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Artigo: A penhora do bem de família do fiador na locação: uma solução absoluta? - Por Rafael de Freitas Valle Dresch e Demétrio Beck da Silva Giannakos

O tema da penhorabilidade do bem de família do fiador em contrato de locação objeto do julgamento recente do RE 1.307.334 no Supremo Tribunal Federal (STF) demonstra a variabilidade de decisões judiciais e os desafios relativos à segurança jurídica no Brasil. Um dos principais objetivos do Direito é a busca por segurança jurídica – consequentemente, de previsibilidade, certeza, coerência – no que diz respeito ao poder decisório do juiz e à estabilização das decisões. O jurista argentino Ricardo Luis Lorenzetti, ao tratar da decisão judicial, propõe, justamente, a busca por certa estabilidade nas decisões que façam o sistema previsível1. Neil MacCormick salienta a importância da estabilidade das decisões, inclusive, para a preservação do Estado de Direito2. Daniel Kahneman, Oliver Sibony e CassSunstein, na obra intitulada Noise (Ruído), por sua vez, denunciam o mesmo problema da disparidade de julgamentos em casos semelhantes. Em certa passagem afirmam: “A resposta não deveria depender do juiz específico a quem o caso foi designado, do clima no dia do julgamento ou da vitória de um time de futebol no dia anterior”3. Nesse contexto, é relevante destacar que até os julgamentos do RE 605.709/SP e, posteriormente, do RE 1.307.334, a temática sobre a penhorabilidade do bem de família estava pacificada, especialmente pela existência do Tema 295 do STF e a Súmula 549 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ambos determinando a validade da penhora do bem de família do fiador na fiança locatícia. Contudo, a partir do julgamento do citado RE 605.709/SP na 1ª Turma do STF, em maioria apertada, foi adotado entendimento no sentido de que a dignidade da pessoa humana e a proteção ao bem de família impediriam a penhora do bem de família do fiador em locação comercial, limitando a satisfação do crédito do locador do imóvel comercial. Outro fundamento suscitado foi a possível quebra da isonomia, em virtude do tratamento jurídico díspar entre locatário e fiador. Tal entendimento, todavia, seria aplicado apenas na ponderação normativa quando da análise de contratos de locação comercial. Frente à distinção estabelecida para os contratos de locação comercial em relação ao precedente geral anteriormente pacificado, alguns Tribunais passaram a, gradativamente, modificar seus entendimentos sobre a temática gerando maior instabilidade jurídica. Nessa linha, no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), surgiram entendimentos divergentes entre Câmaras Cíveis: recentemente, a 27ª Câmara de Direito Privado do TJSP, no julgamento no Agravo de Instrumento n. 2222923-07.2020.8.26.0000, de relatoria da Desembargadora Rosangela Telles, determinou a impenhorabilidade do imóvel de um fiador em contrato de locação comercial, especificamente, com fundamento no supracitado julgamento que estabeleceu a distinção na 1ª Turma do STF. Em suas razões, a relatora desse acórdão, também, fez a distinção entre a natureza do contrato de locação (no caso analisado, tratava-se de locação comercial) para fins de afastar a Súmula 549 do STJ. Na 31ª Câmara Cível do mesmo TJSP, por sua vez, em sede de apelação 1010423-13.2018.8.26.0344, de relatoria do desembargador Francisco Casconi, foi estabelecido o entendimento diametralmente diverso, referindo, inclusive, que a decisão do RE 605.709/SP é decisão isolada, desprovida de vinculatividade e que não tem o condão de afastar as conclusões tomadas em sede de recurso extraordinário com repercussão geral. A celeuma jurídica, a princípio, foi definida na noite da última terça-feira, dia 08/03/2022. Com a formação da maioria de 7 (sete) frente a minoria de 4 (quatro) votos, o STF sedimentou o entendimento pela penhorabilidade do bem de família na locação residencial ou comercial ao julgar o RE 1.307.334 no sentido de permitir que locadores de imóveis comerciais possam penhorar bem de família do fiador para garantir o recebimento de valores em caso de descumprimento contratual pelo locatário. Com efeito, o que se debate é a constitucionalidade do art. 3º, inciso VII, da Lei nº 8.009/1990, o respeito à autonomia privada e a suposta ofensa ao direito fundamental à moradia e dignidade da pessoa humana garantidos constitucionalmente. O direito à moradia não é, necessariamente, o direito à casa própria, mas a garantia de um teto para abrigar a família de modo permanente com as condições de higiene e dimensões adequadas e privacidade familiar. Não se trata, na essência, de garantir a propriedade de um imóvel4. Quanto à dignidade da pessoa humana, esta compreende o ser humano como tendo um valor próprio que lhe é inerente, um valor absoluto, distinguindo-o das coisas em geral (que têm preço). O ser-humano, como ser livre, é dono do seu destino, responsável pelos seus atos, sendo que a qualidade de pessoa humana, atualmente compreendida como universalmente digna, “é algo que se reconhece, respeita e protege, mas não possa ser criado ou lhe possa ser retirado, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente”5. Porém, deve-se analisar tal concepção levando em conta que o fiador, livre e espontaneamente, colocou-se nessa posição de garantidor e responsável pela quitação da obrigação contraída no contrato de locação comercial. A referida análise de voluntariedade é destacada pelo Ministro Alexandre de Moraes no seu voto condutor da maioria no julgado pacificador: “ao assinar, por livre e espontânea vontade, o contrato de fiança em locação de bem imóvel (contrato este que só foi firmado em razão da garantia dada pelo fiador), o fiador abre mão da impenhorabilidade de seu bem de família, conferindo a possibilidade de constrição do imóvel em razão da dívida do locatário”. No mesmo sentido, o Ministro prossegue: “Logo, na fiança, em contrato escrito, que não deve deixar margem de dúvidas, o fiador oferece não só o seu bem de família, mas também todo o patrimônio que lhe pertence, em garantia de dívida de terceiro; e o faz de livre e espontânea vontade”. Nesse aspecto duas questões emergem: uma certa visão kantiana de dignidade, no sentido de vinculação absoluta do indivíduo às consequências de seus atos de vontade e, de forma oposta, o problema da disponibilidade dos direitos fundamentais, como é o caso do direito à moradia. Na parte final de seu voto, o Ministro Alexandre de Moraes, ainda, faz análise da ponderação em capítulo por ele denominado de “A livre iniciativa versus o direito à moradia e as consequências do enfraquecimento da garantia nas locações comerciais”. Nesse capítulo do voto, o Ministro afirma: “Reconhecer a impenhorabilidade do bem de família do fiador de locação comercial teria o condão de causar grave impacto na liberdade de empreender do locatário. Isso porque, dentre as modalidades de garantia que o locador poderá exigir do locatário (caução; fiança; seguro de fiança locatícia; e cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento, conforme o já citado artigo 37 da Lei 8.245/1991), a fiança é a mais usual, menos onerosa e mais aceita pelos locadores”. E segue: “Além disso, a fiança locatícia não implica descapitalização prévia do locatário empresário, uma vez que todo o seu capital disponível será investido no cerne do empreendimento”. Por fim, o Ministro finaliza da seguinte forma: “Por tais razões, especialmente nesses casos, eventual declaração de inconstitucionalidade da penhora de bem de família de fiador em locações comerciais implica restrição à livre iniciativa do próprio fiador do contrato de locação”. Contudo, a referida análise, de fundo utilitarista, deveria ser lastreada em pareceres técnicos econômicos sobre o mercado de locações urbanas. Ilações sobre possíveis consequências no mercado são frágeis sem as análises técnicas respectivas. Diante da complexa questão que por décadas tem gerado a oscilação de precedentes e posicionamentos doutrinários, com respeito a já citada segurança jurídica e, também, à tripartição de poderes, a regra prevista na Lei nº 8.009/91 deve prevalecer de maneira a garantir a penhorabilidade do bem de família do fiador na fiança locatícia. Com mais segurança e previsibilidade, também uma maior confiança pode ser alcançada, bem como uma maior garantia de estabilidade e coerência nas decisões judiciais. Não se quer dizer com isso, no entanto, que a referida penhorabilidade é uma regra absoluta, que não admite exceções, pois é bem sabido que, comprovada a violação ao núcleo essencial do direito fundamental à moradia – no caso concreto -, poderá ocorrer o afastamento isolado e excepcional da regra da penhorabilidade através da ponderação normativa e da aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. A busca por segurança jurídica, estabilidade, previsibilidade e confiança não se constrói com normas absolutas, imunes a superações excepcionais instrumentalizadas por distinções tecnicamente bem aplicadas no caso concreto. Aí reside a essência do trabalho do jurista. __________ 1 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 157. 2 MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. Elsevier Brasil, 2008, p. 329 ss. 3 KAHNEMAN, Daniel; SIBONY, Olivier; SUNSTEIN, Cass R. Ruído: Uma falha no julgamento humano. 1 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2021, p. 19. 4 Vide: ZIMMERMANN, Denise; DRESCH, Rafael de Freitas Valle. A dignidade da pessoa humana do fiador e a penhora do bem de família. Revista de Direitos Fundamentais e Justiça. N. 07. Abr/Jun. 2009, p. 96-125. 5 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 106. * Rafael de Freitas Valle Dresch: Mestre pela UFRGS em Direito Privado. Doutor em Direito na PUC/RS, com estágio doutoral na Universityof Edinburgh/UK, Pós-doutor na Universityof Illinois/US e professor da UFRGS. Sócio-fundador do Coulon, Dresch e Masina Advogados. * Demétrio Beck da Silva Giannakos: Advogado, especialista em Direito Internacional pela UFRGS. Mestre e doutorando (Bolsista CAPES/PROEX) em Direito pela UNISINOS. Sócio do escritório Giannakos Advogados Associados. Membro da Comissão Especial de Direito Imobiliário da OAB/RS. Associado do IBRADIM e da AGADIE. Rede social: @demetriogiannakos. Fonte: Migalhas