Foi sancionada, com vetos, a Lei nº 14.382/2022, após tramitar no Congresso Nacional como Projeto de Lei de Conversão que aprovou, com emendas, a Medida Provisória nº 1085/2021.
A lei tem por objeto principal o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos – SERP, alterando diversos textos legais, com maior ênfase à Lei nº 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos – LRP).
Esse texto é um resumo do artigo que será publicado na Revista Científica do IBDFAM.
Introdução
Ainda é cedo para tecer comentários detalhados, enriquecidos pela aplicação prática dos elementos novos nas normas sobre registros públicos. Contudo, é preciso começar, fomentar o debate. Muitas mudanças, mesmo que impactantes, podem ser prenunciadas, permitindo que se planifique e estabeleça métodos para a implantação gradativa das novas rotinas. Outras, no entanto, demandam ser esmerilhadas para que se extraia delas melhor interpretação. Aparar essas arestas debatendo, dispondo e absorvendo vivências diferentes é sempre mais produtivo e resulta em trabalho de qualidade.
Importante registrar que esses comentários se limitarão à matéria dos Serviços de Registro Civil das Pessoas Naturais com destaque para elementos que afetem o direito das famílias.
Contagem de prazo
A contagem dos prazos nos registros públicos, disciplinada no art. 9º da LRP, observará o que determina o Código de Processo Civil. Assim, ressalvadas disposições legais expressas em sentido diferente, serão computados somente os dias úteis, considerando-se o dia útil subsequente para iniciar e para finalizar a contagem dos dias, na hipótese de ocorrerem em dias não-úteis. Neste contexto, são considerados dias úteis aqueles em que haja expediente (funcionamento com atendimento ao público).
No texto completo, que será publicado na revista, foram feitos comentários mais detalhados, com argumentos que defendem essa posição, já que ainda é ponto controvertido. Há quem defende a não aplicabilidade desse art. 9º ao registro civil e, neste caso, seriam mantidas a contagem em dias corridos.
Alterações na Lei nº 6.015/1973, estabelecidas pela Lei nº 14.384/2022
Em um formato esquemático simplificado, seguem os principais artigos alterados da LRP e as primeiras impressões sobre os reflexos no registro civil das pessoas naturais e no direito das famílias.
I – O nome como importante atributo da personalidade
Desde o fim do Estado confessional até a atualidade, o nome passou de imutável para definitivo (mutabilidade motivada) e agora para mutável, em pouco mais de um século.
Dois fatores competiram e influenciaram diretamente a gradativa flexibilização das regras para alterar nome: a dependência dele para individualizar e identificar o cidadão (quanto mais o Estado depende do nome para diferenciar as pessoas, maior o rigor para alterar); o fator psicológico que faz do nome um atributo da personalidade (quanto mais o cidadão se apega ao seu nome maior a necessidade de se identificar com ele e, quando isso não ocorre, a tendência é desejar alterar).
Esse tema foi desenvolvido no texto completo, demonstrando, desde o Código Civil de 1916 até os dias atuais, os aspectos históricos, psicológicos e sociológicos que influenciaram a mudança de paradigmas em relação a mutabilidade do nome.
Art. 55, § 4º – Alteração do nome do filho até 15 dias após a lavratura do registro
Permite alterar: prenome e sobrenome.
Requisito: Consenso entre pais, caso esteja estabelecida a filiação com 2 pessoas. Sendo apenas 1, não inviabiliza o procedimento porque o exercício do poder familiar será exclusivo, bastando este para requerer a mudança no nome.
A mudança será inscrita no registro por averbação.
Art. 56 – Alteração do prenome após atingida a maioridade civil (18 anos)
Somente poderá alterar o prenome.
O marco inicial é a maioridade e não capacidade civil. Portanto, menor emancipado tem que aguardar completar 18 anos.
Ato personalíssimo (pessoalmente).
Publicação em meio eletrônico: aguardar regulamentação do CNJ, da respectiva CGJ ou, ainda, eventual implementação de espaço para publicações como essa na CRC Nacional.
O pedido de alteração pode ocorrer a qualquer tempo, após atingida a maioridade. Diferente da redação anterior que estabelecia prazo decadencial, podendo requerer até 19 anos incompletos (era apenas no primeiro ano da maioridade).
Só será possível requerer essa averbação, diretamente perante o registrador civil, uma vez. E para desfazer depende de processo judicial.
Essa alteração é imotivada, ou seja, não é preciso apresentar o motivo pelo qual deseja mudar o nome.
Obrigatório constar o conteúdo da averbação em todas as certidões: nome anterior e números de documentos pessoais.
Obrigatória comunicação a órgãos públicos emissores de documentos do registrado, preferencialmente em meio eletrônico, repassadas as despesas ao interessado.
Art. 57 – Circunstâncias que permitem alterar sobrenome
Somente poderá alterar o sobrenome.
Certidões e documentos necessários seria para a comprovação de existência de ascendente com o sobrenome desejado (não é livre a escolha do sobrenome).
Permitidas alterações nas seguintes circunstâncias: inclusão de sobrenomes familiares; na constância do casamento, inclusão ou exclusão de sobrenome do cônjuge; dissolvida a sociedade conjugal, exclusão de sobrenome do ex-cônjuges; adequação de registros quando há mudanças nas relações de filiação de algum parente, podendo incluir ou excluir sobrenomes.
Art. 57 § 2º – Alteração de sobrenome de conviventes em união estável
Somente poderá alterar o sobrenome.
Exclusivo para uniões estáveis já devidamente registradas no Livro E.
Critérios equivalentes ao que ocorre no casamento.
Apesar de não estar expresso no texto da lei, é importante observar casos em que haja alteração de nome e o convivente venha a iniciar outro relacionamento e pretende registrar. Em casos como esses, será necessária prévia dissolução da união estável anterior, com consequente retorno ao nome de solteiro/a ou, ao menos, averbar a alteração de nome a pedido, já que a união estável em si não é obstáculo para novo relacionamento.
Art. 57, § 8º – Alteração do sobrenome do enteado ou enteada
Somente poderá alterar o sobrenome.
Podem acrescer aos seus os sobrenomes de padrastos e madrastas, desde que haja consenso.
Essa regra tende ao uso mínimo, após reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva. Ficarão restritos aos casos em que realmente não haja posse do estado de filho.
Não pode alterar sobrenome do enteado, da enteada. Haverá somente acréscimo.
Alteração motivada (motivo justo).
II – Desburocratização da Celebração e, principalmente, do Procedimento de Habilitação para Casamento:
Não se publica mais o edital de proclamas por 15 dias na sede do Serviço de Registro: faz-se uma publicação em meio eletrônico. A definição a respeito do meio eletrônico próprio para essa e outras publicações mencionadas nessa lei deverão ser objeto de ato normativo do CNJ e das corregedorias locais.
Dispensada a manifestação do Ministério Público nos procedimentos de habilitação para casamento.
Com o fim da possibilidade de impugnação ao procedimento, dispensou-se de vez a intervenção judicial, exceto para dirimir oposição de impedimento e suscitação de dúvida. O juiz de Direito não mais precisará homologar o procedimento de habilitação para casamento.
O local e horário para a celebração do casamento passou a ser uma atribuição do registrador civil e não mais uma prerrogativa do celebrante/juiz de paz, como antes.
Dispôs sobre a celebração do casamento em meio eletrônico, por videoconferência.
Salvo disposição normativa do Poder Judiciário, pela análise do texto desta lei, será perfeitamente possível realizar um casamento no mesmo dia.
Essa lei alterou os artigos da Lei dos Registros Públicos acerca do casamento, mas não revogou, no Código Civil, os dispositivos conflitantes. Contudo, são leis de mesma hierarquia (leis ordinárias) e a LRP, além de ser lei especial, nos artigos alterados por essa Lei nº 14.382/2022, é também lei mais atual, prevalecendo, portanto.
III – Desburocratização da formalização da união estável através do seu registro no Livro E do Serviço de Registro Civil das Pessoas Naturais.
O Provimento nº 37/2014, do CNJ, já regulamentava o registro de uniões estáveis no Livro E, desde que reconhecida judicialmente ou que tenha sido lavrada Escritura Pública Declaratória.
Permite agora que se colha a vontade dos conviventes e formalize redigindo um termo de união estável, com os elementos previstos na própria lei.
É possível o registro no Livro E de documentos de união estável de origem estrangeira, desde que ao menos um dos conviventes seja brasileiro. Não dispôs, porém, sobre o registro no Registro de Títulos e Documentos e, ainda, sobre a prévia homologação pelo STJ. Não impôs e não dispensou. Aguarda-se o posicionamento do CNJ.
IV – Dispensa de Proclamas
Não há coerência entre a nova redação do § 1º do art. 67 e o art. 69, ambos da LRP. No primeiro verifica-se que há um prazo máximo de 5 dias entre a entrada dos documentos e do requerimento de habilitação para casamento e a expedição do certificado de habilitação. Se o prazo é de “até 5 dias”, entende-se que pode ser expedido o certificado no mesmo dia, data que, em tese, os contraentes podem se casar. Sendo assim, há uma inequívoca incoerência com o art. 69 já que esse dispõe sobre a dispensa da publicação eletrônica dos proclamas para os casos de urgência, sendo concedido aos contraentes prazo de 24 horas para a comprovação dos motivos da urgência.
Solução que se sugere, até que seja feita a devida correção: aplicar o § 1º do art. 67 já que sua redação permite cumprir o objetivo da inclusão do art. 69 que é viabilizar casamentos em casos de urgência. Sendo do registrador o prazo de até 5 dias para considerar os contraentes habilitados (se os requisitos foram cumpridos), o máximo que precisará ser feito é solicitar urgência ao próprio oficial de registro para que ele adiante a emissão do certificado de habilitação.
Antes de Concluir – Comentários Inelutáveis
O propósito da interdisciplinaridade impõe o dever de deixar registradas as seguintes observações:
Como oficiais da cidadania, os registradores civis das pessoas naturais têm por atribuição, nos limites das suas prerrogativas, promover o exercício da cidadania, fundamento da República Federativa do Brasil. Cidadãs e cidadãos, membros que são do Estado brasileiro, devem receber dele tratamento equivalente, sem discriminação de qualquer natureza. Infelizmente, o diploma legal em comento excluiu (porque não incluiu) boa parte da população brasileira quando sequer fez referência à população LGBTQIAP+. Circunstâncias já pacificadas na sociedade que foram esquecidas. União Estável foi inserida na Lei dos Registros Públicos já que não existia entidade familiar com essa conformação quando da sua edição, em 1973. Na verdade, família naquela época só se constituía com o casamento. O casamento teve a sua solenidade sensivelmente simplificada e até o procedimento da conversão da união estável em casamento foi bastante detalhado. Em nenhum artigo, contudo, mencionou-se que os procedimentos serão os mesmos quando o casal for homoafetivo. Dispositivo que tratou da possibilidade de os pais alterarem o nome do filho até 15 dias do registro poderiam também expor as regras acerca da criança intersexo. As alterações de nome nunca foram tão flexibilizadas em uma mesma oportunidade. A alteração do prenome do transgênero também foi esquecida como possibilidade de averbação quando do requerimento de alteração da manifestação de gênero no registro.
O legislador foi infeliz ao não aproveitar a oportunidade para adequar a linguagem do texto da lei à pluralidade do direito das famílias e à laicidade do Estado. São inadequadas palavras como genitor, genitora, genitores, matrimônio. São terminologias consideradas coerentes em épocas passadas como sinônimos de pai, mãe, pais e casamento; quando a filiação, com raríssimas exceções, era exclusivamente consanguínea, dentro da estrutura do patriarcado. A palavra matrimônio, além de ter origem em uma realidade confessional – como sacramento religioso – rotula a mulher (mater) como responsável por cuidar do casamento, pela união da família, as tarefas domésticas e criação dos filhos. Enquanto a riqueza da família, seus bens materiais (patrimônio), são responsabilidade exclusiva do homem, o chefe da família (pater). O uso dessas palavras em textos jurídicos formais, como as leis, sugere incoerência e desatualização. Seria como usar, após a Constituição da República de 1988, o termo “pátrio poder” quando já deveria ser “poder familiar”.
Conclusão
A estrutura legislativa que precedeu à Lei de Registros Públicos foi aprimorada e complementada para editar a atual (e incrivelmente em vigor) Lei nº 6.015/1973. Com quase 50 anos de vigência, após emendas e remendos, muitas das suas disposições originais ainda estão em vigor.
As alterações implementadas agora foram as mais estruturais que já se teve nesses anos todos. A estrutura do registro e os fundamentos técnico-procedimentais não serão mais os mesmos. A materialidade de um livro de registro e tudo o que sustenta e possibilita a escrituração dos registros públicos foi se desfazendo no decorrer dos anos, na prática. Novas tecnologias, novas características sociais e novas necessidades exigiram adaptações. A partir de agora, essa estrutura transmuta-se para uma realidade virtual muito mais potente em muitos sentidos. Com certeza trará um progresso incomensurável para a sociedade brasileira. Mormente por alcançar todos os registros públicos de uma só vez.
Analisar registros do século XIX, através das perfeitas letras caprichosamente desenhadas remete o leitor magicamente àqueles tempos. Os nomes, as histórias de vida e as assinaturas de pessoas que há muito já se foram meio que dão vida ao papel amarelo e quebradiço. Folhas de jornal esquecidas dentro de livros por mais de 100 anos, pedaço de tecido, bilhetes, atestados médicos e receita de bolo também são exemplos da história viva que os livros guardaram por gerações.
O ano de 2022 marcará a história dos registros públicos através dos milhares de livros físicos que serão encerrados e outros não serão abertos. Esses serão os últimos livros físicos. Você, registrador público hoje, lavrará o último termo de encerramento de cada um dos livros que ficarão na estante sabe-se lá por quanto tempo.
Márcia Fidelis Lima é oficial de Registro Civil em MG e presidente nacional da Comissão de Notários e Registradores do IBDFAM e diretora do IBDFAM-MG.
Fonte: IBDFAM