemplo, o caso de um adquirente de uma fração de multipropriedade correspondente a duas semanas no mês de setembro de uma residência litorânea fora de um condomínio edilício. Passada a euforia inicial com a compra, depois de alguns anos esse multiproprietário percebe que nem sempre tem disponibilidade para tirar férias no mesmo período do ano e com o acúmulo das contas resolve desistir de sua multipropriedade. O imóvel, por não ser mais novo, não tem o mesmo apelo que tinha anteriormente e o multiproprietário pode enfrentar dificuldades na venda de uma cota limitada a duas semanas no mês de setembro. O potencial de reforma do imóvel, de modo a aumentar seu valor e modernizá-lo, é limitado em razão da necessidade de aprovação da maioria simples dos multiproprietários em assembleia9.
Em uma situação desse tipo, caso não consiga alienar sua fração de multipropriedade e pressionado pelo acúmulo de dívidas propter rem, o multiproprietário poderá optar pela renúncia abdicativa. Ao renunciar a seu direito, o multiproprietário se mantém responsável pelas dívidas vencidas até o momento da renúncia, mas evita o acúmulo de novas dívidas. Com isso, os demais multiproprietários poderão ver seus custos aumentarem. Se imaginarmos que a mesma situação pode se repetir com outros multiproprietários, o potencial de abandono desses imóveis começa a se desenhar.
Para os municípios a situação se agrava se considerarmos que com a renúncia deixa de haver contribuinte do IPTU referente àquela fração de multipropriedade. Os demais multiproprietários não poderão ser responsabilizados pelas dívidas de IPTU não pagas pelo multiproprietário inadimplente ou pela fração renunciada10. Por mais que seja possível cogitar a arrecadação da fração abandonada pelo município, sua venda em leilão pode se mostrar especialmente complexa.
Portanto, mostra-se necessário um maior cuidado com a multiplicação de imóveis em multipropriedade em regiões turísticas. A experiência internacional demonstra a dificuldade em se desfazer das frações de multipropriedade. Considerando o desenho institucional da multipropriedade no Brasil, inserida entre os direitos reais como uma subespécie de propriedade, os riscos aos municípios turísticos, especialmente aos municípios litorâneos, deve ser levado em consideração. A multipropriedade pode se mostrar inicialmente uma forma de diminuir a desocupação de imóveis e incentivar o respeito à função social da propriedade, mas no futuro o mesmo instituto poderá agravar o abandono dos mesmos imóveis e gerar dificuldades na arrecadação do IPTU pelos municípios.
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1) Senado Federal, PL do Senado nº 54, de 2017, autor: Sen. Wilder Morais, 15/3/17. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/128330 (acesso em 09/10/23).
2) Vide: Senado Federal - Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, Parecer (SF) nº 38, de 2018, relator: Sen. Cidinho Santos, aprovado em 21/3/18. Disponível em:
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/128330 (acesso em 16/10/23) ; e, Câmara dos Deputados - Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, Parecer sobre o PL 10.287-A, de 2018, relator: Dep. Herculano Passos, aprovado em 31/10/18. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2176187 (acesso em 13/10/23).
3) Albuquerque Júnior, Roberto Paulino, A multipropriedade imobiliária hoteleira e o direito internacional privado, in Unijus 9/10 (2006), pp. 133-141.
4) Sobre a multipropriedade em condomínios edilícios vide: Abelha, André, e Gomide, Alexandre Junqueira, A multipropriedade e seu impacto nos condomínios edilícios, in Migalhas 12/03/2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-edilicias/321505/a-multipropriedade-e-seu-impacto-nos-condominios-edilicios (acesso em 23/5/23).
5) Oliveira, Carlos Eduardo Elias, Considerações sobre a recente Lei da Multipropriedade ou da Time Sharing (lei 13.777/18), in IRIB 26/12/18. Disponível em: https://www.irib.org.br/noticias/detalhes/consideracoes-sobre-a-recente-lei-da-multipropriedade-ou-da-time-sharing-lei-no-13-777-2008-por-carlos-eduardo-elias-de-oliveira (acesso em 17/10/23).
6) Ibidem.
7) Nesse sentido veja: Costa Filho, Venceslau Tavares, e Borgarelli, Bruno de Ávila, A lei da multipropriedade: pequena anotação crítica, in Migalhas 11/2/19. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/296090/a-lei-da-multipropriedade--pequena-anotacao-critica; e, Oliveira, Carlos Eduardo Elias, Considerações (cit. nt. 5, supra).
8) Tomasevicius Filho, Eduardo, Multipropriedade imobiliária no Brasil: antes nunca do que tarde?, in Conjur 28/1/19. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jan-28/direito-civil-atual-multipropriedade-imobiliaria-brasil-antes-nunca-tarde (acesso em 23/5/23).
9) Nesse sentido veja o disposto no art. 1.358-M, IV, "c", do Código Civil.
10) Oliveira, Carlos Eduardo Elias, Considerações (cit. nt. 5, supra).
Fonte: Migalhas