Historicamente, o setor imobiliário tem destacada importância econômica e política no Brasil, como vetor de geração de renda e empregos, e ao longo dos anos oscila entre momentos de retração e crescimento, a depender da economia nacional, mundial e até mesmo de eventos extraordinários como a pandemia de Covid-19. Apesar das oscilações constantes do mercado, os trâmites de transferência de imóveis e a atividade dos cartórios, importante ator deste ecossistema, permaneciam há décadas adormecidos e estagnados no tempo, em descompasso com a evolução do setor e dinamismo dos negócios.
Neste cenário, algumas mudanças legislativas recentes buscaram diminuir o abismo comportamental entre o mercado e a atividade registral. A Lei nº. 14.382/2022 [1] criou a Sistema Eletrônico de Registros Públicos (Serp) [2], com o fim de modernizar e simplificar os procedimentos relativos aos registros públicos de atos e negócios jurídicos, o qual permitirá o acesso a informações e registros pelos usuários de forma exclusivamente digital, integrando as informações de todos os cartórios nacionais, sem que seja necessário comparecimento presencial dos usuários. A exemplo dos bancos, a tendência é que digitalização dos serviços faça com que as conhecidas filas dos cartórios sejam no futuro apenas uma lembrança, o que, seguramente, não deixará nenhum saudosismo.
Para além da importante digitalização dos atos de registro cartorial, como forma de simplificar as operações de transferências de imóveis, a nova legislação limitou a apresentação de documentos e deixou de exigir várias certidões antes obrigatórias, de forma a serem necessárias à transferências de imóveis apenas certidões de regularidade fiscal [3] do vendedor e a certificação sobre a inexistência de ônus reais na matrícula do imóvel [4], dispensando diversas certidões negativas emitidas pelo judiciário nas esferas cíveis, trabalhistas, criminal e de família, de forma a economizar tempo e dinheiro.
Anteriormente à nova lei, a praxe era que o comprador de um imóvel deveria realizar uma verdadeira due diligence e investigação da propriedade e da vida pregressa dos vendedores, sob pena de ter prejudicada a aquisição do imóvel por dívidas anteriores do vendedor ou do imóvel, podendo inclusive perder o imóvel adquirido para o credor do antigo proprietário.
A nova legislação alterou essa dinâmica [5] e mitigou os riscos do comprador, estipulando que este somente poderá responder por situações jurídicas e dívidas existentes caso estas estejam registradas na matrícula do imóvel adquirido, o que, certamente, traz muito mais segurança à operação de compra, especialmente ao adquirente.
Como consequência da exigência do registro das situações jurídicas e dívidas na matrícula do imóvel, a alteração legislativa faz com que os credores iniciem uma corrida contra o tempo para registrar gravames e a existência de ações e execuções judiciais, visando garantir que seu crédito seja oponível a terceiros e aos possíveis futuros compradores do imóvel do devedor.
Embora a Lei nº 14.382/2022 já esteja em plena vigência desde junho deste ano, muitos compradores ainda se preocupam em pesquisar e obter certidões de possíveis dívidas pregressas, ainda que exista dispensa e mitigação do risco expressamente previsto na nova lei. Fato é que a jurisprudência dos tribunais ainda deverá se assentar acerca da matéria e o conhecimento de todas as situações jurídicas que circundam o imóvel tende a conferir maior tranquilidade ao comprador.
Está atualmente em curso a implementação e regulamentação do sistema Serp pela Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que já discute a transição ao acesso digital aos serviços de cartório nos termos da Lei nº. 14.382/2022 [6]. Resta agora saber se a transição para o Serp se dará em velocidade digital ou a passos vagarosos, como os tradicionais registros cartoriais.
Notas
[1] Originada na Medida Provisória nº 1.085/21 e posteriormente convertida em Lei.
[2] Artigo 1 - Esta Lei dispõe sobre o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (Serp), de que trata o artigo 37 da Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, bem como moderniza e simplifica os procedimentos relativos aos registros públicos de atos e negócios jurídicos, de que trata a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), e de incorporações imobiliárias, de que trata a Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964.
[3] Documentação acerca do pagamento do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), em caso de compra e venda, ou do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), em caso de doação.
[4] Lei nº 7.433/85 – "Artigo 1º [...] §2º O Tabelião consignará no ato notarial a apresentação do documento comprobatório do pagamento do Imposto de Transmissão inter vivos, as certidões fiscais e as certidões de propriedade e de ônus reais, ficando dispensada sua transcrição".
[5] Artigo 54 [...] §1º Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no registro de imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel.
§2º Para a validade ou eficácia dos negócios jurídicos a que se refere o caput deste artigo ou para a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente de imóvel ou beneficiário de direito real, não serão exigidas:
I - a obtenção prévia de quaisquer documentos ou certidões além daqueles requeridos nos termos do §2º do artigo 1º da Lei nº 7.433, de 18 de dezembro de 1985; e
II - a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais.
Fonte: Consultor Jurídico