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Artigo - A usucapião familiar e a celeridade do Registro de Imóveis - Por Robson Martins e Érika Silvana Saquetti Martins

Em que pese hoje ser uma forma de aquisição originária da propriedade utilizada de forma relativamente comum e com uma grande variedade de formatos, a usucapião é um instituto jurídico milenar, tendo sido utilizado, inclusive, como a única forma de transferência onerosa de um imóvel.

A usucapião foi consagrada pela lei das XII Tábuas, de 455 a.C., como forma de aquisição de móveis e imóveis decorrente da posse contínua, por um ou dois anos, somente podendo ser utilizada pelo cidadão romano, não por estrangeiros, que não fruíam do ius civile (FARIAS; ROSENVALD, 2022, p. 395).

Os romanos mantinham seus bens diante de peregrinos, podendo reivindicá-los quando assim entendessem. Após a expansão das fronteiras do império, foi concedida ao possuidor peregrino a praescriptio, como exceção fundada na posse, pelo período de dez (10) ou vinte (20) anos (FARIAS; ROSENVALD, 2022, p. 395).

Tal exceção servia como defesa em ações reivindicatórias, fazendo com que o legítimo proprietário não mais tivesse acesso à posse em caso de negligência delongada. O manejo da referida exceção de prescrição, entretanto, não ocasionava a perda da propriedade. (FARIAS; ROSENVALD, 2022, p. 395).

Em 528 d.C., Justiniano fundiu em um só instituto a usucapio e a praescriptio na usucapião, passando a conceder ao possuidor longi temporis ação reivindicatória voltada a obter a propriedade, possibilitando-lhe a retirada do domínio do proprietário original (FARIAS; ROSENVALD, 2022, p. 396).

Na história mais recente, no entanto, a usucapião terminou por se consolidar como uma das formas de aquisição da propriedade mobiliária e imobiliária, mediante o preenchimento de requisitos objetivos e subjetivos, entretanto, com diferentes prazos e condições.

Define-se a usucapião como um modo de aquisição da propriedade, bem como de outros direitos reais, a exemplo do usufruto, do uso, da habitação, da enfiteuse e das servidões prediais em decorrência da posse prolongada da coisa, somada à observância dos requisitos legais (DINIZ, 2022, p. 155).

A usucapião se fundamenta, portanto, na observância de pressupostos relacionados não apenas à posse como a aquele que a detém, assim como ao próprio bem que é seu objeto, partindo, entretanto, de um estado de fato que encontra reconhecimento jurídico, bem como ao tempo transcorrido com animus domini.

Mister explicitar que a usucapião não equivale ao perdimento da coisa, sequer a uma punição resultante de eventual leniência de parte do proprietário, até porque a posse que motiva o referido instituto deve ser caracterizada pela boa-fé.

É racional, econômico e justo que a posse reiterada de uma pessoa pacífica sobre um bem implique na atribuição ao possuidor do direito de propriedade, pois o decurso de tempo é capaz de consolidar situações jurídicas, a exemplo daquilo que ocorre na usucapião (COELHO, 2016, p. 97).

Em decorrência de ter a posse da coisa, sem contestação, o possuidor se torna proprietário, esvaindo-se o desconforto da ordem jurídica, já que, na usucapião, o possuidor adquire o direito de propriedade enquanto seu antigo titular o perde. Trata-se de um efeito da prescrição aquisitiva (COELHO, 2016, p. 97).

O mais relevante pressuposto para a aquisição da propriedade por intermédio da usucapião é a posse, que, entretanto, não basta por si, condicionando-se a determinados requisitos objetivos, especialmente concernentes ao prazo durante o qual deve permanecer, e subjetivos, concernente ao animus do usucapiente.

Por definição, o animus domini é a vontade de possuir como se fosse dono. Vencida a teoria subjetiva de Savigny pela objetiva de Ihering, para caracterizá-la, não basta a mera vontade, por ser necessário que resulte de uma causa possessionis, ou seja, do título em virtude do qual se exerce a posse (NEQUETE, 1954, p. 94)

Desse modo, a posse apta a resultar na prescrição aquisitiva não deve obedecer apenas à passagem de um prazo específico, como, também, depende da natureza da vontade que move o possuidor, que deve ser caracterizada, em regra, por uma causa que habilite juridicamente o potencial adquirente.

Deveras, uma das diversas modalidades de aquisição originária da propriedade pela prescrição aquisitiva que se fazem presentes no ordenamento jurídico nacional é a denominada é a denominada usucapião familiar. Trata-se, em termos históricos, de uma novidade no direito brasileiro, prevista em lei de 2011.

A lei 12.424, de 16 de junho de 2011 instituiu a usucapião familiar, por intermédio da inserção no Código Civil do Art. 1.240-A, relacionada ao exercício ininterrupto e sem oposição, por 2 (dois) anos, de posse direta e exclusiva sobre imóvel urbano de até duzentos e cinquenta metros quadrados (250m²) (BRASIL, 2002, n.p.).

Tal propriedade, entretanto, deve ser dividida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, bem como utilizado para sua moradia ou de sua família. Após o período, adquirirá domínio integral, caso não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural, fato que somente pode ocorrer uma vez (BRASIL, 2002, n.p.).

A usucapião familiar depende não apenas do preenchimento de requisitos objetivos e subjetivos para a sua concessão, como também, precisa dirigir-se a uma causa específica e inescapável, qual seja, a utilização para fins de morada da família.

Deveras, a denominada usucapião pro moradia requer a configuração simultânea de três requisitos: propriedade de um único imóvel urbano ou rural comum; abandono do lar por um dos consortes; e o transcurso do prazo de dois anos (FARIAS; ROSENVALD, 2022, p. 464).

A incidência da usucapião familiar, portanto, não pode ocorrer sobre qualquer bem, pois deve dar-se sobre um imóvel utilizado como lar de uma entidade familiar posteriormente desfeita, além de se ter de observar o transcurso de um prazo prescricional próprio.

A legislação nacional dispõe de uma infinidade de prazos de prescrição extintiva e aquisitiva. Estas, entretanto, referem-se especificamente à usucapião, demandando a passagem de um tempo determinado para cada uma das modalidades. A espécie denominada familiar demanda a passagem de dois (2) anos.

O tempo de dois (2) anos é deveras curto em decorrência das dificuldades próprias da separação e suas consequências financeiras e concernentes aos filhos. A instabilidade emocional tende a ser grande em casos tais. por isso é que o legislador previa a separação de fato por dois anos a anteceder o divórcio direto (VILARDO, 2012, p. 52).

Trata-se de tempo comum e esperado para que a nova situação de vida se assente, inclusive psicologicamente. Observando-se pelo lado daquele que permanece no imóvel abandonado, cuidado da família, aguardar dois anos para desembaraçar o imóvel não é pouco tempo (VILARDO, 2012, p. 52).

Nesse mesmo sentido, é necessário contabilizar o tempo de duração do processo para que a titularidade possa ser transferida, já que apenas depois do trânsito haverá a plena disponibilidade sobre o imóvel, período que pode ser até superior a dois anos (VILARDO, 2012, p. 52).

Desse modo, o referido prazo que, apesar de ser considerado exíguo, é justificável, tendo em vista o fato de que corre em um período de presumível penúria da família abandonada por um dos cônjuges, que, por sua vez, pode até mesmo ser o provedor do lar.

Não são os membros da família desfeita que tem direito à aquisição do imóvel residencial, porém, apenas o ex-cônjuge ou ex-companheiro, que, em decorrência da desídia do outro, permanece, de forma exclusiva e sem oposição, por dois anos na posse do imóvel, com animus domini, nele residindo (DINIZ, 2022, p. 193).

Caso aquele que abandonou o lar notifique o outro, demonstrando interesse ou disputa pela propriedade, não se configurará a posse ad usucapionem. Observa-se uma res habilis specialis, pois o bem ao qual o usucapiente faz jus é a totalidade da cota-parte pertencente ao outro consorte (DINIZ, 2022, p. 193-194).

O tempo é mais exíguo que as demais espécies de usucapião, sendo contado a partir da separação de fato, desde que o abandono seja caracterizado e desde que o cônjuge ou companheiro abandonado assuma os encargos materiais próprios da condução da família (DINIZ, 2022, p. 194).

Dessa forma, para além da propriedade de um único imóvel urbano ou rural comum e do transcurso de dois anos, é necessário que se configure o denominado abandono do lar por um dos consortes, que, por sua vez, marcará o dies a quo do referido prazo.

Mister salientar que a usucapião familiar é a que possui o menor prazo prescricional de todas as espécies de usucapião existentes em nosso sistema de direito pátrio, portanto, não haveria a menor lógica processual se houvesse a necessidade legal de aquisição da usucapião familiar se concretizar em 2 anos, enquanto o processo judicial ou administrativo demorasse quatro anos, por exemplo, caindo no vazio a sua própria funcionalidade e necessidade sistêmica.

Neste ponto, importante salientar a devida análise e qualificação do pedido pelo competente Registro de Imóveis, de forma administrativa e rápida, eis que isto impulsionará celeridade ao feito, evitando anos e anos de trâmite de ação judicial perante a Vara Judicial do Juízo de Direito, desde que todos os documentos atinentes à usucapião familiar estejam anexados, tais como requerimento assinado por advogado, ata notarial, planta e memorial descritivo do imóvel, justo título e certidões negativas.

Neste viés, inexistindo contrariedade ao pedido administrativo, poderá o Registrador de Imóveis proceder regularmente ao registro de usucapião familiar, de forma extrajudicial e célere, com menores custos administrativos, com os documentos necessários, na forma do artigo 216-A da lei 6.015/73.

Havendo impugnação concreta e devida do cônjuge que abandonou o lar, mister a remessa dos autos ao juízo de direito para a devida análise e decisão jurisdicional. De tal forma, a função social da propriedade restará plenamente atendida no âmbito do Registro de Imóveis, além de concretizar o direito à dignidade dos familiares que permaneceram no imóvel.

Fonte: Migalhas